terça-feira, 28 de fevereiro de 2012

Trabalho intensificado nas federais: pós-graduação e produtivismo acadêmico


Produtivismo acadêmico: essa cegueira terá fim?*
Paulo Douglas Barsotti

Doutor em História Econômica e professor da Fundação Getulio Vargas (FGV-SP). E-mail: pdbarsotti@gmail.com

A publicação do livro Trabalho intensificado nas federais: pós-graduação e produtivismo acadêmico, pela editora Xamã, não poderia ter sido mais oportuna. A precarização do trabalho docente e de pesquisa, especialmente nas instituições federais de ensino superior (IFES), chegou às raias do insuportável, com consequências avassaladoras não só para o professor, mas para o próprio desenvolvimento científico brasileiro. Em poucas palavras, além de prejudicar a condição do professor-pesquisador, também falhou no crescimento e eficácia científico-tecnológica. Aliás, é necessário registrar que a editora tem mantido importante portfólio de publicações que contribuem decisivamente para a discussão desse tema fundamental da educação no Brasil.

Os autores, João dos Reis Silva Júnior e Valdemar Sguissardi, possuem vasto conhecimento sobre o assunto, não só por publicações anteriores,1 mas fundamentalmente pela atuação como educadores. Silva Júnior é professor e pesquisador do Departamento de Educação e da Pós-Graduação, na mesma área, da Universidade Federal de São Carlos (UFSCAR), doutor em Educação pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), com pós-doutorado em Sociologia Política pela Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP). Sguissardi também foi professor da UFSCAR, tendo-se aposentado como professor titular. Seus mestrado e doutorado em Ciências da Educação foram realizados na Universidade de Paris X (Nanterre).

Na pesquisa que empreenderam, os autores centraram o foco no setor de pós-graduação das instituições federais do Sudeste, polo mais concentrado de universidades e local onde a intensidade da precarização do trabalho docente e de pesquisa é mais evidente, embora saibamos que esse mal afeta - miseravelmente - todo o país.

A principal característica do estudo, e que merece ser ressaltada em primeiro lugar, é a tese dos autores de que "o movimento reformista na esfera educacional é parte das mudanças da racionalidade capitalista propiciadas pela mundialização do capital" (p. 255). Ou seja, o movimento reformista em geral não é estudado de modo isolado, como se não fizesse parte de um todo social que tem um sentido e um significado concretos. Sem desconsiderar as especificidades de cada país, a reforma é analisada como um movimento mundial, que mantém traços de identidade em todos eles, a partir da racionalidade da transição para essa mundialização do capital. Sem esquecer jamais que este processo se dá sob a influência do poder dos Estados Unidos.

Em relação à reforma educacional no Brasil, duas hipóteses principais orientaram o estudo dos autores: por um lado, as mudanças no processo acadêmico-científico e a intensificação do trabalho do professor-pesquisador; por outro, a centralidade da pós-graduação como polo gerador da efetiva reforma universitária das IFES, que resulta no produtivismo acadêmico, instrumental e ideológico. Portanto, a reforma promoveu mudanças na identidade da instituição universitária e de seus professores. Essas mudanças forjaram a emergência de uma "nova" universidade e as consequências disso para os professores estenderam-se para outros tempos de sua vida, invadindo a esfera pessoal e familiar. Essa extrapolação foi um de seus principais prejuízos.

Para a demonstração dessas hipóteses, Sguissardi e Silva Júnior desenvolveram suas reflexões com base na historicidade do tema e do foco teórico e empírico de vários autores do século XIX até os dias atuais. O resultado desse caminho de pesquisa demonstrou que o núcleo da ideologia do produtivismo acadêmico, como política de Estado e de cultura institucional, tem, no mínimo, duas graves implicações: no âmbito filosófico, o pragmatismo; no âmbito econômico, a mercadorização da ciência e da inovação tecnológica. Consequência: a pós-graduação - nestes moldes - tornou-se o polo gerador de uma reforma da instituição universitária que tende a colocá-la a reboque do mercado.

Os autores denunciam que este processo é sutil, mas extremamente eficaz, pois, ao usar a pós-graduação como núcleo gerador das mudanças na prática universitária, provoca um efeito multiplicador até a base da pirâmide educacional. Dito de outro modo, as reformas educacionais nos demais níveis e modalidades - da reforma do Estado à reforma da municipalização escolar - são orientadas por documentos produzidos pelos mesmos mentores que orientam a reforma no ensino superior. Portanto, os documentos que pautam a reforma, da educação infantil à pós-graduação e à indução da pesquisa pelo CNPq e sua regulação pela CAPES, são quase todos produzidos pelos mesmos especialistas e pesquisadores. Não é, enfim, um processo aleatório. Ao contrário, é um movimento geral muito bem articulado e amarrado.

Essa radical mudança da identidade da universidade promove continuamente um acréscimo do trabalho imaterial produtivo (pesquisa aplicada) do professor.

É este trabalho que garante boas notas aos programas de pós-graduação, segundo os critérios estabelecidos pelo CNPq. A perversidade do mecanismo é, grosso modo, o seguinte: o professor-pesquisador, por sua "própria vontade", a fim de atingir as metas estabelecidas, aumenta em muitas horas seu trabalho semanal. E a universidade, que "deveria ser o lugar privilegiado da desalienação" (p. 264), promove justamente o oposto: por indução das políticas governamentais, "predomina o pragmatismo e, com ele, a utilidade alienante a que se submete grande parte dos professores" (idem).

O prefaciador do livro, Francisco de Oliveira, ressalta estes aspectos centrais da obra com sua habitual erudição, oferecendo ao leitor não só uma síntese privilegiada da pesquisa dos autores, como um quadro histórico do surgimento de universidades multisseculares tais como Bolonha, Sorbonne e Oxford, localizando o surgimento tardio das universidades brasileiras: "O Brasil é um país 'tardio': capitalismo tardio, independência tardia, abolição tardia, industrialização tardia e... universidade tardia" (p. 12). Com base nos dados fornecidos por Silva Júnior e Sguissardi, Oliveira aproveita a oportunidade para demonstrar que, no Brasil, enquanto se elevam os coeficientes de produção intelectual por docente, rebaixam-se os recursos para a universidade, numa contradição "bem brasileira" (p. 13).

É importante registrar que esses dados fornecidos pelos autores trazem um panorama das universidades hoje, com o propósito de dar ao leitor a compreensão da função estratégica das IFES. Isso é um aspecto fundamental do livro, pois apresenta uma parte bastante árida - porém, absolutamente necessária - da minuciosa pesquisa empreendida por eles, apresentando os números da precarização do trabalho docente nas IFES do Sudeste. A riqueza dos quadros estatísticos merece ser avaliada com tempo e dedicação, pois podem servir de base a uma ampliação ainda maior das reflexões suscitadas pelo livro. E isso apenas nos dois primeiros capítulos. Nos capítulos como um todo, são pelo menos cinco as questões mais importantes trabalhadas, e respondidas, pela pesquisa dos autores: a forma como as instituições concretizam as diretrizes e metas oficiais, como sujeito coletivo, por meio da prática universitária; os traços mais significativos do processo da identidade institucional pós-reforma; o trabalho e a identidade do professor universitário transformado em função da reforma; a reação do professor à racionalidade utilitária e pragmática da reforma no âmbito cotidiano; e as consequências da precarização do trabalho do professor-pesquisador para sua vida pessoal.

Para finalizar, os autores fazem uma instigante referência à cegueira, citando o polêmico romance de José Saramago, Ensaio sobre a cegueira. Sguissardi e Silva Júnior quiseram caracterizar em seu livro a "cegueira branca" de parte significativa dos professores-pesquisadores na "crua realidade da nova universidade em construção dos tempos FHC-Lula", que se preocupam em enriquecer seu currículo Lattes e cumprir à exaustão os deveres de ofício. O livro, fruto de árduo trabalho de investigação, contribui para a percepção de que esse professor também "se fatiga, adoece e 'morre' um pouco a cada minuto de suas práticas universitárias" (p. 254). Tomara que seja possível - pois é urgente - desvelar a mente, ler, refletir e tomar consciência da gravidade das questões denunciadas pelos autores.

Nota

1. Publicaram conjuntamente o livro Novas faces da educação superior no Brasil - reforma do Estado e mudança na produção (São Paulo: Cortez; EDUSF, 2001). Silva Júnior publicou também Pragmatismo e populismo na educação superior no Brasil de FHC e Lula (São Paulo: Xamã, 2005) e Reformas do Estado e da educação no Brasil de FHC (São Paulo: Xamã, 2003). Sguissardi também publicou Universidade, fundação e autoritarismo: o caso da UFSCAR (São Carlos: EDUFSCAR; Estação Liberdade, 1993) e organizou duas coletâneas: Avaliação universitária em questão - reformas do Estado e da educação superior (São Paulo: Autores Associados, 1997) e Educação superior: velhos e novos desafios (São Paulo: Xamã, 2000).

* Resenha do livro Trabalho intensificado nas federais: pós-graduação e produtivismo acadêmico, de Valdemar Sguissardi e João dos Reis Silva Júnior (São Paulo: Xamã, 2009. 271p).

Revista Educação e Sociedade - CEDES - UNICAMP

Direita para o social, esquerda para o capital


Direita para o social, esquerda para o capital*
Silvana Aparecida de Souza

Doutora em Educação e professora da Universidade Estadual do Oeste do Paraná (UNIOESTE). E-mail: souzasilvana@uol.com.br

Lançado em outubro de 2010, na 32ª Reunião Anual da Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Educação (ANPEd), pela editora Xamã, com cuidadoso prefácio de Roberto Leher e apresentação de Eurelino Coelho, Direita para o social e esquerda para o capital: intelectuais da nova pedagogia da hegemonia no Brasil é organizado por Lúcia Maria Wanderley Neves, professora aposentada da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), pesquisadora da Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio, Fundação Oswaldo Cruz (EPSJV-FIOCRUZ) e coordenadora do Coletivo de Estudos de Política Educacional ligado àquela instituição. Com larga experiência e apoiada no referencial teórico marxista/gramsciano - a partir do qual tem desenvolvido um continuum de estudos e pesquisas em políticas e educação no Brasil, em suas relações com o processo permanente de reestruturação do modo de produção capitalista -, Lúcia Neves é autora, coautora e organizadora de diversos outros livros na área educacional.

Os demais autores do livro - André Silva Martins, Daniela Mot a de Oliveira, Ialê Falleiros, Marcela Alejandra Pronko, Marcelo Paula de Melo, Marco Antonio Carvalho Santos, Maria Teresa Cavalcanti de Oliveira e Vanja da Rocha Monteiro - integram o Coletivo de Estudos de Política Educacional coordenado por Lúcia Neves.

Tendo como recorte as relações superestruturais que produzem e reproduzem a alienação na sociedade capitalista, o título do livro per si já é bastante provocador e, por isso, um convite instigante à leitura.

Escrito de forma coletiva, seus autores, em uma demonstração de domínio do pensamento do italiano Antonio Gramsci, tratam do processo de formação e de atuação instrumental dos intelectuais orgânicos ou tradicionais, individuais ou coletivos1 na sociedade, sobretudo no momento histórico atual.

Para além do alto domínio conceitual e teórico, os autores demonstram, do ponto de vista histórico, a constituição e os determinantes do processo de propagação das ideias que fundamentam "a nova pedagogia da hegemonia";, mais especificamente na sociedade capitalista contemporânea. Tratam do contexto da Guerra Fria, apontando um conjunto de ações desenvolvidas na época de ouro do capitalismo para efetivar uma verdadeira campanha cultural, cujo objetivo era difundir na intelectualidade ocidental não só a aceitação como a exaltação do "americanismo"; como modo de vida. O objetivo de tal campanha era fazer com que o poder de formação de opinião das massas que a intelectualidade detém se voltasse a favor do American way of life.

A partir daí, os autores listam uma série de instituições de natureza pública e/ou privada, criadas na América Latina e no Brasil, com o objetivo de orientar as políticas públicas, a tomada de decisão dos governos e constituir um quadro de servidores públicos de carreira formados a partir de uma concepção desenvolvimentista, mas, antes de tudo, anticomunista.2

Na década de 1970 teve início um processo de crise no interior do capitalismo que levou ao fortalecimento da doutrina neoliberal e que propiciou, em pouco tempo, a "mundialização do capital, com seus exorbitantes ganhos financeiros e suas desastrosas consequências no aprofundamento das desigualdades sociais"; (Neves, 2010, p. 66).

Data desse período a origem da Terceira Via, que se apresentou como alternativa indispensável para "suprimir o potencial de conflito dos primeiros regimes de direita radical (Thatcher e Reagan), eliminando a oposição ainda existente à hegemonia neoliberal"; (idem, ibid., p. 70), quando passou a ocorrer a formação de uma nova subjetividade coletiva que resultou em uma nova sociabilidade, que tem se traduzido em uma prática política da direita para o social e da esquerda para o capital.

Nesse contexto, o grupo, que é profícuo em cunhar expressões - condição que acaba por caracterizar sua forma bem humorada de produzir explicações que retratem sofisticadamente o real -, utilizando-se metaforicamente de um fenômeno da natureza, chama de "pororoca do novo mundo"; o encontro de correntes políticas distintas, à direita para o social e à esquerda para o capital, que atualmente se traduz na chamada Terceira Via.

A partir de então, os autores se propõem a explicitar os fundamentos teóricos que dão sustentação ao projeto neoliberal da Terceira Via no Brasil e, para tanto, realizam a análise dos princípios da "pedagogia da hegemonia";. Para esta tarefa, selecionaram obras clássicas de vários teóricos, de diferentes áreas, que sustentam, com alguma diferença entre eles, que a atual fase do capitalismo se configura como um mundo novo. Isso está de acordo com a teoria do fim das classes e de que o trabalho não é mais categoria central para explicação da realidade e sim o conhecimento, a linguagem, a informação ou a cultura. Os teóricos analisados são: Alain Touraine, Adam Schaff, Robert Putnam, Peter Drucker, Boaventura de Souza Santos, Manuel Castells, Edgar Morin, Zygmunt Bauman, Michel Hardt e Antonio Negri.

Na última parte do livro os autores se ocupam da análise da influência dos "intelectuais coletivos"; com atuação na formação política e escolar da sociedade brasileira contemporânea, tendo escolhido para o estudo de caso a Fundação Getúlio Vargas (FGV) e o Instituto Brasileiro de Análises Sociais e Econômicas (IBASE), ambos pelo papel formador dos quadros intelectuais brasileiros, tanto para a área pública quanto para a privada.

No que diz respeito à FGV, que, desde sua criação em 1944, forma gestores para o setor público e para o campo empresarial privado, sua influência é extensa na definição de políticas públicas no país, pois muitos de seus professores e pesquisadores ocuparam e ocupam cargos importantes no governo federal; a Fundação, por intermédio de seus vários institutos, tem prestado permanentemente consultoria e assessoria econômica a governos brasileiros; possui vasta e diversificada linha editorial de revistas científicas, entre as mais conceituadas do país na área de Administração e Economia; organiza e realiza uma diversidade enorme de eventos, congressos e seminários nacionais e internacionais; nos últimos anos, cresceu sobremaneira sua atuação na prestação de serviços de consultoria para o setor privado, assim como na oferta de serviços educacionais (cursos de curta duração, de graduação e pós-graduação, nas modalidades presencial e a distância), formando gestores agora também para a chamada economia social, solidária ou ligada ao Terceiro Setor.

Já o IBASE foi inicialmente administrado por exilados e políticos cassados pela ditadura militar, que retornaram ao país com a anistia política de 1979, e tinha por principal objetivo prestar assessoria aos movimentos sociais comprometidos com a democratização do Brasil. No entanto, com o passar do tempo, seus objetivos foram mudando e hoje o Instituto atua, sobretudo, junto às organizações não governamentais (ONG) voltadas à prestação de serviços sociais para segmentos populacionais considerados "excluídos".

Assim, a pesquisa demonstra que tanto a FGV quanto o IBASE, na condição de organizações da sociedade civil, atuam, cada uma a seu modo, como intelectuais coletivos na legitimação da nova pedagogia da hegemonia, de acordo com os preceitos da Terceira Via.

É com esta análise da influência dos intelectuais coletivos que os autores optam por terminar o livro sem tecer as conhecidas "considerações finais", ou mesmo uma síntese, presente no encerramento da maioria de estudos dessa natureza. Porém, considerando que Direita para o social... constitui uma sequência articulada às discussões realizadas em trabalho anterior (A nova pedagogia da hegemonia), arriscaria dizer que a forma como o livro termina sugere que teremos uma espécie de trilogia, pois é sabido que o Coletivo de Estudos de Política Educacional continua cada vez mais bem articulado e está com nova pesquisa em andamento, que, norteada pelo mesmo referencial teórico, agora contempla a análise do chão da realidade escolar pública brasileira.

Enfim, o livro coordenado por Lúcia Neves se apresenta como uma referência importante para o debate da esquerda educacional brasileira, por sua relevância teórica, pela pertinência das relações que estabelece, mas, sobretudo, por não perder a perspectiva da ruptura com a lógica destrutiva do capital.

Notas
1. Antonio Gramsci entendia por intelectuais indivíduos ou organizações formadoras, organizadoras e/ou propagadoras, em diferentes linguagens, da cultura e das ideias que fundamentam uma determinada concepção de mundo e de classe. Portanto, em acordo com a conceituação gramsciana, um partido, um sindicato, a Igreja ou qualquer outra organização podem assumir, em qualquer momento, a condição de intelectual coletivo.

2. Observe-se que, de acordo com a teoria gramsciana, a sociedade civil pode dar certa direção às políticas públicas, por meio de organizações que se convertem em intelectuais coletivos, o que, em sua teoria de Estado, denomina-se "aparelhos privados de hegemonia". No entanto o autor esclarece que a classe dominante tem melhores condições de fazer isso do que a classe que luta no plano contra-hegemônico (Gramsci, 2000).

Referências
GRAMSCI, A. Cadernos do cárcere. v. 3. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2000.
NEVES, L.M.W. (Org.). A nova pedagogia da hegemonia: estratégias do capital para educar o consenso. São Paulo: Xamã, 2005.
NEVES, L.M.W. (Org.). Direita para o social e esquerda para o capital: intelectuais da nova pedagogia da hegemonia no Brasil. São Paulo: Xamã, 2010.

* Resenha do livro Direita para o social e esquerda para o capital: intelectuais da nova pedagogia da hegemonia no Brasil, organizado por Lúcia Maria Wanderley Neves (São Paulo: Xamã, 2010).
Revista Educação e Sociedade - CEDES - Unicamp

quarta-feira, 8 de fevereiro de 2012

A gramática no cordel

Literatura popular no ensino da língua portuguesa

Bel Levy

– Estudo é coisa séria
Não me venha com pilhéria
Decore a cartilha, sim senhor!
– Que é isso, professor?
É com rima e bom humor
Que o menino vira doutor!

Se você gostou dos versos acima, certamente simpatizará com Janduhi Dantas: eles foram construídos inspirados nas 263 sextilhas que ele compôs em sua Gramática no cordel . Professor de português de escolas de ensino médio e cursinhos pré-vestibulares da Paraíba, ele resolveu divulgar regras gramaticais de forma criativa para facilitar – e alegrar – o aprendizado dos alunos.

A literatura de cordel é bastante popular no Norte e Nordeste e durante muito tempo funcionou como um meio de divulgar as histórias e a cultura de uma região. Antes dos jornais, do rádio e da televisão, era por meio dos folhetos de cordel que o povo tomava conhecimento dos feitos de Lampião e Maria Bonita, de crimes, milagres e até de secas e enchentes.

Janduhi, que é cordelista, aproveitou essa característica tradicional do gênero para fazer circular, de forma simples e interessante, as normas às vezes complicadas da gramática: "As rimas ajudam a memorizar e, como os versos são geralmente engraçados, o aprendizado se torna mais rápido e a aula, eficiente", garante o professor.

A idéia de escrever a Gramática no cordel surgiu quando seus filhos, de 12 e 11 anos, pediram-lhe ajuda para uma prova de português. "Nisso me deu um estalo / e a luz da idéia acendeu: / eu disse – agora, meninos, / uma idéia me ocorreu: / 'cês vão aprender gramática / como nunca se aprendeu", conta Janduhi na introdução do livro.

O cordelista começou, então, a criar as sextilhas gramaticais que hoje compõem a obra. São estrofes sobre fonologia, semântica, morfologia e sintaxe, que explicam as regras da língua portuguesa e esclarecem dúvidas comuns entre os alunos – como a diferença entre há e a , afim e a fim , onde e aonde .

A publicação foi totalmente financiada por Janduhi, em uma pequena gráfica da cidade, o que resultou numa edição modesta. Ele mesmo vende os exemplares em escolas da região, com a ajuda sobretudo de amigos. A Gramática no cordel custa R$ 12 e pode ser adquirida junto ao autor pelo telefone (83) 421-8977 ou pelo e-mail dantasjn@ig.com.br .

A gramática no cordel
Janduhi Dantas
Gráfica, Editora e Cartonagem Visão
Patos (PB), 2004
51 páginas

Confira algumas sextilhas da Gramática no cordel :

Substantivo
O Substantivo dá
Nomes aos seres em geral.
É o nome dado a coisa,
Ação, pessoa, animal...
É palavra variável
Em gênero, número e grau.

Mortadela, sem n
Não vá comer morta n dela
Pra não ter idigestão,
Mas mortadela , sem n ,
Pode comer de montão:
“Levante a mão quem não gosta
De mortadela no pão!”

Cocô gelado?!
Colocar acento em coco
È um erro bem danado!
Principalmente no fim
Se o acento é colocado
Pois ninguém está maluco
De beber “ cocô gelado”!

Há = passado, a = futuro
Na indicação de tempo,
Há e a são empregados:
A se emprega no futuro ,
Há se usa no passado –
"Vou sair daqui a pouco",
" Há dias fui ao mercado".

Revista Ciência Hoje

Ciência a jato


Manual para curiosos de todas as espécies
Uma pretensiosa compilação de descobertas científicas
Lia Brum

Se você procura uma maneira de se preparar para ganhar um milhão de reais em um jogo de perguntas sobre conhecimentos gerais, Alan Axelrod fornece a solução. Em Ciência a jato , o escritor enumera 202 fatos científicos, desde a Antigüidade até o ano de 2002, de olho em quem deseja rechear seu repertório nessa área. Com uma linguagem simples, o livro pode ser devorado com facilidade. Porém, se você pretende compreender o desenvolvimento da ciência ao longo da história, a obra deve ser encarada apenas como um agradável ponto de partida.

Logo na capa da edição brasileira e na introdução, o autor já deixa bem claro o seu objetivo: Ciência a jato se propõe a mostrar a ciência historicamente e a revelar somente o necessário a um cidadão comum para que demonstre uma boa cultura geral. Essa intenção nutre a idéia de um conhecimento de fachada: o sujeito decora as mais diversas datas e nomes, e quando os cita, passa a impressão de que sabe de variados assuntos. Contudo, não consegue explicar os fatos nem estabelecer relações entre eles.

Para fornecer esse saber superficial, Ciência a jato funciona perfeitamente. Apresenta descobertas que vão desde o uso controlado do fogo pelo homem até a criação de um olho animal a partir de células-tronco. Tudo em ordem cronológica e de forma breve: cada item não ocupa mais do que quatro páginas e, muitas vezes, são empregadas expressões como “é bem provável”, “supõe-se” e “acredita-se” para esclarecer fenômenos. Se absorvidos sem questionamentos, os dados expostos não são aprendidos e correm o risco de ser esquecidos rapidamente.

Por outro lado, Ciência a jato prova ter virtudes ao enfatizar, ao longo de suas 364 páginas, a curiosidade dos cientistas e o seu inconformismo em relação a dogmas como estopim para seus estudos e invenções. Essa ênfase faz com que o leitor se envolva em indagações e passe a questionar o conteúdo do próprio livro. Vista dessa forma, a obra pode se transformar em um excelente estimulante para a busca de explicações mais aprofundadas sobre os fatos mostrados.
Além disso, Axelrod mantém um texto sem termos técnicos e fácil de ler inclusive por aqueles que resistem à “chatice” da ciência. Assim, muita gente pode descobrir, de forma prazerosa, que conveniências consideradas naturais hoje em dia – como a agricultura, o telefone e as cirurgias – resultaram de necessidades, de pesquisas ou até mesmo do acaso ao longo da história da humanidade. Da mesma forma que temas estudados pela ciência e considerados polêmicos atualmente talvez sejam incorporados ao cotidiano no futuro.

Ciência a jato
Alan Axelrod
Rio de Janeiro, 2005, Editora Record
264 páginas
Revista CIÊNCIA HOJE

A música entra em cena: o rap e o funk


A música que humaniza
Livro aborda o funk e o hip-hop como meios de ressocialização dos jovens da periferia

Denis Weisz Kuck

O rap e o funk são uma das mais fortes ferramentas de auto-afirmação e busca de identidade para jovens pobres da periferia de Belo Horizonte. Este é o argumento por trás de um livro recém-lançado por Juarez Dayrell, professor da Faculdade de Educação da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). A música entra em cena: o rap e o funk na socialização da juventude é uma versão modificada da tese de doutorado que Juarez defendeu junto à Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo (USP).

O autor faz um pequeno histórico da chegada do rap e do funk em Belo Horizonte – cidade em que esses gêneros têm menos expressão do que no Rio e São Paulo. Juarez percorre a trajetória de vida e carreira de três grupos de rap (Processo Hip-Hop, Máscara Negra e Raiz Negra), duas duplas funk (Flavinho e Maninho e Marcos e Fred) e um grupo de funk (Os Cazuza). “Queria me aproximar da realidade dos jovens da periferia, conhecê-los na concretude de sua existência de humanização e desumanização, na qual se produzem e são produzidos como sujeitos”, diz Juarez em seu livro.

É esse o diferencial do livro de Juarez: ele procura não apenas estudar como os jovens se relacionam com o funk e o hip-hop, mas também como esses estilos influenciam outras esferas da vida desses jovens – o trabalho, a escola e a família.

Em sua pesquisa de campo com os rappers e funkeiros, o educador verifica que a vida profissional fora da vivência do estilo musical é vista como um fardo, uma obrigação sem interesse que eles precisam manter para obter um mínimo de renda. A escola, encarada como um adiamento da fruição da vida, não atende as reais demandas desses jovens e por isso é abandonada antes de sua conclusão. Já a família é em quase todos os casos um dos pilares na formação desses rappers e funkeiros, sendo a figura da mãe mais importante que a do pai, na maioria das vezes ausente.

Juarez conclui que o funk e o hip-hop são estilos que os jovens pobres escolhem para poder vivenciar mais intensamente sua juventude, em um meio carente que tende a anular a expressão de sua cidadania. São dois estilos democráticos, que possibilitam aos jovens carentes sair da posição de consumidores passivos da cultura – à qual têm dificuldades econômicas de acesso – para se tornarem eles próprios criadores.

Embora a maioria dos grupos e duplas acompanhados por Juarez tenham acabado, e apesar de histórias pessoais como a do funkeiro Rogério, que entrou para o tráfico, o autor avalia como positiva a participação dos jovens estudados no ambiente funk e hip-hop, que ele caracteriza como um “meio pelo qual [eles] exercem o direito de serem jovens”. E retira da sua experiência ao lado dos grupos e bandas um conselho para a sua profissão: “a crise da escola é reflexo da crise da sociedade, e sua superação demanda que nós, educadores, ampliemos nossa reflexão para fora dos muros escolares”.

Para leitores que não tiverem interesse acadêmico pelo tema, o trabalho de Juarez pode soar um pouco longo e às vezes cansativo. No entanto, é uma fonte importante para aqueles interessados no aprofundamento do estudo do estilo funk e hip-hop na construção da identidade dos jovens da periferia.

A música entra em cena: o rap e o funk
na socialização da juventude
Juarez Dayrell
Belo Horizonte, 2005. Ed. UFMG
303 páginas

Revista CIÊNCIA HOJE

Antropologia da criança

Com a palavra, as crianças
Livro discute diferentes visões sobre a infância apresentadas pela antropologia

Mário Cesar Filho

O universo infantil pode surpreender muitos adultos. Afinal, o que é ser criança? Um ser imaturo ou um sujeito social, capaz de atuar ativamente nas relações em que se engaja? Para a antropóloga Clarice Cohn, autora do livro Antropologia da criança , reconhecê-la é assumir que não se trata de um “adulto em miniatura” ou de alguém que se treina para a vida adulta. É entender que, onde quer que esteja, ela interage ativamente com os adultos, outras crianças e com o mundo, sendo parte importante na consolidação dos papéis que assume e de suas relações.

Este livro traz um mapeamento das várias abordagens sobre antropologia da criança, desde os primeiros estudos dos anos 1930 até os mais recentes. A autora discute ainda algumas questões pré-concebidas, como a imagem de que a criança é um ser incompleto, a ser formado e socializado. A partir dos anos 1960, os antropólogos perceberam que a diferença entre crianças e adultos não estaria na quantidade do saber, mas na qualidade – ou seja, a criança não sabe menos, sabe outra coisa.

Outra discussão central da obra envolve a definição do que chamamos de infância. Para muitos especialistas, como o historiador francês Philippe Ariès, essa noção é uma elaboração social e histórica do Ocidente. Ela foi construída ao longo dos séculos na Europa, simultaneamente com mudanças na composição familiar, nos conceitos de maternidade e paternidade, no cotidiano das crianças e principalmente na fase da educação escolar.

A criança e a infância têm sido foco de análise de vários campos do conhecimento, como pedagogia ou psicologia. O olhar antropológico pode ajudar a fundamentar essas pesquisas, rever os modelos pedagógicos vigentes e oferecer novos parâmetros para a educação escolar. A antropologia se dedica a compreender o ponto de vista do objeto estudado – no caso, ela busca saber como as crianças vivem e pensam o mundo, respeitando seu contexto sócio-cultural. Para isso, o antropólogo recorre a técnicas como a etnografia, passa a conviver com seu objeto de estudo e experimenta as mesmas situações.
Em seu mestrado em antropologia pela USP, a autora de Antropologia da criança estudou a concepção de infância e aprendizado entre os Xikrin (fotos: Clarice Cohn).

A obra mostra ainda como diferentes culturas lidam com a criança e o sentimento de infância. A autora oferece diversos exemplos vivenciados por ela durante o trabalho de campo realizado entre os Xikrin, no Pará – a concepção de infância e aprendizado desses índios foi o tema de seu mestrado pela Universidade de São Paulo. No livro, ela conta que eles deixam de ser criança apenas quando têm seus próprios filhos.

Antropologia da criança faz parte da série ciências sociais da coleção Passo-a-passo, editada pela Jorge Zahar. Escrito em linguagem acessível, o livro se deixa ler com prazer e funciona como uma introdução ao tema para leigos e interessados em geral. Para quem quiser se aprofundar em algum dos temas abordados, a autora traz sugestões de leituras e referências bibliográficas comentadas.
Antropologia da criança
Clarice Cohn
Rio de Janeiro, 2005, Jorge Zahar Editor
60 páginas
Revista CIÊNCIA HOJE

Na trilha da humanidade

Uma viagem de milhares de anos
Livro conta expedição do brasileiro que refez trajetória do homem pré-histórico da África até o Brasil

Mariana Benjamin

Seguir as pistas da evolução humana e refazer o caminho do homo sapiens ao se espalhar pelo planeta, partindo da África até chegar ao Brasil. Essa foi a mais recente aventura encarada pelo jornalista Airton Ortiz, que utilizou apenas transportes públicos para fazer essa viagem inédita. As descobertas e os episódios vividos por ele lhe renderam o livro Na trilha da humanidade , que faz parte, junto com outras expedições do escritor, da coleção Viagens Radicais. Durante três meses, o autor cruzou fronteiras perigosas e conheceu novas culturas, ao mesmo tempo em que visitou os sítios paleontológicos onde foram encontrados os principais fósseis que contam a história de 7 milhões de anos da humanidade.

As páginas do livro se revezam entre informações sobre a evolução humana, como as descobertas das diferentes espécies até o homem moderno, e histórias da expedição. Para refazer o caminho do homo sapiens , o jornalista partiu do Quênia, no leste da África, desceu para o sul do continente, depois seguiu para o norte, dobrando à direita no vale do Nilo, até chegar à Ásia. Em seguida, voou para o Alasca, caminho que há milhares de anos era possível fazer por terra, onde hoje fica o estreito de Bering. Por fim, o autor cruzou as Américas até chegar ao Brasil.

Em todo o livro, Ortiz se preocupa em manter uma linguagem clara e simples, sem muitos termos científicos, de modo a permitir o entendimento do leitor comum sobre o assunto. O escritor também se atém à descrição da cultura e dos hábitos dos lugares que visitou. Ele aproveita para ressaltar algumas questões que dominam os debates no mundo atual, como a mutilação genital de mulheres, os altos índices do vírus HIV na África e a miséria em que vive a maioria da população mundial.

Por concentrar temas polêmicos, a parte africana de sua trajetória é uma das que mais prendem a atenção do leitor. Ortiz retrata a extrema pobreza da região e suas conseqüências na vida das pessoas: corrupção, assalto, violência, fome etc. O que pensar, por exemplo, de um jovem que estava triste porque trocou duas de suas vacas por uma moça que, segundo ele, não correspondia ao valor dos animais? Ou como reagir diante de uma senhora com quatro filhos que viu pela primeira vez o seu rosto ao olhar uma fotografia tirada na máquina digital de Ortiz? São histórias como essas que fazem de Na trilha da humanidade mais do que um mero livro sobre a evolução humana para leigos, mas também uma publicação que estimula a reflexão crítica em seus leitores.

O texto é repleto de humor, o que faz com que a leitura se torne agradável, apesar do tema complicado e da necessidade de detalhes científicos, como o tamanho do crânio dos fósseis e as características diferenciadoras de cada espécie humana. Mas o autor às vezes exagera um pouco na tentativa de fazer piadas em seu texto. Escrever que, se um homo sapiens de cerca de cem mil anos estivesse “vestido à moda rastafári, poderia tranquilamente assistir a um jogo de futebol no Maracanã sem chamar a atenção dos demais torcedores” é um pouco demais.

No mais, o livro é uma boa opção para aqueles que desejam ter acesso a informações detalhadas sobre a história da evolução da humanidade em uma linguagem coloquial, ao mesmo tempo em que aprendem – e muitas vezes se chocam com – um pouco da cultura de diferentes lugares do mundo.

Na trilha da humanidade
Airton Ortiz
Coleção Viagens Radicais
Rio de Janeiro, 2006, Record
277 páginas
Revista Ciência Hoje

quarta-feira, 1 de fevereiro de 2012

A nova des-ordem mundial



Um momento de desordem mundial
Livro discute reformulação de territórios diante de novas influências políticas, econômicas e culturais
Fabíola Bezerra

Neste começo de século, assistimos a uma reformulação de fronteiras e influências político-econômicas no mundo. Essa nova forma de organização mundial, baseada na existência de redes, fluxos e conexões, exige mudanças no método geográfico tradicional de agrupar e separar territórios. O livro A nova des-ordem mundial apresenta propostas para entender a estrutura do espaço contemporâneo sob as dimensões econômica, política, cultural e ambiental e tece as causas dessa reconfiguração territorial com base em argumentos históricos.

Segundo os autores do livro, os geógrafos Rogério Haesbaert e Carlos Walter Porto-Gonçalves, os conceitos básicos de estudo da geografia vêm mudando por causa de uma série de acontecimentos que, nos últimos 15 anos, alteraram os rumos da humanidade. Para eles, o melhor exemplo para representar essa reformulação mundial seria o fato de que, enquanto as torres gêmeas do World Trade Center foram derrubadas nos Estados Unidos em 2001, as torres Petronas permanecem firmes em Kuala Lumpur, capital da Malásia, o que, de forma simbólica, revela a ascensão de um novo poder no Oriente. A tarefa de reorganizar as regiões do planeta em função dessas mudanças para fins de estudo torna-se então o grande desafio da geografia pós-moderna.

Haesbaert e Porto-Gonçalves afirmam no livro que a hegemonia do Ocidente e o pensamento moderno são incompreensíveis sem o conceito de colonização. No entanto, o mecanismo de exploração da Ásia e da África iniciado pelos europeus com a expansão marítima e comercial mudou a partir da Primeira Guerra Mundial. A busca por novas fontes de matéria-prima e mercados consumidores impulsionada pelo imperialismo gerou uma nova ordem, encabeçada pela Europa, pelos Estados Unidos e pelo Japão. Enquanto o comércio internacional crescia no início do século 20, a África, a Ásia e a América Latina viviam devastações ecológicas e sociais, por causa da nova divisão internacional do trabalho, que atribuiu aos países “centrais” a produção de tecnologia e a exploração dos recursos naturais e da mão-de-obra dos países “periféricos”. Essa geografia imperialista regeu o mundo por muito tempo, até o período em que os teóricos chamam de Pós-modernidade.

Essa nova era é marcada pelo advento da globalização e da internet, que permitiu maior integração internacional e criou um novo espaço público, o “território-mundo”, composto de uma sociedade mundial que compartilha os mesmos valores. A integração cada vez maior dos Estados e a soberania de um país através de um grupo – situação que os geógrafos chamam de capitalismo globalmente integrado – são demonstradas pela força dos blocos econômicos – como a União Européia –, que estabelecem uma concorrência acirrada entre si para manter a influência sobre seus parceiros comerciais. Nesse processo, interesses econômicos e políticos se mesclam o tempo todo.

No livro, os autores identificam um novo movimento de regionalização do espaço contemporâneo a partir de redes integradas ilegais de poder, como o tráfico de drogas e o terrorismo globalizado – por exemplo, a rede árabe Al Qaeda –, e de organizações não-governamentais (ONGs). Estas seriam talvez as melhores indicadoras da desordem na organização do território, por não atuarem em uma base específica. Segundo Haesbaert e Porto-Gonçalves, a existência dessas organizações civis comprova a crise do Estado, que não exerce o seu papel político em causas sociais.

O uso de termos mais complexos, além de referências constantes a teóricos, podem vir a confundir o leitor que não está habituado à linguagem acadêmica. No entanto, os próprios avanços e retrocessos do texto, bem amarrado pelos autores, transmitem a idéia principal do livro: a reconfiguração dos territórios devido a mudanças nas relações de poder e ao hibridismo cultural. Ler A nova des-ordem mundial pode ser um começo para entender esse movimento.

A nova des-ordem mundial
Rogério Haesbaert e Carlos Walter Porto-Gonçalves
São Paulo, 2006, Editora Unesp
160 páginas
Revista Ciência Hoje

Universo elétrico – a impressionante história da eletricidade



História eletrizante
Livro resgata a descoberta da eletricidade e a invenção dos aparelhos que exploram esse fenômeno
Igor Waltz




A eletricidade é algo tão presente na vida cotidiana que as pessoas mal atentam para a sua importância. Não param para perceber como um simples aparelho de celular permite a comunicação com pessoas em qualquer lugar do planeta, ou como, graças à tecnologia do radar, os aviões são capazes de percorrer sua rota sem colisões. Para discutir a importância da eletricidade na sociedade atual, o livro Universo elétrico, de David Bodanis, resgata a história desse fenômeno físico, desde as primeiras descobertas até os dias atuais.

Imagine que um belo dia uma pane elétrica geral assole o mundo. O problema seria resolvido nas primeiras horas com algumas velinhas e passatempos para compensar a falta de televisão. Se a crise fosse duradoura, no entanto, a situação logo ficaria traumática. Sem rádio, TV ou computador, não poderíamos receber notícias de lugares próximos; não seria possível ir muito longe de carro, pois os tanques dos postos de gasolina utilizam bombas elétricas; hospitais e aeroportos ficariam inoperantes. A internet ficaria inacessível. Em pouco tempo haveria fome, pois não seria possível estocar alimentos.

A relevância da eletricidade não se limita, porém, apenas ao progresso econômico e tecnológico. Sem a força eletromagnética a vida seria impossível, pois o oxigênio não seria capaz de se fixar na molécula de hemoglobina, as cadeias de DNA se romperiam facilmente e mesmo o Sol seria incapaz de brilhar.

As sucessivas descobertas que permitiram à humanidade entender e dominar o fenômeno da eletricidade são o eixo da narrativa de David Bodanis, professor de história da Universidade de Oxford, na Inglaterra, e autor de bem-sucedidos livros de divulgação científica. O autor explica de forma acessível as leis da eletricidade e mostra como elas viabilizam o funcionamento de diversos aparelhos.

Mas Universo elétrico vai muito além de um simples livro de divulgação científica. Não contente em explicar o desenvolvimento dos aparelhos elétricos, o autor relata ainda a história dos grandes inventores e o contexto social no qual viviam. Tal como em uma obra de literatura, Bodanis descreve histórias como a do escocês Alexander Graham Bell (1847-1922), que inventou o telefone para conquistar o amor de uma bela jovem surda; ou a do também escocês Robert Watson-Watt (1892-1973), que viu nos primeiros estudos sobre o radar a possibilidade de fugir de uma vida tediosa no interior da Inglaterra.

Compreensão incompleta
As primeiras invenções a explorarem a eletricidade, como o motor elétrico, o telégrafo e o telefone, foram feitas antes que a ciência pudesse compreender definitivamente esse fenômeno. O telégrafo, inventado na década de 1830, permitiu uma espécie de globalização precoce: as cidades distantes puderam se sincronizar, o que acabou por influenciar diretamente o mundo dos negócios. Jornais deixaram de se dedicar a fofocas e superficialidades e passaram a trazer noticias de correspondentes estrangeiros. Com a invenção do motor elétrico, elevadores permitiram o surgimento de grandes arranha-céus.

A história da eletricidade se desenvolve mais como uma teia do que de forma linear, e o vai-e-vem de personagens pode confundir o leitor mais distraído. Mas Universo elétrico é um livro cativante, mesmo para os leitores sem grandes conhecimentos sobre ciência. David Bodanis revela em linguagem fácil um mundo que está ao nosso redor o tempo todo, embora muitos não lhe dêem a devida atenção.

Universo elétrico – a impressionante história da eletricidade
David Bodanis (trad.: Paulo Cezar Castanheira)
Rio de Janeiro, 2008, Editora Record
294 páginas
Revista Ciência Hoje

O tempo que o tempo tem – por que o ano tem 12 meses

Astros para contar o tempo
Livro resgata a origem dos calendários e das medidas de tempo e sua ligação com a astronomia
Igor Waltz

A astronomia nasceu da necessidade do homem de contar o tempo. Como o movimento de corpos celestes, principalmente o Sol e a Lua, não sofre a interferência humana, esses astros foram usados desde as primeiras civilizações para marcar a passagem do tempo, seja para prever a época do plantio ou da colheita, seja para comemorar festividades religiosas. A história dessa relação intrínseca entre astronomia e passagem dos dias é o tema do livro O tempo que o tempo tem, de Alexandre Cherman e Fernando Vieira.

O livro é baseado em um curso sobre astronomia e tempo criado pelos autores, que são pesquisadores da Fundação Planetário da Cidade do Rio de Janeiro. A idéia surgiu no ano 2000, por conta da chegada do novo milênio, quando o assunto se tornou uma febre e ganhou os noticiários. Desde então, os astrônomos ministram o curso todos os anos bissextos.

Na primeira parte, o livro apresenta, em linguagem simples e bem-humorada, as discussões filosóficas sobre o tempo e os conceitos básicos da ciência astronômica. Os autores explicam o funcionamento de movimentos da Terra, como a rotação, em que o planeta gira em torno de si mesmo, e a revolução (que alguns chamam de translação), em que se desloca ao redor do Sol, e de que forma influenciam a contagem do tempo.

Dia sideral
Um calendário nada mais é do que um conjunto arbitrário de regras para organizar o tempo. Nem sempre, porém, essas regras conseguem refletir com exatidão o movimento dos astros. Aqui na Terra, por exemplo, temos a impressão de que o Sol precisa de 24 horas para dar uma volta completa em torno de nosso planeta, o chamado dia solar. Porém, um dia sideral, que é o tempo em que nosso planeta gira em torno de si, dura em torno de 23 horas e 56 minutos.

Pequenas imprecisões como esta podem se acumular ao longo dos anos e se tornar enormes, o que obriga os povos a readaptar suas “folhinhas” de tempos em tempos. A segunda parte do livro aborda as diversas mudanças sofridas desde o calendário inventado pelos antigos romanos até o calendário gregoriano, utilizado por nós atualmente.

Os autores tratam também de outras formas de marcar o tempo, como os calendários judaico e muçulmano, ainda em uso. Também são discutidos sistemas já extintos, como o calendário maia, que tinha unidades de tempo similares às nossas, como o dia e o ano (também com 365 dias), mas também outras mais extensas, como o alautun, que abrangia um período de mais de 63 milhões de anos.

A seção final do livro explica dúvidas comuns na cabeça de muita gente: por que o ano tem 12 meses e a semana, sete dias? E por que o horário de verão começa no Brasil durante a primavera? O tempo que o tempo tem é uma leitura rápida e bastante envolvente, com uma abordagem simples e direta de temas da astronomia com uma influência direta no dia-a-dia. Os autores satisfazem a curiosidade do leitor, com um assunto capaz de prender a atenção de todos.

O tempo que o tempo tem – por que o ano tem 12 meses
e outras curiosidades sobre o calendário
Alexandre Cherman e Fernando Vieira
Rio de Janeiro, 2008, Jorge Zahar Editor
144 páginas
Revista Ciência Hoje

Os soldados brasileiros de Hitler

O Brasil de Hitler
Livro resgata história de centenas de brasileiros que lutaram pela Alemanha na Segunda Guerra Ellen Nemitz

Atraídos pela promessa de uma vida melhor em outro país, muitos jovens deixam a família no Brasil para se aventurar no exterior. Muito comum nos tempos atuais, o fato ocorreu também durante a Segunda Guerra Mundial (1939-1945), quando cidadãos brasileiros foram recrutados para lutar em solo alemão ao lado das nações do Eixo, formado principalmente pela Alemanha de Adolf Hitler, pela Itália de Benito Mussolini e pelo Japão.

Mesmo após tantos anos, a história desses brasileiros que lutaram contra a pátria continuava ignorada pela maioria das pessoas. Agora, porém, em pleno século 21, virou tema do livro Os soldados brasileiros de Hitler, de Dennison de Oliveira, do Departamento de História da Universidade Federal do Paraná.
Carteira de membro da Jungvolk, subdivisão da Juventude de Hitler, do combatente brasileiro identificado como Güingo (foto de Dennison de Oliveira, a partir de original cedido pelo entrevistado).

Durante sete anos, Oliveira viajou freqüentemente a São Paulo para entrevistar os veteranos de guerra. Os ex-combatentes do 3º Reich (regime governado por Hitler) exigiram que as conversas não fossem gravadas e que seus verdadeiros nomes fossem mantidos em sigilo. “Isso decorre das ameaças constantes que eles sofrem”, justifica o autor.

O medo que ainda hoje ronda a vida dos sobreviventes da guerra reside no preconceito pelo fato de terem lutado contra o Brasil. Oficialmente, o governo brasileiro entrou na guerra para apoiar os Aliados (França e Reino Unido, entre outras nações). “As pessoas acham que se trata de nazistas perigosos que precisam ser denunciados”, conta o historiador. O livro traz, além de longos depoimentos de cinco ex-combatentes, um panorama completo do mundo antes do conflito, das relações entre Brasil e Alemanha por volta de 1940 e as conseqüências do pós-guerra.

Ao avaliar os fatos históricos, Oliveira deixa algumas opiniões pessoais transparecerem. Em algumas passagens, o autor lança mão da primeira pessoa para contar como foram os primeiros contatos com os entrevistados e dá um tom de relato pessoal ao texto. Ainda assim, procura ser o mais fiel possível ao transcrever o que ouviu durante longas conversas.
O soldado apelidado Der Amerikaner (ao centro) e dois de seus colegas de escola, mortos em combate (foto: Dennison de Oliveira, a partir de original cedido pelo entrevistado).

“Fui muito criticado por não contextualizar os depoimentos”, revela Oliveira. “Mas essa foi a melhor maneira de manter a integridade dos fatos.” Os textos também foram revisados mais de uma vez por todos os depoentes. Nas pouco mais de 100 páginas do livro, algumas ilustrações em preto-e-branco aproximam o leitor do mundo que a obra pretende trazer à tona.

Entre as muitas histórias resgatadas por Oliveira, uma chama a atenção: a de um soldado apelidado Der Amerikaner (o americano) que simplesmente se recusou a defender as forças alemãs. Os motivos principais foram o temor de represálias, por ser considerado ‘traidor da pátria’, e o medo de matar algum amigo que estivesse lutando em favor dos Aliados.

Planos futuros
Durante as pesquisas que realizou para escrever Os soldados brasileiros de Hitler, o historiador da UFPR obteve uma informação preciosa: não só os brasileiros lutaram pela frente alemã, mas também o contrário. Muitos germânicos se alistaram como soldados da Força Expedicionária Brasileira, a FEB, geralmente com o intuito de provar um nacionalismo muitas vezes questionado.

A propósito, essas histórias são o mote do próximo livro de Oliveira, intitulado Os soldados alemães de Vargas. Entre os personagens da obra, estão Max Wolff – melhor combatente brasileiro, considerado herói de guerra – e Bruno Larsen, também protagonista de um fato único. Diante de uma intensa e fracassada campanha para que os combatentes se rendessem, somente Larsen abandonou as tropas brasileiras. O novo livro deve ser publicado ainda em 2008.

Os soldados brasileiros de Hitler
Dennison de Oliveira
Curitiba, 2008, Juruá Editora
116 páginas
Revista Ciência Hoje

História da paz: os tratados que desenharam o planeta

A luta pela paz em retrospectiva
Livro resgata esforços para resolução de conflitos e convivência pacífica ao longo da história
Igor Waltz


Guerras entre nações, corridas armamentistas, degradação da natureza e outras situações de tensão marcaram a história da humanidade, em todas as regiões do nosso planeta. Na contramão desses conflitos, sempre houve personagens que dedicaram sua vida a evitar essas situações e se empenharam para construir um mundo melhor. A trajetória desses homens é o tema do livro História da paz, recém-lançado pela editora Contexto.

Organizado pelo sociólogo e geógrafo Demétrio Magnoli, da Universidade de São Paulo (USP), o livro reúne textos produzidos por autores como as historiadoras Maria Helena Valente Senise e Elaine Senise Barbosa, os diplomatas Celso Lafer e Marcos Azambuja, o deputado Fernando Gabeira ou o jornalista William Waack, entre outros. História da paz estabelece um diálogo com outro livro anteriormente organizado por Magnoli, História das guerras.

O livro aborda os esforços para alcançar a paz em diferentes períodos históricos, desde o Tratado de Tordesilhas (1494) até situações mais recentes, como o Protocolo de Quioto (1997). O livro mostra como a paz é construída não apenas nos intervalos entre guerras, mas também durante elas, ao contrário do que supõe o imaginário coletivo, que opõe de forma excludente os conceitos de guerra e paz.

Mas o livro organizado por Magnoli não se deixa levar por um discurso que banaliza o real sentido desse conceito. A obra mostra como a paz possível não equivale a uma utópica igualdade entre as nações, mas à estabilidade entre elas. Ao longo de suas páginas, é possível perceber que a paz é resultado de árduas negociações diplomáticas e se faz com acordos entre vencedores e derrotados que nem sempre satisfazem a todos e podem abrir caminho para outras situações de conflito.

Tratados de dominação
Esse foi o caso do Tratado de Versalhes (1919), que foi assinado entre os protagonistas da Primeira Guerra Mundial e marcou oficialmente o fim do conflito. Esse tratado impôs uma série de condições humilhantes à derrotada Alemanha – como a perda de suas colônias e o pagamento de duras indenizações pelos prejuízos causados na guerra – que, mais tarde, contribuíram para a ascensão do nazismo no país. Assim também foram os chamados “tratados imperialistas”, que impuseram a dominação européia sobre África e Ásia.

Mas o livro também relata situações em que a segurança do mundo esteve à frente dos interesses das nações, como a assinatura da Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948), o Tratado de Não-Proliferação Nuclear (1968) e o Protocolo de Quioto.

O tom acadêmico de alguns artigos pode frustrar o leitor com menos conhecimentos teóricos sobre história e ciência política, mas não compromete a leitura. História da paz é um livro fascinante, principalmente para aqueles que desejam entender como se configurou o mundo em que vivemos. Os autores mostram como foi e é realizado o trabalho de pessoas que fizeram a diferença para construir a civilização atual e mostram que, apesar de muito difícil, o caminho da paz é possível.

História da paz: os tratados que desenharam o planeta
Demétrio Magnoli (org.)
São Paulo, 2008, Contexto
448 paginas
Revista Ciência Hoje

A guerra santa revisitada


Por um palmo de chão
Livro organizado por autores catarinenses reúne estudos inéditos sobre o movimento do Contestado

Ellen Nemitz



Imagem clássica do movimento do Contestado, sangrenta disputa por terras entre os estados de Santa Catarina e Paraná que opôs populações locais às forças públicas no início do século 20. A foto mostra um piquete de ‘vaqueanos’, forças civis que combatiam os rebeldes (fotos: Claro Jansson).

Uma sangrenta disputa por terras ocorrida entre 1912 e 1916 na região de fronteira entre o Paraná e Santa Catarina marcou profundamente a história – e a geografia – desses dois estados do Sul brasileiro. Embora a questão social esteja na origem do conflito, fala-se em ‘fanatismo religioso’ ou ‘loucura coletiva’, como apontam os historiadores Márcia Espig e Paulo Pinheiro Machado na apresentação da obra A guerra santa revisitada – Novos estudos sobre o movimento do Contestado, lançada recentemente pela editora da Universidade Federal de Santa Catarina.

O livro, organizado por Espig e Machado, reúne artigos inéditos – e com visões diferentes – sobre o conflito, cujas conseqüências perduram até hoje, como, por exemplo, nas cidades de Rio Negro (PR) e Mafra (SC), divididas após os embates. União da Vitória (PR) e Porto União (SC), antes unificadas e pertencentes ao Paraná, também acabaram separadas.

O movimento do Contestado teve início em uma área onde hoje está o município catarinense de Irani, que começou a ser desbravado no século 19 por colonos vindos principalmente do Rio Grande do Sul. À época da chegada dos primeiros fazendeiros, as terras pertenciam ao município paranaense de Palmas, mas eram reivindicadas por Santa Catarina e também pela vizinha Argentina. Como a primeira batalha ocorreu nos campos de Irani, a 22 de outubro de 1912, pondo fim à vida de sertanejos, caboclos e militares e espalhando pânico pela região, Irani ficou conhecido como ‘berço do Contestado’.




O chefe rebelde Bonifácio Alves dos Santos (conhecido como Bonifácio Papudo, à direita, em primeiro plano) rende-se ao tenente Castelo Branco, do exército brasileiro.

A guerra envolveu rebeldes dos dois estados, que entraram em choque com as polícias locais e, posteriormente, com tropas do governo federal. Para pôr fim ao conflito, que se estendeu por quatro anos e deixou mais de 20 mil mortos, nada menos que metade do contingente do exército brasileiro foi deslocada para a região.

Apesar disso e de o movimento ter se espalhado por uma área de quase 40 mil km 2 , a imprensa da época não deu destaque aos acontecimentos. A I Guerra Mundial, que eclodiu em 1914, ‘roubou a cena’. Segundo Machado, “pouca gente sabe o que foi o movimento do Contestado e quais foram suas conseqüências”.

As informações que embasam os artigos do livro foram extraídas de documentos oficias – ‘ordens do dia’ do exército brasileiro ditadas pelos próprios comandantes das tropas – e de fontes diretas, escritos de pessoas que, de algum modo, tiveram relação com o movimento. Os autores lançaram mão ainda de jornais e outras publicações da época para obter muitas dos dados só agora trazidas a público.

“Há grande variedade de fontes pesquisadas, o que garante riqueza de detalhes dos fatos narrados”, diz Machado. Além de poder informar-se sobre o movimento, o leitor também encontrará na obra várias imagens originais – feitas em preto-e-branco – de soldados, jagunços, políticos e moradores da região do conflito durante o seu desenrolar.

Diferentes ângulos da guerra
A coletânea foi dividida em quatro eixos temáticos – a maneira mais adequada, segundo Machado, para reunir os textos selecionados. A primeira parte, intitulada “Conflitos, compadrio e luta por direitos”, contém três artigos. Neles, os autores falam sobre o impacto do compadrio na região, a luta por terras e as relações da população local com o exército.
Tropas do exército que lutaram na guerra passam por União da Vitória, no Paraná.


A segunda parte – “Milenarismo e memória” – discute questões como messianismo, religiosidade popular e destaca a figura do líder religioso do Contestado, que ficou conhecido como José Maria. O curandeiro Miguel Lucena de Boaventura, seu nome de batismo, foi mistificado pela população local e identificado com outro líder religioso, João Maria, que viveu antes e era tido como santo.

A penúltima parte, "Etnia e discurso regional", trata das etnias envolvidas na guerra – desde caboclos a imigrantes poloneses e alemães –, do discurso regional e da visão que a imprensa da época tinha do movimento. “Devido à cobertura tendenciosa da imprensa, o caboclo passou a ser visto como bandido”, destaca o organizador da obra.

A última parte de A guerra santa revisitada reúne comentários sobre as imagens do conflito e apresenta fotos de Claro Jansson (1877-1954), fotógrafo sueco que morou na região de Três Barras (SC) e União da Vitória na época da guerra. O último texto, de Dorothy Jansson Moretti, é uma apresentação do trabalho de Jansson, seu pai.

A idéia de organizar uma coletânea sobre o movimento do Contestado surgiu em 2003, quando vários historiadores interessados na questão se encontraram em eventos científicos promovidos pela Anpuh, a Associação Nacional de História. Machado e Espig perceberam que a reunião dos vários enfoques dados ao conflito renderia um livro de grande interesse. No início de 2008, o trabalho de seleção dos artigos estava pronto. O título remete à obra A guerra santa no Brasil – O movimento messiânico do Contestado, de 1957, um dos primeiros trabalhos de fôlego sobre o tema, realizado pela socióloga paulista Maria Isaura Pereira de Queiroz.
A guerra santa revisitada – Novos estudos
sobre o movimento do Contestado
Márcia Janet Espig e Paulo Pinheiro Machado (org.)
Florianópolis, 2008, Editora UFSC
331 páginas
Revista Ciência Hoje