domingo, 17 de novembro de 2013

Noel Rosa: o humor na canção



Filósofo do samba

Morreu aos 26 anos, mas foi um divisor de águas na canção popular urbana no Brasil. Livro recém-lançado analisa o uso estratégico do humor e da ironia na obra de Noel Rosa.

Gabriela Reznik

Publicado em 06/08/2012 | Atualizado em 06/08/2012


Livro explora sambas em que Noel Rosa usava humor e ironia para falar de coisa séria. A obra é temperada por histórias e curiosidades do universo artístico da época. (imagem: Luiz Fernando Reis/ CC BY 2.0 sobre caricatura de Guilherme Bandeira)

"Vivo escravo do meu samba / muito embora vagabundo". Se no imaginário popular da década de 1920 o malandro era aquele que não queria saber de trabalho, vivia do jogo e na orgia, na obra do cantor e compositor Noel Rosa (1910-1937) – autor dos versos acima –, o personagem recebe outra roupagem. Em sua música, ele está associado à imagem do sambista, que usa do humor e da ironia para expor sua condição marginal na sociedade e criticar os valores dominantes da época.

 
A análise é da especialista em educação Mayra Pinto, da Universidade de São Paulo (USP), autora do livro Noel Rosa: o humor na canção, lançado em maio deste ano, mês que marcou os 75 anos de morte do compositor.

Para quem busca uma leitura leve, o livro pode não ser o mais indicado. A autora faz uma análise aprofundada de canções do poeta da Vila, que perpassam sua trajetória musical nos sete anos de intensa produção, até sua morte prematura por tuberculose aos 26.

Por ser uma adaptação da pesquisa de doutorado de Mayra Pinto, o livro traz resquícios da linguagem e organização acadêmica – com introdução, desenvolvimento e conclusão –, tornando-se, muitas vezes, um tanto hermético para os não familiarizados com termos técnicos empregados na análise musical e literária.

Com base nos conceitos filosóficos do pensador russo Mikhail Bakhtin (1895-1975), a autora foca o papel da ironia na poesia de Noel, explorando os sambas em que apresenta uma abordagem crítica sobre a condição social do sambista, seu jeito “falado” de cantar e sua contribuição para uma nova formatação da canção popular urbana.
A autora foca o papel da ironia na poesia de Noel, seu jeito “falado” de cantar e sua contribuição para uma nova formatação da canção popular urbana

A autora enriquece a leitura com detalhes históricos e curiosidades do universo artístico no qual Noel viveu ao lado dos sambistas do Estácio, cujos principais representantes foram os compositores Ismael Silva (1905-1978) e Nilton Bastos (1899-1931).

Mayra Pinto avalia que o período foi um divisor de águas na trajetória do samba, cujo legado se estende aos dias de hoje. Com pé no samba de roda e no carnaval, o grupo do Estácio revolucionou o estilo da canção, “em que um estribilho fixo era cantado por todos enquanto um solista fazia os improvisos com letras variantes”. Antes, nos sambas tradicionais, não havia uma estrutura única.

No canto, Noel se destaca pelo domínio do discurso falado, cujo maior exemplo, segundo a pesquisadora, é a interpretação da canção ‘Gago apaixonado’. Contrariando o estilo usual da voz impostada, influenciada pelo canto de ópera, “ele se filia ao tipo de interpretação criada magistralmente por Mário Reis, que igualmente tinha uma voz não tão potente e primou por um canto mais ‘falado’”, conta a autora em trecho do livro.


O riso que denuncia


Noel Rosa trocou o futuro “promissor” de médico – cursou um ano da faculdade de medicina – pelo de sambista aos 20 anos de idade. A escolha teria sido determinante para que o samba assumisse um “centro emanente de positividade” na obra do poeta.
“Noel fundou uma voz que canta, amargamente, as vicissitudes de se produzir arte num país em que o reconhecimento do artista pobre não é algo fácil de ser conquistado”

“Noel fundou uma voz que canta, amargamente, as vicissitudes de se produzir arte num país em que o reconhecimento do artista pobre não é algo fácil de ser conquistado”, afirma a pesquisadora. “Mas canta alegremente, e com o orgulho de produzi-la apesar disso.”

Se os versos de Noel provocam riso, também deflagram tensões existentes entre o universo de pobreza e marginalidade do malandro e o mundo do trabalho formal. Segundo a autora, é nesse sentido que o humor se configura como uma estratégia de ‘disfarce’ ao permitir que um viés crítico permeasse suas canções sem deixar margem para censura – que se fazia fortemente presente naquele período. 


 

Na cena-estátua que homenageia o poeta, fincada em Vila Isabel, Noel é servido por um garçom. Apesar da morte precoce aos 26 anos, o compositor tem obra extensa, que marca a história do samba. (foto: Wikimedia Commons/ Junius – CC BY-SA 3.0)

No fim das contas, o livro é uma homenagem ao sambista que, em tão pouco tempo de vida, marcou significativamente a canção popular. Reconhecimento expresso nos versos póstumos compostos por Cartola: “Era o rei da filosofia / Fez da musa o que queria / Zombou da inspiração / Os seus versos ritmados / Por ele mesmo cantados / Tinham bela entoação”.

Noel Rosa: o humor na canção
Mayra Pinto
São Paulo, 2012, Ateliê Editorial
216 páginas
 REVISTA CIÊNCIA HOJE

sábado, 16 de novembro de 2013

A fórmula secreta


Duelos, segredos e matemática

Livro conta história de um episódio fundamental para o nascimento da matemática moderna e retrata uma das disputas mais virulentas da ciência renascentista.

Marcelo Garcia



Duas das mentes mais afiadas do século 16 e uma questão: revelar ou não ao mundo o segredo da fórmula secreta da resolução das equações cúbicas? (imagens: Tartaglia e Cardano/ Wikimedia Commons)

Fórmulas misteriosas, duelos públicos, traições, genialidade, ambição – e matemática! Este é o instigante universo apresentado no livro A fórmula secreta - Tartaglia, Cardano e o duelo matemático que inflamou a Itália da Renascença, último lançamento da coleção 'Meio de cultura', da Editora Unicamp. A publicação resgata a história dos italianos Niccolò Tartaglia e Gerolamo Cardano e da fórmula revolucionária para resolução de equações do terceiro grau. Numa viagem que começa no Egito Antigo, passa pela Grécia, Mesopotâmia e Pérsia até chegar à Itália do século 16, a obra reconstitui um episódio polêmico que marca, para muitos, o início do período moderno da matemática.
Apesar de tratar basicamente de uma história sobre equações, não é necessário nenhum conhecimento prévio para seguir os passos dos protagonistas na Itália renascentista, retratada em vivas cores pelo autor, o físico experimental Fabio Toscano. No fim do século 15, a prosperidade comercial tornou comum na região a existência de escolas de matemática – uma área então bem diferente da atual: as escolas focavam a resolução de casos específicos e não a identificação de regras gerais, por exemplo, e como não existia um sistema de símbolos estabelecido, as equações eram escritas com palavras.

Nesse contexto, acompanhamos a trajetória de Tartaglia. Pobre, autodidata e gago desde a infância – após receber um golpe de sabre no rosto –, ele faz sucesso na juventude em curiosos duelos de conhecimento com outros sábios, comuns na Itália do século 16 e decisivos para impulsionar ou destruir carreiras.
Num duelo de conhecimentos, Tartaglia resolveu, sem revelar o método, equações cúbicas tidas como impossíveis, feito que chamou a atenção de Cardano

Em um desses duelos, Tartaglia derrota com facilidade o veneziano Antonio Maria Fior ao resolver – sem revelar seu método – problemas de um tipo julgado insolúvel: os “cubos e coisas iguais a número” – equações de terceiro grau do tipo x3 + ax = b.

A notoriedade do feito vai aproximá-lo de outro brilhante intelectual de sua época, Gerolamo Cardano, obcecado pela ‘fórmula secreta’. Os dois constroem uma relação conturbada, marcada por amizade e hostilidade, que caminha rumo a um derradeiro e inevitável desafio. No processo, a matemática passará por avanços incríveis, com a descoberta de regras gerais para a resolução de equações do terceiro e do quarto graus, além de tangenciar a importante discussão sobre a necessidade de tornar públicos ou não conhecimentos científicos revolucionários.

Nas páginas da história

A partir de muitos documentos históricos e variadas fontes bibliográficas, Toscano não só apresenta a polêmica entre os italianos, mas mergulha fundo na história da álgebra. A viagem nos leva a conhecer contribuições e conquistas de egípcios, gregos e árabes para a matemática (como a substituição dos algarismos romanos pelos indo-arábicos e a descoberta da solução para equações do segundo grau), além de explorar a estagnação de quase dois mil anos que se abateu sobre o campo – quebrada por Tartaglia e Cardano.


Homem de muitos talentos, Tartaglia atuou em diversas áreas do conhecimento e foi, inclusive, precursor de um novo campo, a balística - apesar de nunca ter disparado um tiro. (foto: Flickr/ lndhslf72 – CC BY-NC-ND 2.0)

A minúcia com que Toscano reproduz os documentos históricos acrescenta um sabor especial à narrativa. Muito da relação entre Tartaglia e Cardano está registrado na profícua correspondência trocada pelos dois – em cartas privadas e comunicados públicos. A partir da transcrição desses documentos é possível vislumbrar suas inseguranças, seus ressentimentos e os subterfúgios que utilizam para atingir seus objetivos. No entanto, essa opção também representa o ponto fraco do livro, já que a reprodução exagerada e repetitiva dos originais acaba por tirar o ritmo da parte final da obra.
A partir das muitas cartas trocadas entre os matemáticos é possível vislumbrar suas inseguranças, ressentimentos e os subterfúgios que utilizam para atingir seus objetivos

Ainda assim, é preciso destacar a habilidade de Toscano em apresentar a matemática de forma simples. O autor consegue percorrer, sem grandes traumas, caminhos que vão da extração de raízes cúbicas a demonstrações geométricas mais complexas – sem dúvida uma tarefa das mais desafiadoras para qualquer iniciativa de divulgação científica ligada à matemática. No entanto, comete o pecado de não detalhar o valor e as consequências do feito de Tartaglia/Cardamo para a álgebra, que ficam apenas subentendidos.

Em última análise, A fórmula secreta apresenta-se como uma ótima opção para conhecer um pouco mais sobre a história da matemática e acompanhar um dos debates científicos mais inflamados do século 16 no campo. Mais do que isso, é uma obra de fácil leitura e uma boa mostra de que é possível abordar temas como álgebra de forma interessante, inteligente e acessível ao grande público.
A fórmula secreta - Tartaglia, Cardano e o duelo matemático que inflamou a Itália da Renascença Fábio Toscano
Editora Unicamp
248 páginas
 Revista Ciência Hoje

O imperador de todos os males: uma biografia do câncer


O câncer e a última cruzada

Ganhador do prêmio Pulitzer de 2011, livro conta histórias impactantes da doença e das pessoas que ajudaram a jogar luz sobre uma das mais longas guerras da ciência médica.

Marcelo Garcia


Com relatos esparsos, pouco conclusivos e de invariável pessimismo, o câncer se escondeu no silêncio e nas sombras desde a Antiguidade, até ser arrastado para a luz dos holofotes da mídia e da ciência no século 20. (foto: Futurilla/Flicrk – CC BY 2.0)

Milhares de biografias reunidas em mais de 600 páginas. Algumas breves, resumidas a poucas linhas. Outras servem de fio condutor para toda a narrativa. Juntas, formam um caleidoscópio de personalidades, sonhos, frustrações, pequenas e grandes derrotas e vitórias para descrever dois lados de uma única e poderosa história: a biografia da doença mais desafiadora que o homem já enfrentou e a cruzada moderna da humanidade para superá-la.
A obra nos leva às ‘origens’ do biografado, apresenta seus ‘feitos’ e obstinados antagonistas. A única ‘falha’ é não terminar com um ‘ponto final’

O Imperador de todos os males: uma biografia do câncer é, em certo sentido, a essência do gênero biográfico. Leva-nos às ‘origens’ do biografado, conta seus ‘feitos’, apresenta seus obstinados antagonistas e até desperta um certo fascínio inquietante por sua ‘personalidade’. A única ‘falha’ é não terminar com um 'ponto final' – claro que não por culpa do autor, o médico indiano naturalizado norte-americano Siddhartha Mukherjee.

Vencedora do prêmio Pulitzer em 2011, a obra é um trabalho jornalístico de pesquisa impressionante. Com uma linguagem simples e envolvente, a narrativa combina suspense, drama e até intriga política ao entrelaçar a experiência pessoal do autor e uma farta coleção de referências históricas e científicas. O ritmo do relato acompanha o ir e vir da pesquisa, ao explorar alternativas paralelas, recuperar histórias e estudos esquecidos no tempo – e até refletir certa estagnação pontual, como na quimioterapia do fim da década de 1980.

Apesar de pintar um quadro forte das vidas impactadas pelo câncer, a obra passa longe do clima sinistro que se poderia esperar e tem o mérito adicional de apresentar, de forma clara, conceitos científicos complexos. De processos intracelulares e genéticos até metodologias de testes clínicos, Mukherjee cria um manual das estratégias de guerra contra a doença, para leigos e iniciados, de dar inveja a Sun Tzu.


Luz e sombra

A história começa na infância do biografado: o indiano busca nas memórias do homem os primeiros vestígios do câncer. Papiros egípcios, estudos gregos sobre a bile negra, a desesperança de um médico do Império Romano, esqueletos em tumbas ameríndias e cadáveres do Renascimento, limpadores de chaminés, descobertas de uma polonesa na França, gás mostarda e fábricas de corantes alemãs – são algumas das pistas do passado de uma doença ‘fantasma’ e pouco registrada.


Emergimos desse mergulho milenar para destrinchar a história da anatomia, da química, da biologia e da medicina do câncer nos dois últimos séculos, seguindo os passos – e as intrigas – da nata da pesquisa na área. É impressionante notar como, até a metade do século 20, essa era uma guerra de cegos: ora descritos como geniais, ousados e infatigáveis, ora como compulsivos e obcecados, tateavam na penumbra à procura de uma ‘bala mágica’ capaz de destruir o câncer.

Com um entendimento perigosamente parco dos mecanismos da doença, muitas das primeiras estratégias utilizadas, como a mastectomia radical e primitivas alternativas de quimioterapia, forçavam os limites do conhecimento e da ética de sua época, por vezes com efeitos quase tão devastadores quanto o próprio câncer.

Pesquisadores que se dedicavam a estudar a biologia da doença e seu tratamento passaram décadas trabalhando de forma isolada; eram como ‘conhecidos’ que frequentam os mesmos lugares, mas voltam para casa sempre sozinhos – a analogia é do próprio Mukherjee e reflete uma realidade que só começou a mudar na década de 1980, com o avanço da genética e o desenvolvimento de terapias mais específicas e menos agressivas.


Uma jogada sagaz transformou o menino Einar Gustafson em Jimmy, garoto-propaganda da luta contra o câncer, e ajudou a colocar a doença na pauta política e social dos EUA. À direita, propaganda dos anos 1960, quando a pressão social sobre as empresas tabagistas era fomentada pelos lobistas anticâncer. (imagens: reprodução)

Outro ponto interessante é observar que as bancadas dos laboratórios são apenas uma das trincheiras dessa guerra. Na verdade, muitos dos grandes avanços só ocorreram quando a doença foi retirada das sombras à força, trabalhada na casamata do lobby político e exposta aos holofotes da mídia, transformando-se, só assim, no grande inimigo de uma cruzada moderna e definitiva.
Muitos dos grandes avanços só ocorreram quando a doença foi transformada no grande inimigo de uma cruzada moderna e definitiva

Mukherjee é um admirador do brilhantismo dos muitos ‘generais’ da frente anticâncer, como o patologista Sidney Farber e a socialite e lobista Mary Lasker, cujos esforços conjuntos colocaram a doença na pauta de discussão dos Estados Unidos.

Por outro lado, o livro também exalta a grandeza do biografado: poderoso, antigo e misterioso, o câncer é uma célula humana que leva às últimas consequências suas estratégias de sobrevivência – e cada pequena vitória sobre ele deve ser comemorada. Em síntese, O imperador de todos os males é uma obra rica, interessante e que desempenha seu papel nesse confronto milenar ao discutir abertamente e ajudar a desmistificar o câncer.

A trincheira brasileira

Era esperado, mas não deixa de ser curioso notar a pequena participação de coadjuvantes que não sejam norte-americanos ou europeus na obra – exceção feita a alguns pesquisadores de países asiáticos, muitos deles radicados nos Estados Unidos como o próprio autor.

É conhecido o pioneirismo dessas regiões no estudo do câncer e os Estados Unidos foram os primeiros a investir pesadamente no combate à doença, mas a ausência de brasileiros e latino-americanos é marcante.

O Brasil aparece apenas uma vez, em observações de um perspicaz oculista do século 19 sobre um câncer de córnea hereditário. Teria mesmo a pesquisa ao sul do Equador tão pouca relevância mundial?

O imperador de todos os males: uma biografia do câncer
Siddhartha Mukherjee
São Paulo, 2012, Companhia das Letras
648 páginas
 Revista Ciência Hoje

terça-feira, 5 de novembro de 2013

LIBERDADE



AMBIÇÃO E NOSTA LGIA
Flavio Moura
LIBERDADE,
de Franzen, Jonathan. Trad. Sergio Flaksman. São Paulo: Companhia das Letras, 2011.
Mesmo antes de sair nos eua, em setembro de 2010, Liberdade já era objeto de atenção. O livro anterior de Franzen, As correções, de 2001, fizera bastante barulho: ganhou, entre outros, o National Book Award, principal prêmio literário do país, e transformou Franzen numa das promessas mais auspiciosas da literatura americana. Mal começaram a sair as primeiras resenhas elogiosas de Liberdade, Oprah Winfrey incluiu‑o em seu clube de leitura, o Guardian pespegou‑lhe o epíteto de “livro do século” e a revista Time estampou na capa uma foto do escritor acompanhada da legenda: “O grande romancista americano”.
Parte do frisson em torno de Franzen tem a ver com essa obsessão pelo “Grande Romance Americano”. É um fetiche entre os autores de lá e uma espécie de santo graal da literatura: o grande autor é aquele que consegue transferir para o romance os pontos nevrálgicos da experiência do país. A trinca sagrada da prosa americana da segunda metade do século fez isso: John Updike, Phillip Roth e Saul Bellow devem boa parte de sua reputação ao modo como plasmaram a experiência dos eua num determinado recorte de sua obra. Em As aventuras de Augie March (1953), de Saul Bellow, por exemplo, lê‑se na primeira linha:
“Sou americano, nascido em Chicago…”. De saída estamos diante da tentativa de responder a essa pergunta: o que é ser americano?
Essa é uma tradição francesa do século xix, a do homem de letras empenhado em responder às grandes perguntas do seu tempo. Com a transformação dos eua em grande potência no século xx, a função se torna estratégica em face de uma experiência cuja ressonância assume escala mundial.
Franzen disputa o posto de herdeiro dessa tradição. O barulho da mídia é também reflexo da expectativa de que ele possa assumir o bastão dessa linhagem nobre em nome da nova geração. É importante lembrar que nessa transição ocorreram os atentados de 11 de Setembro.

Não é, portanto, apenas o lugar do novo grande romancista americano que está vago, mas o lugar do grande romancista capaz de dar sentido a uma experiência traumática. Em certa medida, um evento como esse contribui para injetar vitalidade à atividade de escritor, de pronto convocado ao papel de intérprete de seu tempo.
É uma ideia complicada. O que se pode esperar da literatura como forma capaz de plasmar essa experiência? Como a competição com as humanidades e a indústria do cinema, da internet e da televisão interfere na capacidade da literatura em dar sentido a esse debate? Esse livro aspira à condição de grande romance, mas o frisson em seu redor, para ser compreendido, deve ser visto ao lado do prestígio alcançado pelo romance no século xix e início do xx e da nostalgia em relação à centralidade de que já desfrutou um dia.
É simples identificar o que em Liberdade permite situá‑lo como herdeiro dessa tradição. São setecentas páginas que procuram tocar os nervos da experiência americana dos últimos trinta anos. Os governos
Reagan, Clinton e Bush, o terrorismo, a questão palestina, o crescimento econômico desgovernado, o aquecimento global, o conflito entre gerações, a mercantilização da cultura, a explosão do mercado financeiro, o sistema de saúde, o politicamente correto nas universidades. O cardápio é tão variado que por vezes lembra uma lista de tarefas a cumprir.
O que o salva da condição de manual é a habilidade de Franzen em atar esses temas às funções que desempenham na trama, que é bem urdida e evolui com naturalidade.
O fio é a transformação do casal Walter e Patty Berglund em ruína sentimental e moral. Ela vem de uma família liberal endinheirada de Nova York em que jamais se integrou. Não se interessava por livros ou política: era jogadora de basquete e se dedicava com ardor a isso, apesar do desprezo da mãe. Foi por ser jogadora que obteve uma vaga numa faculdade de segunda linha, em Minnesota, no início dos anos 1980.
Walter, seu colega na faculdade, era filho de pai alcoólatra e mãe trabalhadora, dona de motel de beira de estrada numa cidade do interior. Mas era o esforçado da família, o primeiro a fazer curso superior, o moço abstêmio, inábil com as mulheres e não particularmente bonito. Mas ele vence pelo cansaço, e eles se casam no fim dos anos 1980, têm um casal de filhos e adotam uma vida de família burguesa em Minnesota.
O fator de tensão entre os dois, desde a faculdade, é Richard Katz. Richard era o melhor amigo de Walter e ao mesmo tempo seu antípoda. Era bonito, sexy e inconsequente. Walter, por outro lado, era um exemplo de lealdade e um esteio para o desregramento do colega.
Desde aqueles anos, Patty cultivava uma paixão por Richard que não se concretizava em razão da lealdade entre os amigos. Resignada, Patty cedeu aos apelos de Walter menos por amor do que por falta de opção.

Ao longo de todo o livro, Richard permanece uma sombra para o casal. Muitos anos depois, numa casa de campo, Patty e Richard passam dois dias juntos e transam, por insistência de Patty. Um pouco depois, ao cabo de anos tocando para pouca gente e amargando fracasso atrás de fracasso, Richard grava um disco de sucesso e se torna uma figura hype no mundo da música.
Os dias que Patty passa com Richard e o sucesso dele mudam tudo na vida dos Berglund. Walter, com ciúme, torna‑se competitivo.
Ressentido com o silêncio do amigo, que parecia se afastar dele nesse período de bonança, muda de emprego e se aproxima de políticos de má índole. Patty, depois do caso com o amigo do marido, cai em depressão.
Há ainda a relação conturbada com os filhos. Joey, o mais velho, sai de casa na adolescência para morar com a namorada, a vizinha Connie Monaghan. Isso para desespero de Patty, que odeia a mãe de Connie e sobretudo o namorado dela. O sujeito é um machão truculento, vidrado em carros, armas, e simboliza o protótipo do americano tosco, da direita mais empedernida. É essa figura que vira influência para Joey:
depois de dois anos na casa do vizinho, ele vai cursar economia, sonha trabalhar em Wall Street, resgata suas raízes judaicas e vira um republicano envolvido com interesses de Bush na invasão do Iraque.
O que prende a atenção é essa espiral em direção à desintegração, ao fracasso da relação, à sucessão de passos em falso em que a vida do casal vai se transformando. A estrutura romanesca é essa. E o que Franzen consegue construir em redor dela constitui o espírito de época que o romance, de modo mais abrangente, tenta capturar em sua busca pela vaga de herdeiro da linhagem mais nobre da tradição literária americana.
A parte mais substancial é dedicada à er a Bush: são os dilemas pós‑11 de Setembro que aparecem com mais força e que Franzen procura examinar de modo detido. A trajetória de Joey é exemplar disso:
a descoberta do judaísmo e a vontade de explor ar essa identidade vêm num contexto de reação ao terrorismo, num movimento que parece acompanhar o renascimento da direita conservadora americana logo após 2001. Sujeito oportunista, frio e incapaz de afetividade, Joey é um retrato pouco lisonjeiro dos quadros que a causa republicana é capaz de cativar.
Vale o mesmo para a onipresença do discurso ambientalista. O sarcasmo é grande e ocupa boa parte da trajetória de Walter Berglund.
Desafiado pelo sucesso de Richard, Walter deixa o emprego numa unidade de conservação em Minnesota para encarar uma enrascada em Washington. Ele assume o Fundo de Conservação da Mariquita‑Azul, na verdade uma grande piada. O fundo é invenção de um bilionário do Texas, amigo de Bush e Dick Cheney, interessado em vender reservas para empresas que exploram a extração de carvão, nocivas e poluentes.
O tal fundo é uma cortina de fumaça, uma licença para destruir tendo como álibi a preservação da espécie. Ingênuo e bem‑intencionado, Walter cai na arapuca — e é o nome dele que vai parar no New York Times quando fica claro o que está por trás do fundo da mariquita‑azul.
Franzen é ornitólogo e adora observar pássaros, mas o ambientalismo do século xxi aparece em seu livro como tolice de gente bem‑intencionada. Há acidez no modo como ele trata o discurso em defesa do controle de carbono, contra o aquecimento global e o crescimento demográfico. A crítica aos republicanos e à direita é evidente, mas também o discurso politicamente correto é alvo de sarcasmo.
A Nova York dos círculos letrados e progressistas que ele retrata, da mesma maneira, está longe de ser ambiente estimulante. Estão todos munidos de smartphones e ipods, prontos para consumir as novidades
do mercado cultural sob a forma de “autenticidade” ou “atitude”.
O personagem de Richard Katz é o veículo das críticas disparadas ao intelectualismo bem‑intencionado e ao cinismo dos liberais endinheirados nos rooftops de Tribeca e do Chelsea. Não há autenticidade possível. A decisão de Katz de voltar a ser trabalhador braçal mesmo depois do sucesso de seu disco aponta nessa direção.
Nova York é também a síntese do que Patty odeia em sua família.
Democratas, judeus heterodoxos e de cabeça aberta, seus pais aparecem, logo no início do livro, a cometer uma enormidade: adolescente, Patty foi estuprada numa festa por um colega de escola. Mas o garoto era filho de doadores importantes da campanha eleitoral de sua mãe, de modo que os pais se reconciliam com a família do agressor.
Liberdade ganhou pecha de ingênuo, como se a crítica aos republicanos fizesse de Franzen um autor a serviço do bom‑mocismo da era Obama. O livro não pende para um lado só do espectro político nem faz proselitismo fácil, com uma ou outra exceção, como o modo esquemático com que retrata o sistema público de saúde, pauta evidente demais nos editoriais da imprensa democrata para não esbarrar no artificialismo. Mas não é ao acusar Franzen de esquerdista ingênuo que se fará boa crítica de seu trabalho.
O ponto em discussão diz respeito à forma do livro. Desse ponto de vista, é uma obra convencional. Da mesma maneira que a imagem de “homem de letras” em nome da qual a revista Time elogiava o autor é do século xix, também do ponto de vista formal Franzen se movimenta num registro antigo. Ele dialoga pouco com a tradição do romance do século xx. Esse é um repertório que a ele não interessou incorporar e que pode ser visto como fr aqueza de certo ponto de vista crítico. Está claro, contudo, que não teria obtido
essa ressonância se f osse autor de um livro experimental, e aí pode haver boa dose de cálculo.

Há dois exemplos a esse propósito. Um é o primeiro parágrafo, cartão de visitas para qualquer obra de ficção. Outro é a maneira quase imperceptível com que tenta variar a voz narrativa em situações que a estrutura parece pedir isso. As primeiras linhas do livro dizem o seguinte:
A notícia sobre Walter Berglund não circulou localmente — ele e Patty tinham se mudado para Washington dois anos antes e já não significavam nada mais para St. Paul —, mas o povo de Ramsey Hill não era leal à sua cidade a ponto de deixar de ler o New York Times. […] Seus ex‑vizinhos tiveram dificuldade em conciliar os adjetivos com que o Times o qualificava (“arrogante”, “presunçoso”, “eticamente comprometido”) com o vizinho generoso, sorridente e corado que viam pedalando até a condução para o trabalho todo dia […] Se bem que sempre tinha havido algo estranho na família Berglund.
Esse primeiro parágrafo é poderoso. Todas as setecentas páginas seguintes são dedicadas a mostrar como se deu essa queda que levou a família exemplar até as páginas de escândalo do Times, coisa que só acontece ao fim do livro, quando Walter atua como laranja dos republicanos interessados na extração de carvão. Mas é também um truque romanesco dos mais convencionais: o autor puxa um elemento decisivo do fim da história para as primeiras linhas, de modo a prender a atenção do leitor até que essa isca, lançada logo de início, se mostre em sua totalidade.
Vale comparar com uma abertura célebre, a de Anna Karenina, de Tolstói:
Todas as famílias felizes se parecem entre si; as infelizes são infelizes cada uma à sua maneira.
Na segunda linha, já se sabe que o narrador vai passar as páginas seguintes a contar uma desgraça familiar. Mais que isso: uma desgraça particular, que só poderia ter sido vivida daquela maneira.
Não é casual a comparação com Tolstói. Algumas páginas de Liberdade são dedicadas a paráfrases de Guerra e paz, que Patty lê em seu retiro na casa de campo. Como nos grandes livros de Tolstói, em Franzen o centro é também o drama familiar. Assim como na obra do escritor russo, há uma capacidade de conferir humanidade aos personagens que por vezes parece suspender a mediação do autor, como se a própria realidade se escrevesse de forma espontânea diante de nossos olhos.
As variações da voz narrativa são uma fragilidade mais evidente. Franzen sabe bem que o romance contemporâneo não pode prescindir de questionamento sobre a forma de narrar. Compõe seu livro,
assim, a partir de dois narradores: um é onisciente, em terceira pessoa, bem aos moldes do romance do xix. Outros trechos, contudo, são narrados por Patty Berglund. Por sugestão de seu terapeuta, ela escreve uma autobiografia, que faz as vezes de segundo capítulo e ocupa cento e tantas páginas.
É de estranhar a pequena variação entre os trechos do narrador convencional e aqueles narrados por Patty. Ela também escreve em terceira pessoa, com raras referências à “autobiógrafa”. E escreve com brilho, com passagens que funcionam nas mãos de um escritor de talento como Franzen, mas que não convencem quando se tem em mente que a voz é de uma dona de casa deprimida e ex‑jogadora de basquete.
Franzen tenta marcar a diferença: assim que acaba a autobiografia, entram parágrafos imensos, sem ponto final, como a indicar essa mudança. Mas são ocorrências episódicas, que não marcam o andamento do texto e deixam essa incompletude no ar.
Franzen não é um romancista acabado e é saudável desconfiar da histeria em torno de seu livro. Mas isso não é o mesmo que lhe negar os méritos. Há um lugar vago para o grande intérprete literário da alma americana pós‑11 de Setembro. O escritor que der sentido a ela por meio de uma imagem forte como a da família Berglund terá decerto destaque merecido.
É cedo para dizer se Franzen é essa figura, mas está sem dúvida entre aqueles capazes de aspirar a essa condição. Suas ambições de ser o Tolstói do século xxi podem suscitar desconfiança quanto à capacidade de renovar a forma do romance e também sugerem pouca disposição para uma discussão necessária sobre o papel que cabe hoje à ficção literária.
Mas a intensidade com que essas ambições são praticadas em seus livros é rara e digna de nota. E elas só podem fazer bem para a literatura num momento em que sua morte é decretada a cada dia.

Flavio Moura é sociólogo.
Revista Novos Estudos