Francisco Murari Pires
Prof. Dr. Depto. História - FFLCH/USP
Hartog, f. O espelho de heródoto. Trad. Jacyntho Lins Brandão. Belo Horizonte: editora da UFMG, 1999 481p.
Já para Aristóteles, Heródoto valia por designativo de história: "Não diferem o historiador e o poeta por narrar em verso ou prosa, pois, caso os escritos de Heródoto fossem postos em versos, não seriam menos alguma história com versos do que sem eles. Antes diferem nisto: um narra o que aconteceu, enquanto o outro o que poderia acontecer"1. Quando, cerca de dois séculos mais tarde, o dito de Cícero cristaliza essa identidade historiográfica, sua fama vem acompanhada por certa reserva: "na história o padrão porque tudo é ajuizado é a verdade, ao passo que na poesia geralmente é o prazer propiciado; contudo, nas obras de Heródoto, o Pai da História, e nas de Teopompo, encontram-se inúmeras lendas fabulosas"2.
Firmar, na narrativa reconstituidora dos acontecimentos passados, a expressão da verdade define o imperativo da história. Princípio epistemológico insistentemente reiterado pelos antigos, a configurar foros de tópos retórico, com cada novo historiador protestando que sua obra o realiza superiormente ao mesmo tempo em que denuncia as falhas de seus antecessores. Verdadeiro encadeamento de agonística historiográfica em que os erros de Hecateu são acusados por Heródoto, os de Hesíodo por Acusilau, os de Acusilau por Helânico, os de Helânico por Éforo, os de Éforo por Timeu, os de Timeu por Políbio, e os de Heródoto ... por todo mundo3.
A começar por Tucídides, seu sucessor imediato, quem primeiro impôs para os historiadores um absoluto dever de veracidade. Reagindo contra os desleixos de seus relatos na apuração da verdade - pelos poetas que a deformavam porque imbuídos de desígnios comemorativos engrandecedores, pelos logógrafos (contadores de histórias) que a preteriam por concessões ao agrado de seus auditórios -, Tucídides preceituou que o mítico fosse excluido da história. A gravidade de sua história, então, não seria por certo tão atraente se (des)apreciada por tais gostos e predileções, mas antes projetaria seu valor pelo saber verdadeiro aprendido sobre as ações humanas, as quais se efetuam no futuro semelhas ou análogas às do passado. Esse conhecimento, sentenciou Tucídides, "constitui uma aquisição para sempre, antes do que uma peça para um auditório do momento"4. Embora Heródoto não seja aqui expressamente referenciado, as alusões assim intrigadas foram claramente identificadas pelos antigos como respeitantes ao "Pai da História"5. E conceberam-se anedotas que diziam das leituras públicas que Heródoto dera de suas Histórias a encantar auditórios pelas cidades gregas: uma delas em Atenas onde fora agraciado com um prêmio de dez talentos; outra em Olímpia onde um jovem ouvinte comovera-se às lágrimas, ninguém menos, paradoxalmente, do que Tucídides, seu entretanto acerbo crítico posterior6.
De Ctésias, médico grego a serviço na corte persa de Artaxerxes II por fins do século V, a Plutarco, por meados do século II de nossa era, que compôs um ensaio expressamente dirigido a denunciar a Malignidade de Heródoto, avolumaram-se máculas denegrindo a reputação do historiador. Algumas acusações mais leves, compreendendo seus erros como devidos antes a ingenuidades de um espírito crédulo. Já outras exaltadas imputando-lhe faltas mais graves, agora difamado porque ignorante, parcial, mentiroso, falsário, plagiário ou imoral. Por toda a Antiguidade a memorização da (in)competência historiográfica herodotiana é assim ambivalentemente composta como a de um fundador da história, todavia mentiroso.
É só com o advento do espírito crítico moderno no Renascimento, entende Arnaldo Momigliano7, que emerge a consciência da contradição dessa fama. Então abre-se o debate erudito pró e contra Heródoto, uns empreendendo sua reabilitação, outros, mormente influenciados pelas diatribes do tratado plutarqueano, corroborando as apreciações condenatórias da Antiguidade Clássica8. Por cerca de três séculos nele se envolvem humanistas vários, desde antiquários, jurisconsultos, moralistas, a filósofos e teóricos políticos. No curso do século XIX, com a institucionalização setorizada do conhecimento histórico como disciplina fundamentada na proposição de uma precípua metodologia de cunho científico, a vertente acadêmica do pensamento historiográfico moderno de orientação positivista toma a frente das discussões. Uma questão logo predomina: a pesquisa das fontes informativas dos relatos herodoteanos, avatar de princípio metodológico que especialmente responde pela antiga interrogação do ajuizamento de veracidade9. Na esteira dessa abordagem historiográfica, desdobrando-se pelo nosso século, outras questões correlatas dos demais preceitos e regras dessa metodologia de crítica interna/externa de documentos se sucedem: a gênese da obra, por que polemizam unitários contra separatistas, com estes almejando cronologizar os distintos estratos de sua composição; a evolução intelectual de Heródoto intrigada pela projeção de suas várias identidades - historiográfica, geográfica, etnológica, artística-literária; os rastreamentos dos distúrbios da objetividade por interferências de parcialidades pessoais e políticas da biografia do historiador; as concepções de causalidade dos acontecimentos; e mais algumas outras tantas compondo o panorama de tradições epistemológicas que J.A.S. Evans denominou de a nova "mitologia herodotiana"10.
Quando, por meados da década de 1980, Guy Lachenaud traça o balanço bibliográfico dos estudos herodoteanos no século XX, os enigmas persistem: "No oceano dos comentários críticos a figura do Pai da história, como a do Velho do Mar, parece desafiar todas as capturas e se esquivar perpetuamente (...) um homem simples propenso à credulidade, um observador malicioso e desiludido, um viajante de curiosidade insaciável, um rapsodo em prosa, um apátrida insensível à história das nações, uma consciência do Ocidente, um agente do imperialismo ateniense, uma testemunha tardia da cultura arcaica, um pensador da história e do destino das nações e inclusive um teólogo"11. O repertório das óticas, quer intelectuais quer político-ideológicas, de interpretação da obra - como que marcas digitais de suas respectivas épocas de leitura - não é menos variado: "o triunfo do positivismo e da hipercrítica, a ascensão dos nacionalismos no entre-guerras, a exaltação do artista criador de uma obra profundamente unificada, a importância crescente da crítica formal, temática ou estruturalista, a crise da ideologia do sujeito criador, a evolução da ciência histórica que redescobre o interesse da história social, da anedota significativa ou das mentalidades coletivas"12.
Todo um emaranhado de problemáticas e vicissitudes históricas de abordagem da obra que, balizando os parâmetros da análise, cerca em limites estreitos a percepção da inteligência da narração herodotiana. A viagem hermenêutica de Hartog em Le Miroir d'Hérodote. Essai sur la répresentation de l'autre13navega ao largo desses litorais, evita seus baixios, desvia de seus encalhes, unicamente os lembra como saudação de adeus, pois parte à descoberta de outros horizontes epistemológicos. Por Hartog, o livro de Heródoto abre-se à leitura de uma antropologia histórica, na herança de Louis Gernet e pela convivência com Jean-Pierre Vernant e seus companheiros, ainda especialmente orientada pelos rumos descortinados pelos "ensaios sobre a escrita da história" de Michel de Certeau14. A dicotomia simplista, por vezes ensejando crítica judicatória maniqueísta que acusava ou a verdade ou a mentira na reconstituição e transmissão dos fatos narrados, é deslocada por análises primorosas que exploram significações mais sutis e refinadas de abordagem das mesmas histórias herodotianas. Assim, por exemplo, na estratégia cita de (não) enfrentamento campal do exército persa de Dario Hartog lê a prática do nomadismo que a fundamenta; ou na estória mítico-lendária que os seus vizinhos do mar Negro contavam sobre as origens da realeza cita no episódio do encontro de Héracles com a Equidna (mulher-serpente) lê as expressões do primitivismo no imaginário grego; ou na narrativa acerca das Amazonas depreende as complexidades do sistema em que interagem guerra e casamento no quadro institucional helênico.
Distanciamento e deslocamento epistemológico da nova leitura que por vezes alcança implicações de irônica inversão. As maravilhas apresentadas pelas Histórias eram desapreciadas pelos eruditos antecedentes como (in)credulidades devidas à cândida ingenuidade infantil pelo ajuizamento crítico que denuncia por elas o Heródoto mentiroso que frustra o verdadeiro historiador, por cujo dever historiante elas deveriam ser antes excluídas da história. Ora, arrazoa Hartog, na medida mesma em que as maravilhas compõem rubricas do relato de viagem, elas conferem à narrativa herodotiana projeções persuasivas de veracidade e credibilidade: "o narrador não pode deixar de usar essa rubrica que o público espera: se a omitir, arruinará de uma vez seu crédito. Tudo se passa como se estivesse em ação o seguinte postulado: nesses países distantes (ou nesses países outros), não pode deixar de haver maravilhas-curiosidades" (p. 246). "Tradução da diferença entre aquém e além, o thoma produz finalmente um efeito de realidade, como se dissesse: eu sou o real do outro. Com efeito, na esfera do outro, as coisas, os érga não podem ser menos do que thomastá. Nesse postulado repousa sua verossimilhança. Na medida em que sua presença na narrativa produz um efeito sério, na medida em que cria um efeito de realidade (e há o efeito sério apenas porque há efeito de realidade), enfim, na medida em que repousa no olho-medida do viajante, o thoma é bem um procedimento para fazer-crer, desenvolvido pela narrativa de viagem" (p.251).
Tarefa ingrata para o zelo de rigor exaustivo do resenhista e, pior, mutiladora para a melhor inteligência criativa da obra resenhada, resumir ou compendiar em itens e tópicos redutores toda a rica trama de reflexões inovadoras e percucientes que O Espelho de Heródoto enseja a seus leitores. Mas dado, por um lado, que O Espelho é uma "viagem em Heródoto que, à semelhança de seu objeto primeiro, o nômade, não é nem fechada sobre si mesma, nem acabada", e que antes dispõe "um convite a levar-se mais longe a investigação, recolocando-se a questão do efeito do texto de história" (p.39); e, por outro lado, assumindo com Hartog citando Claude Lefort a proposição de que "as interpretações sucessivas não fazem parte menos efetiva de Heródoto que o próprio texto das Histórias, posto que a obra sempre nos dá mais para pensar no espaço que lhe abre o pensamento dos outros (p.31), nesta nossa leitura em resenha apenas indiciaremos uma ou outra trilha desse percurso hermenêutico desdobrado por Hartog, perseguindo algumas questões tomadas ao princípio e fim de sua interpretação, as quais mais particularmente instigam esta nossa parcial reflexão. E mesmo que ao risco de incorrermos nas mazelas do encargo de intérprete a que Hartog argutamente adverte citando Jonathan Swift: "os comentadores não se aproximam jamais dos infernos em que estavam os autores que eles tinham glosado, por vergonha e por remorso de ter tão horrivelmente deformado seu pensamento, ao explicálo às gerações posteriores" (p.15). Assim entretanto arriscamos, pois, como assevera Paul Ricoeur, já não dialogamos mais com o Autor mesmo, mas com seu texto: "Em primeiro lugar, a escrita torna o texto autônomo relativamente à intenção do autor. O que o texto significa, não coincide mais com aquilo que o autor quis dizer. (...) Em outras palavras, graças à escrita, o "mundo" do texto pode fazer explodir o mundo do autor"15.
A viagem principia pelo lógos cita e por ele busca depreender "a construção de uma figura do nômade que torna pensável sua alteridade" (p.227) no mundo da pólis, neste espaço de destinatários helênicos para os quais a narração herodotiana está voltada. Mas, para "dizer o outro", dotando de credibilidade sua inscrição narrativa no mundo do destinatário, o historiador confronta-se com "um problema de tradução": remeter o que de princípio é "diferente, alteridade compacta de sentido opaco" (p.227), o bárbaro, para "os códigos de inteligibilidade do mesmo", a identidade helênica.
Hartog analisa então "como a narrativa constrói a figura do outro" (p.227), "como ela o traduz e faz com que o destinatário creia no outro que ela constrói" (p.228). Pois, "como, de modo persuasivo, inscrever o mundo que se conta no mundo em que se conta? Esse é o problema do narrador. Ele confronta-se com um problema de tradução" (p.229).
Assim Hartog delineia, em ação nas Histórias de Heródoto, uma "retórica da alteridade", "capturando suas figuras, desmontando seus procedimentos", em suma, "reunindo as regras através das quais se opera a fabricação do outro" (p.228), "uma retórica da alteridade que é uma operação de tradução: visa transportar o outro ao mesmo" (p 250). A "retórica da alteridade" inclui como principais figuras e procedimentos narrativos a inversão (a alteridade transcrita no antimesmo: "o outro é o mesmo, só que invertido"), mais a comparação e a analogia, com o que a narração "faz ver o outro filtrado no mesmo". E se o "relato de viagem dispõe-se por relato fiel, deve comportar uma rubrica: thoma, maravilhas, curiosidades", o que compõe mais outro desses recursos retóricos, bem condizente com o princípio axiológico delarado por Heródoto logo no Proêmio. Consoante essa retórica, quatro marcas de enunciação do sujeito narrativo balizam os efeitos de veracidade do relato: eu vi, eu ouvi, eu digo, eu escrevo. Por elas o historiador firma todo o alcance declaradamente pretendido para a veracidade de sua narrativa porque atende aos reclamos de seu dever historiante: por vezes ajuiza a verdade dos informes, por vezes adverte sua incredulidade, por vezes meramente os expõe, por vezes deixa em suspenso esse juízo remetendo-o para a decisão do ouvinte/leitor. E por tais modos narrativos almeja persuadí-lo pela ambiguidade mesma dessa sua retórica discursiva.
E, como na oratória antiga antecipadamente respondendo a uma eventual crítica que denunciasse a falta de uma percepção totalizante da obra herodotiana, Hartog termina sua reflexão abordando a "questão do poder, do poder bárbaro, do poder régio (...) que, face ao mundo da cidade, atravessa o conjunto das Histórias e constitui uma peça importante de sua organização". Mas o poder régio, bárbaro, especialmente persa pelas Histórias, tem um par, o tirano (grego), seu duplo especular no mundo da pólis. Pelo "cruzamento dessas duas imagens constuitui-se a representação do poder despótico". E as histórias do despotismo revelam uma essência hibrística: "o despotes é presa do desejo, éros (...) desejo sexual, desejo do poder (...) desejo excessivo, cuja lei é a transgressão". "O déspota não consegue impedir a si mesmo de violar os nómoi, quer sociais, religiosos ou sexuais". Assim, por excelência despótica, eis Cambises entre os reis persas ou Periandro entre os tiranos gregos. Então, "homem ímpio e criminoso", cuja crueldade de "poder se exerce sobre os corpos mesmos de seus súditos por cortes, incisões, mutilações, como o senhor que marca seus escravos". Déspota, "receptáculo de todas as perversões". Mas, histórias do poder despótico, porque lugar mesmo da hybris, compõem reiterações de um destino certamente ruinoso: "desmedida que, amadurecendo, produz a espiga do erro funesto, cuja colheita é feita apenas de lágrimas". "Os déspotas devem terminar mal".
Pelo olhar grego do espelho herodoteano através da estratégia hermenêutica da leitura de Hartog projeta-se, pois, uma visão inteligível do bárbaro. Assim, pela narrativa da guerra movida por Xerxes contra a Hélade pode-se compreender a expedição de Dario contra os citas. Todo um nexo de "injunções narrativas" por "convergências e retomadas" estabelece os ecos episódicos da leitura. Em ambas as campanhas, iguais ambições de conquista que as finalizam por um mesmo desígnio de dominação da Europa pela Ásia a realizar o destino imperial da realeza persa. Então, expedições similarmente iniciadas por travessia de fronteira, ultrapassagem de limiar geográfico-estatal: Dario que lança uma ponte sobre o Bósforo para ganhar os campos citas, Xerxes que constrói uma outra, de barcos, sobre o Helesponto a invadir a Hélade por rotas setentrionais. Também igual solene princípio um tanto ritual de ação beligerante, devidamente assinalado pela pausa meditativa do rei persa, a admirar, pela contemplação do obstáculo grandioso da natureza por ele assim ultrapassado e dominado - o mar Negro por Dario, o Helesponto por Xerxes -, a monumentalidade divinizante de seu poderio contrastada à efemeridade da condição humana. Guerras de conquista imperial que, todavia, frustram-se por semelhos desastres de fugas vergonhosas do suzerano, Dario escorraçado pela perseguição da cavalaria cita, Xerxes pela da frota naval grega. Análogas manifestações de malignidade despótica, eivadas de perversidade, por um soberano que atende à solicitação piedosa do súdito apenas por falsa complacência: a Eóbazo que modestamente lhe rogara poupar pelo menos um de seus três filhos do destino lutuoso daquela guerra, Dario concedeu-lhe graça magnânima de antes entregar-lhe todos ... enforcados; similarmente procedeu Xerxes ao pedido de Pítio no sentido de que livrasse da campanha seu filho primogênito dentre os cinco nela empenhados, ao que o rei concedeu por maligna inversão, mantendo vivos os outros ... mas matando justo aquele, cujo cadáver despedaçado ao meio fez então expor ao cortejo de seus comandados em horrenda lição de selvagem despotismo. Análogas cegueiras de reis obcecados por pretensões hibrísticas de dominação universal, os dois surdos às advertências do mesmo conselheiro, Artábano, que primeiro intentara fazer valer os préstimos de sua sapiência experiente ao irmão, Dario, e depois ao sobrinho, Xerxes, a ambos acautelando contra a estupidez daquelas guerras. Idênticas ridicularizações anedóticas do pretenso poderio guerreiro do exército persa, similarmente menosprezado pelas manifestações de inabalável impavidez de seus adversários, os citas contra Dario, os gregos contra Xerxes: enquanto os citas desinteressam-se por encetar a batalha campal com que Dario insistentemente os desafiava preterindo-a no último momento pela melhor diversão de entregar-se à caça da lebre que justo naquele hora cruzara o campo entre os dois exércitos, os gregos (não) reagem ao avanço de Xerxes que já cruzara as Termópilas e passara por Artemísio descuidados de maiores preocupações guerreiras, antes entregandose às celebrações dos festejos olímpicos em que empenham-se acirradamente em disputas por ganhar uma coroa de oliveira!
Assim, entende Hartog, a guerra cita de Dario e a expedição de Xerxes contra a Grécia espelhadas pela narrativa herodotiana compõem reiteração da essência imperial ruinosa da realeza persa, com aquela "prefigurando" esta ou esta "repetindo" aquela, "como se o poder dos Grandes Reis fosse uma máquina voltada para a repetição: uma sorte de compulsão em afirmar o próprio poder para, afirmando-o, destruí-lo" (p.75-76). Pelo fato bélico ocorrido no espaço helênico compreende-se o outro passado em seu exterior bárbaro, pois, sustenta Hartog, "as Guerras Médicas de Heródoto (posteriores na narrativa) desempenham, com relação à guerra de Dario, um papel de matriz narrativa e de modelo de inteligibilidade para o destinatário" (p.48). E, de modo ainda mais incisivo, a interpretação de Hartog também assevera: "a guerra cita não é, com efeito, inteligível senão através do modelo fornecido pelas Guerras Médicas. Compor a narrativa dela implica, pois, empregar os esquemas elaborados na Grécia, sobretudo pelos atenienses, para dizer o que foram as Guerras Médicas" (p. 74).
Então, a estratégia da guerra cita de (não) enfrentamento do exército de Dario é dada a entender pela estratégia ateniense, mais precisamente de Temístocles, de oposição ao de Xerxes invasor da Hélade: movimentos de fugas e recúos mais recusas de combate dissimulam tramas ardilosas por que se preparam emboscadas e se efetuam outros modos de manobras guerreiras. A estratégia de Temístocles opera no âmbito da métis, a inteligência astuciosa. Já os citas, em sua estratégia similar, praticam a guerra pelo hábitos do nomadismo, seu "verdadeiro fundamento". De modo que "as injunções narrativas tendem a fazer dos citas atenienses" (p.92), e em contrapartida o que a Pítia do oráculo de Delfos "aconselha aos atenienses é a escolha de uma estratégia cita" (p.87).
E, todavia, assim descortinando uma nova inteligência da narração herodotiana, de que acima apenas destacamos alguns tópicos, a riqueza da leitura de Hartog é tanto mais instigante porquanto desperta outros questionamentos. Pois, nas Histórias tem-se uma representação do poder despótico e de seus projetos históricos imperiais apreendidos pela inteligibilidade do olhar grego. Mas, olhar grego tout court, mesmo que aureolado como "o dos gregos animados pelos melhores sentimentos"? Qual olhar?
Ateniense, certamente, para as Guerras Medas, tanto cuidadoso de preservar a reputação política antitirânica dos Alcmeônidas em Maratona, quanto em especial ecoando os temas arrazoados pelo discurso temistocleano para a resistência beligerante em Salamina (a defesa da liberdade, a união helênica, a salvação da Hélade). Mas, ao apenas identificarmos as marcas dessa sua emergência originária, alcançase a plena consciência crítica das tramas de memorização histórica que a narrativa herodotiana sedimenta? Por que são as razões apresentadas por esse discurso ateniense os que definem a expressão mesma da identidade helênica? Porque ele avoca em seu nome ser a projeção desse olhar "nacional"? Obliterese, então, dessas histórias a inteligibilidade que as razões discursivas do olhar lacedemônio sustentara contra ele, propugnando antes por retroceder a linha de resistência para o ístmo de Corinto, abandonando a Ática ao bárbaro para agora cuidar da preservação do Peloponeso (Lacedemônia)? Afinal, argumentara então o comandante espartano, fora Atenas quem, participante do incêndio de Sardes, atentara contra o poderio persa a mobilizar agora sua ira em punição vingativa. Ignore-se, pois, por essa equação que eleva as razões do discurso ateniense como a expressão da identidade helênica, a dialética dos interesses parciais de um mundo antes cindido em cidades antagônicas, cada uma mormente voltada para a sua salvação, e mesmo com o sacrifício das outras? Do jogo retórico desse comprometimento de parcialidades políticas operado pela dialética que opõe avocar o interesse da comunidade helênica contra o de uma pólis em particular diz exemplarmente o episódio do julgamento espartano por que se decidiu a sorte de Platéia nos inícios da guerra do Peloponeso, consoante as representações com que o memorizou discursivamente a narrativa tucidideana. A sentença, em princípio, estava politicamente selada de antemão, pois Tebas, a opositora de Platéias, era aliada de Esparta, ao passo que Platéia o era de Atenas. Tucídides, todavia, entendeu expor as razões retóricas por que ambos intentaram justificar seus atos. Platéia arguiu em sua defesa os serviços por ela prestados no passado em prol da salvação da Hélade, quando a invasão persa ambicionara escravizá-la. Mas o questionamento por que o juiz espartano silenciou seu arrazoado, em exemplar atualização de laconismo, fez voltar contra ela seus próprios argumentos, taxativamente a condenando: que Platéia lhe respondesse, mesmo assim, o que fizera a favor de Esparta? Comunidade helênica contra pólis singular compõe equação de conveniência retórica ambígua, que nela e por ela circunstancialmente joga união contra cisão e vice-versa.
A transparência fulgurante da inteligibilidade dessas histórias consoante o olhar do discurso ateniense se dá contra o silenciamento das vozes de outros discursos que, todavia, o contradizem. E pelos dizeres destes outros discursos, emergem outras inteligibilidades, afloram também outros sentidos para os mesmos fatos: cisões, antagonismos, dissensões, egoísmos, pânicos, fugas, traições, medismos de um mundo grego sob a agressão aterrorizante do exército persa. E todos esses sentidos transcritos também, mesmo que subliminarmente à construção narrativa tramada por aquela inteligibilidade dominante, nas memórias históricas herodotianas. A obliteração destes sentidos se dá por uma operação de hermenêutica teleológica que projeta um sentido do acontecimento final, especialmente a ótica temistocliana do episódio de Salamina, como o sentido unívoco que persistentemente se cumpre desde o princípio e para todo seu desenrolar.
Dialética similar de memória de brilho fulgurante a ofuscar a consciência crítica de outras visões que opera também na construção narrativa da representação do poder despótico, essencialmente bárbaro. Pois, em e pela narração herodotiana, tanto o rei bárbaro quanto o tirano grego são memorizados por duplo registro, por episódios que contam seus atos transgressores contra outros que revelam justiça, sacrilégios contra reverências piedosas, cegueira desvairada contra discernimento sapiente. Duplo registro narrativo de memória dominante contra recessiva16- tanto por histórias de dizeres centrais contra dizeres marginais quanto por formulações de lógos sobreposto a muthos obliterando, desviando e transpondo seus sentidos que, na apreciação da questão do poder régio de essência despótica, parece estar ordenado, todavia, por uma cisão ideológica: predominantemente apresenta a figuração do rei/tirano virtuoso para o tempo de fundação de um poder dinástico, contra o déspota vicioso para o tempo de sua liquidação, assim memorizando justificações ideológicas tanto como princípio e fundação do poder quanto de seu fim e derrubada histórica.Assim o supõem as histórias herodotianas de Ciro contra as de Cambises, de Dario contra as de Xerxes, de Cipselo contra as de Periandro, de Pisístrato contra as de seus filhos. Da geração do pai fundador para a dos filhos degenerados e monstruosos perfaz-se a história da realeza que no mito de Édipo exemplarmente (con)funde pelo mesmos atos as virtudes da excelência régia (o matar o rei velho, Laio, e o fecundar a rainha, Jocasta) com seus mais horrendos crimes (parricídio e incesto); e que similarmente (con)funde na mesma pessoa as figuras do pai com a do filho enquanto princípio e fim do poder, pois, como apontou Jean Pierre Vernant, em Édipo, porque marido de sua própria mãe, tem-se o pai e o filho de si mesmo, a assim corporificar nele próprio o saber/ignorância da visão/cegueira que opera a (irre)solução do enigma da condição humana figurada pelo ser de três modos de locomoção a simbolizar as três idades por que se perfaz o fato da mortalidade.
As imagens fulgurantes refletidas pelo espelho herodoteano não se dariam então pela sobreposição de sua memorização dominante contra o fundo opaco de suas memórias recessivas? E a luz que a visão do espelho herodoteano projeta, por essa dominância branca de fulgurante inteligibilidade no âmbito da memória histórica, não poderia ser analisada pelo prisma de uma crítica que decompusesse as cores recessivas assim nela apagadas porque absorvidas através do olhar grego unívoco e homogeneizante assumido como o olhar do Espelho?
1 ARISTÓTELES. Poética, IX.
2 CÍCERO. Leis, I.1.5.
3 FLÁVIO JOSEFO. Contra Ápion, I.3.
4 TUCÍDES. A Guerra dos Pelopenésios e Atenienses, I.22.
5 LUCIANO. Como escrever história, 42; escoliasta de Tucídides, I.22.
6 MARCELINO. Vida de Tucídides 54; Suidas, s.v. Tucídides;s.v. organ; Plutarco, Malignidade de Heródoto, 26.6.
7 "La Place d'Hérodote dans l'histoire de l'historiographie". In: Problèmes d'Historiographie Ancienne et Moderne, Paris: Gallimard, 1983. p. 169.
8 Idem, ibidem, p. 176; A. Hauvette, Hérodote. Historien des Guerres Médiques, Paris, 1894. p. 114.
9 HAUVETTE. obra citada, p. 116.
10 "Father of History or Father of Lies: the reputation of Herodotus". The Classical Journal, 64 (1968). p. 11-17.
11 "Les études hérodotéennes de l'avant-guerre à nos jours". Storia della Storiografia, 7 (1985). p. 6.
12 Idem, ibidem, p. 6.
13 Primeiro publicada em 1980, com uma segunda edição revista e ampliada em 1991, de que deriva a presente edição brasileira O Espelho de Heródoto por competente e elegante tradução de Jacyntho Lins Brandão.
14 Vejam-se as indicações de BURKE, P. A Escola dos Annales. Trad. N. Odália, São Paulo, Unesp, 1991. p. 95, e de DOSSE, F. A História em Migalhas. Trad. D.A.S. Ramos, Campinas, Ensaio, 1992. p. 89. O próprio Autor também lembra, no prefácio da edição de 1991, algumas indicações dos marcos que balizam o campo de reflex(ã)o epistemológica do Espelho: "A essa distância, O Espelho de Heródoto surge-me como uma experiência de leitura. Era o tempo em que os historiadores (ou, pelo menos, certos historiadores), cansados de contar, aprendiam a ler; em que a antropologia histórica e a história do imaginário se preocupavam com as margens mais que com o centro, mais com a alteridade que com a identidade; era o momento em que o problema da enunciação vinha renovar a abordagem estrutural dos textos, tendo acabado de aparecer L'Écriture de l'Histoire, de Michel Cereteau" (p. 16). Razão por que parece-nos equivocada a incorporação do Espelho de Heródoto no mesmo barco de diatribe crítica que W. Kendrick Pritchett dirigiu contra a vertente de leituras herodotianas por ele definida como The Liar School of Herodotus (Amsterdam, Gieben, 1993), ao lado, por exemplo, de Detlev Fehling (Herodotus and his Sources, translated from the German by J.G. Howie, Leeds, Francis Cairns, 1989): porque os horizontes epistemológicos em que se descortina a leitura de Hartog se situam em outro plano teórico é abusivo, enquanto crítica, ignorar tal diferença e redutoramente cobrar dela critérios e princípios que respondem por horizontes epistemológicos dos quais ela antes se dissocia e contrapõe.
15 RICOEUR, P. Interpretação e Ideologias. Tradução de H. Japiassu, Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1977. p. 53.
16 Derivamos a inspiração para as concepções de memória dominante/recessiva das reflexões tecidas por Paul-Laurent Assoun em Marx e a Repetição Histórica (Trad. W.S. Lobato, Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1979); já "fulguração" advém de um artigo de Carlos Alberto Vesentini ("A Fulguração Recorrente". Tudo é História, São Paulo 2, 1978).
Revista de História - USP
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