quarta-feira, 23 de novembro de 2011

Mulheres e memória poética: opressão à flor da letra?



Mulheres e memória poética: opressão à flor da letra?*

Clovis Carvalho Britto
Doutorando em Sociologia pela Universidade de Brasília. clovisbritto5@hotmail.com

A árvore da literatura de autoria feminina lança-nos mais um fruto: o recente livro de Angélica Soares sabiamente intitulado Transparências da memória/estórias de opressão: diálogos com a poesia brasileira contemporânea de autoria feminina. Fruto cujo sabor vem sendo experimentado reiteradas vezes pelo trabalho crítico e sensível da pesquisadora que já apresentou análises inspiradoras a exemplo das inauguradas em A paixão emancipatória: vozes femininas da liberação do erotismo na poesia brasileira (1999). Nas frestas entre lembranças e esquecimentos, a autora realiza uma ação duplamente significativa: sublinha o valor de punhos líricos femininos na literatura brasileira e, ao mesmo tempo, se destaca como uma legítima representante desse ofício na atividade crítica. Questão relevante quando relembramos que as mulheres por muito tempo (e porque não dizer ainda hoje) tiveram suas vozes embargadas no campo literário, enfrentando trajetórias de opressão ao ousarem modificar o silêncio ou os exíguos espaços que lhes eram destinados.

Vivenciando variadas formas de sujeição e dependência devido ao quadro implacável de assimetria nas relações entre os sexos, as mulheres, aos poucos, têm lutado pelo reconhecimento como protagonistas na cena intelectual brasileira. Uma atualização das dificuldades narradas por Virgínia Woolf quando relatou a luta que instituíram pelo acesso a voz no cenário literário inglês em Um teto todo seu (2004) e/ou um esforço para problematizar as muitas "zonas mudas" relacionadas à partilha desigual dos traços, da memória e da história, conforme os indícios demonstrados por Michelle Perrot em As mulheres ou os silêncios da história (2005). Nesse sentido, para além de relatar a opressão das mulheres poetas no campo literário brasileiro, Angélica desenvolve um esboço teórico-metodológico para identificar como tais estórias de opressão foram ficcionalizadas. Se não bastasse essa instigante co-relação entre mulher e memória, a pesquisadora fortalece a tradição crítica iniciada tardiamente entre nós por Lúcia Miguel Pereira, galgando espaços para que tanto as mulheres poetas quanto as críticas literárias adquiram visibilidade e reconhecimento na vida literária brasileira. Para tanto, destaca, de antemão, a opção epistemológica por não somente apontar a diferença das mulheres, mas atentar para a diferença nas mulheres.

Analisando a memória literária de diferentes mulheres, nos convida a observar indícios da opressão vivenciada historicamente no cotidiano feminino. Em uma espécie de arqueologia da escritura memorialística, a autora revela os modos como as poetas transparecem os efeitos da dominação masculina: do inconsciente reprimido à instituição de uma fala marcadamente provocadora, do agir mimeticamente ao homem à busca de uma atuação singular, entre exílios e máscaras à instituição de um lugar de fala e de uma fala própria. Examinando um caleidoscópio de vozes polifônicas, a partir do processo da reelaboração da memória, demonstra como a poesia contribui para materializar memórias desterritorializadas. A proposta dialoga com a metodologia de Kátia Bezerra, outra analista da lírica de autoria feminina e sua relação com a memória, especialmente quando compreende o ato de revisitar o passado como subversivo:

transmuta-se numa ferramenta crucial para compreender e denunciar os vários componentes que estruturam e oprimem a sociedade. Intenciona-se, assim, considerar a forma como esse projeto de escrita interroga o passado (Bezerra, 2007:13),

para melhor compreender as relações de força que se insinuam no presente.

Nessa linha de força ou relativamente recente tradição de pesquisa, se inserem os trabalhos de Angélica Soares. Na tensão entre lembrar e esquecer, reúnem reflexões sobre memória, memorialismo poético e questões de gênero, ressaltando diferentes instâncias e formas de opressão feminina poematizadas como escritas do eu que ao mimetizarem

estórias (individualizadas), acabam por remeter, metonimicamente, a histórias (coletivas), pela recriação lírico-dramático-narrativa de fatos verificáveis em documentos e trabalhos de pesquisas sociológicas (Soares, 2009:14).

Embora reconheça que a poesia de autoria de mulheres também registra situações e experiências de vida bem sucedidas, optou por destacar aspectos que demonstrem a mulher como objeto de domínio físico ou simbólico, visto que dialogariam com situações recorrentes na vida das mulheres em sua condição histórica de duplamente colonizada: pelo sistema social de sexo-gênero e por sofrer a colonização decorrente de uma visão dualista e oposicional na qual a mulher representa o pólo negativo.

O gênero se torna uma importante categoria analítica para a crítica literária e, nas palavras da autora, as estórias de opressão recriadas na poesia demonstram que, para além das diferenças de classe, etnia e orientação sexual, as mulheres compartilham uma situação opressiva variável. Pelas transparências da memória apresenta-nos as relações entre constituição da identidade e memória, movimentos de desconstrução das oposições binárias, procedimentos coercitivos e figurações relacionadas a resistências e clausuras, culminando na análise das opressões comumente vivenciadas nas trajetórias femininas: da solidão infantil às representações do envelhecer. Acertadamente a pesquisadora dialoga com Pierre Bourdieu (2005) ao examinar como a memória poética entrevê e explicita a dominação masculina, especialmente quando destaca mecanismos com vistas à integração, embora em espaços limitados ou pautados por rígidos controles. Mecanismos muitas vezes "perturbadores", a exemplo do erotismo na escrita feminina que aciona nuanças políticas ao deslocar as mulheres da condição de meros objetos para uma posição de enunciadoras do desejo.

A primeira estação do itinerário analítico contempla poetas cujas obras emanam aberturas à metamemória, ou em outras palavras, autoras cujos projetos criadores demonstram acentuada preocupação com o conhecimento sobre os processos e monitoramento da memória, além de sentimentos e emoções relacionadas com o lembrar/esquecer. Nesse primeiro bloco, investiga as poéticas de Cecília Meireles, Adélia Prado, Marly de Oliveira, Helena Parente Cunha, Astrid Cabral, Arriete Vilela e Renata Pallottini, autoras de diferentes faixas etárias, regiões e condições sociais. A memória ao conduzir reflexões sobre sua própria dinâmica demarcaria as obras de acordo com especificidades. Cecília e a constituição de uma "encenação do esquecimento"; Adélia e o fugidio modo de experienciação; Marly e a impossibilidade de recuperar o passado exatamente como foi vivenciado; Helena e sua memória circular; Astrid e a mobilidade temporal da recordação; Arriete e os dinamismos míticos; Renata e a indissociabilidade entre tempo e espaço. Ao inventariar alguns versos desse conjunto heterogêneo e ao investigar aspectos da poesia memorialística contemporânea empreendida por mulheres, Angélica Soares se une a essas vozes, e sua obra, assim como as analisadas, se torna, ela própria, metamemória. Mas de que memórias essas mulheres falam, ou melhor, que memórias a pesquisadora selecionou da seleção empreendida pelas poetas? Resposta explicitada inicialmente no título da obra: estórias de opressão.

De posse dessas informações encaminha o leitor para uma segunda vereda relacionada a questões ideológicas de gênero e a consciência poética da exclusão histórica das mulheres. Subsidiada pelas reflexões de Teresa de Lauretis (1994), especialmente na concepção de que o pessoal é político, reafirma a importância de se pensar a diferença de mulheres e não só o diferente de Mulher. Denunciando as tecnologias de gênero e os discursos institucionais como responsáveis pelo campo de significação social, torna a categoria gênero como fundamental para a análise dos textos literários que, a partir de enfoques feministas, possibilitaria compreender as recriações de mulheres, oprimidas de incalculáveis maneiras em virtude da ideologia patriarcal. Essa leitura se aproxima de Michelle Perrot quando concebeu ser a memória, assim como a existência de que é prolongamento, profundamente sexuada. Seguindo essas considerações, Angélica Soares examina como a temática da opressão feminina comparece nos versos de Adélia Prado, Sílvia Jacintho e Astrid Cabral, espécie de cartão de visitas para um posterior aprofundamento na relação gênero, identidade e memória. Nessa ordem de ideias, destaca como emerge constantemente no memorialismo literário de autoria feminina um processo alienante, "falocêntrico", a partir da identificação de bloqueios e limites ao autoconhecimento. Comprovando esse argumento rastreia exemplos desse processo em algumas imagens tecidas nos versos de Helena Parente Cunha, Myriam Fraga, Lara de Lemos, Marly de Oliveira, Lya Luft e Hilda Hilst. Contradições integrantes da constituição de identidade pelas mulheres, metaforizadas no jogo entre o fluido e o consistente, a fuga e o encontro consigo mesmas.

Se a dominação masculina acompanha historicamente a trajetória das mulheres e se a categoria gênero auxilia a visualização dessa opressão nas memórias líricas femininas, nada mais coerente do que encerrar o livro analisando o modo como as autoras poetizam as duas pontas da vida: a infância e a velhice. Não por acaso, os capítulos finais são dedicados a examinar poemas relativos à reconstrução da solidão infantil e às representações do envelhecer. A memória como testemunho cultural da opressão na infância, a partir das imagens criadas por Marly de Oliveira, Lya Luft e Neide Arcanjo, e como testemunho da opressão na velhice, nas obras de Adélia Prado, Diva Cunha, Alice Ruiz e Renata Pallottini.

O conteúdo das imagens selecionadas como corpus da obra é um convite para o reconhecimento da importância e para a leitura da poesia de autoria feminina contemporânea desenvolvida no Brasil. Do mesmo modo, o arcabouço teórico-metodológico criado por Angélica Soares é um estímulo a todos os pesquisadores que desejem compreender as implicações entre gênero, identidade, memória e opressão, com vistas a "avaliar, pela força do literário, as contradições e os avanços no percurso emancipatório feminino" (Soares, 2009:17). Itinerários de opressão muitas vezes silenciados e que as autoras, sentindo-os à flor da pele, transpareceram à flor da letra.

Referências Bibliográficas
Bezerra, Kátia da Costa. Vozes em dissonância: mulheres, memória e nação. Florianópolis, Editora Mulheres, 2007.
Bourdieu, Pierre. A dominação masculina. 4ªed. Rio de Janeiro, Bertrand Brasil, 2005.
De Lauretis, Teresa. As tecnologias do gênero. In: Hollanda, Heloísa Buarque de. (org.) Tendências e impasses: o feminismo como crítica da cultura. Rio de Janeiro, Rocco, 1994.
Perrot, Michelle. As mulheres ou os silêncios da história. Bauru-SP, EDUSC, 2005.
Soares, Angélica. A paixão emancipatória: vozes femininas da libertação do erotismo na poesia brasileira. Rio de Janeiro, DIFEL, 1999.
Woolf, Virgínia. Um teto todo seu. 2ªed. Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 2004.

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Hard Core. Power, pleasure, and the "frenzy of the visible"



Beijos, atos, orgasmos e telas: o sexo em exibição*

Carolina Parreiras
Mestre em Antropologia Social pela Unicamp e doutoranda em Ciências Sociais pela mesma universidade. carolparreiras@gmail.com

Se há um tema recorrente nos escritos de Linda Williams, este certamente é o sexo. Já em 1989, ano da publicação de seu mais conhecido livro – Hard Core. Power, pleasure, and the "frenzy of the visible" –, ela traça como objetivo entender as diferentes configurações do gênero pornográfico, especificamente as produções cinematográficas heterossexuais hard-core1 (comerciais ou não, como é o caso dos stag movies2) e desse modo contribuir para a escrita de um viés da história desse que é considerado por muitos uma parte menor ou menos importante do cinema. Sob a influência do pensamento de Foucault, ela acredita que os filmes pornográficos seriam mais um exemplo dos intricados mecanismos de poder que produziriam determinados prazeres e saberes.

No epílogo de Hard Core escrito para a edição de 1999, Williams oferece alguns dos insights que darão base ao seu argumento em Screening Sex. O principal ponto apresentado ali é a ideia de on/scene. Nessa primeira formulação, o termo aparece como o marcador das controvérsias em torno das representações sexuais, o responsável por tensionar as noções de público e privado e, consequentemente, do que é chamado de lascivo, pruriente ou obsceno (que significa literalmente off/scene).

O argumento apresentado em Screening Sex caminha por um sentido semelhante e tem no conceito de on/scene a base para grande parte da discussão proposta. Mas antes de partir para a conceituação teórica é interessante pensar no modo como o livro foi construído. Em linhas gerais, o objetivo central é contar a história da exibição do sexo em filmes produzidos principalmente nos Estados Unidos no período de cerca de um século.

Já na Introdução, a autora faz a ressalva de que ela não pretende fornecer uma história completa da exibição do sexo em produções cinematográficas e que os filmes escolhidos para a análise são trabalhos que marcaram períodos ou momentos na história do cinema. Além disso, ela também ressalta que muitos deles despertaram nela – literal ou figurativamente – alguma forma de "saber carnal"3 (carnal knowledge). A discussão proposta passa então por essa localização da própria autora, sendo que, na maior parte dos capítulos, ao descrever os filmes, ela parte de reminiscências sobre os momentos em que os viu pela primeira vez, tentando mostrar os sentimentos, as sensações e os pensamentos que provocaram. Assim procedendo, ela claramente se situa em relação à análise: os pontos de vista contidos no livro são de uma mulher branca, heterossexual, norte-americana, com influências teóricas diversas que vão desde Foucault e Bataille, passando pela psicanálise freudiana, pela teoria crítica com Walter Benjamim, pelas formulações feministas e por estudos sobre mídias.

No percurso escolhido para entender a exibição (ou não) do sexo, Williams constrói um texto que se fosse transformado em filme forneceria um longo e denso documentário sobre as maneiras como o sexo foi colocado em discurso nas produções cinematográficas desde os seus primórdios. A organização dos capítulos proporciona, ao longo da leitura, a sensação de estar visualizando as cenas descritas pela autora, bem como o contexto mais amplo em que elas foram concebidas. Facilita esse processo, principalmente para os não muito inteirados sobre a história do cinema ou sobre os filmes citados, o uso cuidadoso de imagens de diversas das produções analisadas e sua preocupação em dissecar as cenas, apresentando-as em detalhes juntamente com análise dos comentários de produtores, diretores e críticos de cinema.

A divisão dos capítulos se baseia na delimitação de eras na produção cinematográfica. O critério para o estabelecimento de cada era não é exatamente cronológico, visto que em termos de datas ocorrem interpenetrações entre elas e um único período pode apresentar manifestações diferentes em relação à exibição do sexo.

O primeiro capítulo se concentra na era do beijo ou como Williams coloca já no título, o período da "longa adolescência americana". Beijos foram durante muito tempo a única manifestação com conotação sexual mostrada em filmes. Assim a autora passa por produções que vão desde o primeiro beijo do cinema – The Kiss (Thomas Edison, 1896), passando pelo cinema mudo com Flesh and The Devil4 (Clarence Brown, 1927), por produções clássicas de Hollywood como Casablanca (Michael Curtiz, 1942) e Notorious5 (Alfred Hitchcock, 1946) até o não tão mainstream Kiss (Andy Warhol, 1963).

No segundo capítulo, a intenção é mostrar como os atos sexuais e o que ela chama de "saber carnal" chegaram às telas norte-americanas entre os anos de 1961 e 1971. É salientada a importância dos filmes estrangeiros que serviram de inspiração para os diretores norte-americanos começarem a colocar sexo simulado em suas produções. Para que isso acontecesse, atuaram em conjunto a força da revolução sexual que acontecia no período, bem como uma série de mudanças na produção e comercialização dos filmes. Para colocar na tela essas novas performances, alguns recursos técnicos foram importantes, como por exemplo, a utilização de interlúdios sexuais.6 Dois filmes são o foco central da análise: The Graduate7 (Mike Nichols, 1967) e Midnight Cowboy (John Schlesinger, 1969). A parte final desse capítulo é dedicada a produções mais independentes – sexploitation8, blaxploitation9 e avant-garde10.

O terceiro capítulo é dedicado à análise de três filmes: Last Tango in Paris11 (Bernardo Bertolucci, 1972), Deep Throat12 (Gerard Damiano, 1972) e Boys in the Sand (Wakefield Poole, 1971). Grande parte da discussão gira em torno do momento inicial da pornografia mais comercial – chamada pela autora de pornô chique – heterossexual e gay e pela apresentação das provocativas e ousadas cenas de sexo presentes em O Último Tango em Paris. Já no quarto capítulo, a questão do orgasmo feminino é abordada, com o foco em filmes estrelados por Jane Fonda. A autora ainda mostra como naquele momento as idéias da sexologia em relação ao orgasmo eram importantes, especialmente nas formulações de Kinsey e Masters e Johnson, e também todo o ativismo político feminista e anti-guerra ("Make Love, not War"), com a apropriação do livro de Marcuse – Eros e Civilização.

No quinto capítulo, a atenção se volta para o filme O império dos sentidos (Oshima Nagisa, 1976) que representaria a fusão dos elementos gráficos da pornografia hard-core com a narrativa erótica do amor. Esse filme é o primeiro exemplo de produção cinematográfica que fez sucesso tanto como arte quanto como pornografia, exatamente porque tensiona estes dois pólos. O sexto capítulo é talvez o que mais traga a influência da psicanálise, especialmente das formulações de Freud sobre fantasias primitivas. Williams escolhe então recortes dos filmes, que chama de "cenas primitivas" para mostrar tabus relativos ao sexo presentes nas produções de Hollywood: em Blue Velvet13 (David Lynch, 1986) é pensada a questão do sadomasoquismo e em Brokeback Mountain (Ang Lee, 2005), a penetração anal.

Por fim, no capítulo 7, ela analisa filmes de arte erótica produzidos durante a década de 90 e reivindica para eles o rótulo de "arte erótica hard-core". Este tipo de produção seria extremamente gráfica, como a pornografia hard-core é, mas não utilizaria os mesmos recursos da narrativa pornográfica, como a filmagem em close-up com grande detalhamento da anatomia corporal. No capítulo final, Williams se propõe a pensar nos desdobramentos mais contemporâneos da exibição do sexo. Para tal, toma como foco a multiplicidade de telas hoje encontradas: não há apenas a grande tela das salas de cinema, mas as telas de televisões (DVDs) e computadores (cyberporn), cada vez mais tecnológicas e interativas.

Feita essa apresentação, algumas questões que perpassam toda a obra merecem atenção. A primeira delas diz respeito ao uso do verbo to screen que tem um duplo significado: é uma projeção, uma exibição, aquilo que revela, mas também pode ser tomado como aquilo que elide e esconde. Há então na história das imagens de sexo em filmes uma relação dialética entre revelação e encobrimento. Beijos podem ser mostrados, mas há uma maneira correta de fazê-lo. Atos sexuais podem ser simulados, mas os sons do sexo devem ser elididos e por isto a necessidade de uma música. E é essa dialética que Williams tenta mostrar ao longo do livro, associando-a com um contexto político, econômico e cultural mais amplo.

Nesse contexto, aparecem momentos importantes como, por exemplo, a existência de um Código de Produção para os filmes de Hollywood (Hollywood Production Code). Este Código, atuante de 1934 a 1966, era um reflexo dos variados tabus da sociedade em relação ao sexo e proibia que os filmes mostrassem ou mesmo inferissem "formas baixas de relação sexual" identificadas como "beijos excessivos e lascivos", "sedução ou estupro", "perversão sexual", "cenas de nascimento", "doenças venéreas", "nudez completa" e "exposição indecente". Outro ponto que Williams destaca é que o Código não permitia a miscigenação, vetando toda e qualquer representação de atos sexuais inter-raciais.

Em substituição ao Código, foi criada em 1968 a Motion Picture Association of America (MPAA). Sua principal decisão foi criar um sistema de classificação dos filmes, tentando adequá-los às diferentes audiências. A primeira divisão era entre filmes para adultos e filmes para crianças. A MPAA é uma das responsáveis também pelo desenvolvimento da categoria "X", a qual passou a ser utilizada, após o boom das produções pornográficas, para caracterizar esse tipo de produção.

Também faz parte do contexto mais amplo, a revolução sexual a partir dos anos 60. Era clara a relação das ideias de libertação sexual com a contracultura anti-guerra, anti-racismo, anticapitalista e anti-patriarcal. É nesse momento que o movimento feminista, os debates (morais, jurídicos e feministas) em torno dos conceitos de pornografia e obscenidade e as formulações de sexólogos se tornam importantes e permitem uma mudança nas convenções morais operantes, além de permitirem a produção de filmes como O último tango em Paris, Garganta Profunda, Barbarella e O império dos sentidos.

Em relação aos desenvolvimentos mais recentes da exibição de sexo, Williams traz importantes considerações sobre os avanços tecnológicos e o modo como eles proporcionam mudanças na maneira como o sexo é visto e sentido. O desenvolvimento do cyberporn e o crescimento do consumo de filmes em ambiente privado seriam duas das mais visíveis modificações ocorridas a partir dos anos 90. E elas têm um impacto considerável ao modificar a relação público/privado e as maneiras de recepção dos filmes. Não se trata mais apenas de uma audiência defronte a uma grande tela partilhando pública e grupalmente da exibição, mas sim de pessoas que podem estar em seus quartos, sozinhas ou acompanhadas, com a tela de seu computador, conectadas à internet e interagindo das mais diferentes formas com o que vê e sente. Ela reconhece ainda o papel da internet na crise da indústria pornográfica mais tradicional. A experiência de interatividade (e exemplos são os sites de sexo via webcam) mais ampla talvez seja o ponto que confere ao on-line uma diferenciação em relação às técnicas anteriores de interação expectador – tela de cinema.

Apesar de não acreditar que seja possível falar em uma hegemonia de uma das telas, ela afirma que o entendimento da exibição do sexo hoje deve considerar múltiplas possibilidades que incluem clicar, digitar, escolher e até mesmo ver o público assumindo o papel diretor: filmando, escolhendo os atos, as cenas e as interações.

Ao montar o percurso apresentado no livro, Williams possibilita relacionar sexo em sua forma cinematográfica não apenas à pornografia - sua manifestação mais conhecida, debatida e polêmica – ou ao erotismo, mas pensá-lo desde os quase inocentes beijos do cinema mais clássico, passando pelos orgasmos femininos cuja figura símbolo é Jane Fonda, até as relações em tempo real via internet com cybersex e cyberporn.

Assim, faz sentido retornar à ideia de on/scene: a tese proposta por Linda Williams é a de que para pensar as representações sexuais na cultura norte-americana desde a invenção do cinema é necessário levar em consideração o grau em que os atos chamados um dia de obs-cenos (off/scene) foram se tornando on/scene. O que a autora intenciona ao propor o termo on/scene é evitar julgamentos apressados e usos levianos do termo obsceno. Seu percurso argumentativo, narrativo e analítico vem reiterar essa proposta: são muitos os modos de se retratar atos sexuais e essa profusão de imagens não pode ser entendida como descolada da história cultural e social do sexo, nem fora da retórica repetidas vezes mencionada por ela de revelação e encobrimento.

Referências bibliográficas
Williams, Linda. Hard Core. Power, pleasure, and the "frenzy of the visible". Berkeley/Los Angeles/London, University of California Press, 1999.

* Resenha de Williams, Linda. Screening Sex. Durham/London, Duke University Press, 2008, 412p. Recebido para publicação em agosto de 2010, aceito em setembro de 2010.
1 A consagrada divisão do gênero pornográfico em soft core e hard core tem como uma de suas bases o discurso jurídico, responsável pela criação do termo hard core. O soft core aparece por contraposição, nomeando as produções com sexo implícito, sendo correntemente associado ao erotismo. Já o hard core se refere aos materiais com sexo explícito, nos quais os atos e órgãos sexuais são mostrados com detalhamento. É bom lembrar também que estas nomenclaturas se mantêm pela ação do mercado, sendo que elas funcionam como meio de segmentá-lo e deixar visível que tipo de produto está sendo produzido.
2 Produções amadoras em vídeo, ilegais e exibidas fora dos circuitos cinematográficos convencionais.
3 Saber carnal tem como definição clássica intercurso sexual, coito, cópula que visa a procriação. Do modo como Williams o emprega, o termo quer especificar uma série de trocas mediadas entre os corpos que assistem e aqueles encontrados na tela. O termo evoca um conhecimento corporificado não apenas dos corpos que se tocam na tela, mas também do deleite que pode provocar naqueles que assistem. A referência para essa formulação são as produções de Vivian Sobchack sobre embodiment e cinema.
4 O Demônio e a Carne.
5 Interlúdio.
6 Interlúdio sexual significa que o registro sexual era feito em um tempo distinto do restante do filme. Era comum a utilização de trilhas sonoras para os momentos de simulação de sexo.
7 A Primeira Noite de um Homem.
8 Filmes soft-core produzidos nas décadas de 60 e 70 que se caracterizavam pela exploração de temas adultos e grande exibição do corpo feminino.
9 Filmes, produzidos principalmente entre os anos de 71 e 74, onde havia a exploração aberta do sexo racializado, com a exaltação da virilidade do homem negro e de grande quantidade de situações de violência.
10 Filmes de menor exibição que mostravam atos sexuais explícitos, mas com estética e objetivos políticos e sociais bem diversos da pornografia hard-core.
11 O Último Tango em Paris.
12 Garganta Profunda.
13 Veludo Azul.

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Life and Words: Violence and the Descent into the Ordinary



Pedro Paulo Gomes Pereira
Antropólogo, Professor Adjunto da Universidade Federal de São Paulo – Unifesp. pedropaulopereira@hotmail.com

A antropologia e a teoria feminista têm como espaço privilegiado de reflexão a intersecção gênero, violência e subjetividade. Algumas abordagens nessa intersecção acabam por pensar violência como algo apenas eventual, olvidando-se frequentemente de assinalar suas íntimas conexões com o cotidiano. É comum também, e consubstancial a essa visão de violência como extra-ordinário, pensar o campo que envolve a violência em oposições rígidas, tais como: vítima e agressor, agência e opressão – existindo mesmo uma habitual associação entre agência e transgressão, como se a voz das vítimas só pudesse se manifestar transgredindo e enfrentado a Lei. Dessa maneira, como algo esporádico e fortuito, que se irrompe aqui ou acolá, a violência não desce ao cotidiano, e o trabalho diário na lida contra a violência é obnubilado em favor de certo tipo de violência acidental e de certo tipo heróico de resistência. É à busca de pensar as relações entre gênero, violência e subjetividade para além da oposição ordinário e extra-ordinário, evitando as ciladas dessa oposição, que a antropóloga indiana Veena Das vem se dedicando na última década e, como fruto dessa inquietação, publicou o livro Life and Words: Violence and the Descent into the Ordinary.

Veena Das iniciou suas investigações em Gujarat, um Estado da Índia que faz fronteira com o Paquistão. Encontrou ali famílias que haviam imigrado à Índia refugiadas de diversas regiões do Punyab – famílias que por décadas compartilharam com a antropóloga suas memórias e seus testemunhos da violência da Partição (divisão territorial efetuada pela Índia e Paquistão em 1947, pouco tempo após suas independências político-administrativas do império britânico). Esse "evento crítico" caracterizou-se pela violência entre mulçumanos, hindus, sikh e diversos grupos étnicos e religiosos que acabou por desalojar 14 milhões de pessoas e vitimar pelo menos um milhão. Uma das histórias recorrentes na Partição foi o rapto e a violação das mulheres. Das efetuou uma paciente aproximação etnográfica, na qual os relatos de violação, as reestruturações familiares, os testemunhos de violência se encontravam também com uma memória que, simultaneamente, se silenciava sobre o acontecido e se manifestava nas relações sociais, transformando as relações de parentesco. Uma década após, em 1984, Das se deparou com a violência contra os Sikh em Delhi, quando do assassinato de Indira Gandhi, então Primeira-Ministra da Índia. Às memórias dos eventos violentos de 1947, presentes mesmo que sob forma de um "conhecimento venenoso", somavam-se violências súbitas, dirigidas contra os Sikh, organizadas com a conivência do Estado, mas praticada por grupos ilegais, geralmente em forma de motins.

Das vem pesquisando esse contexto desde o início da década de setenta – como se pode acompanhar pelos seus trabalhos (1990, 2003, 2005), alguns já resenhados e relativamente conhecidos no Brasil (Das, 1995; Peirano, 1997). A busca geral da antropóloga é verificar como se estabelecem as relações sociais nesses eventos críticos (1995), de que forma o gênero é acionado como uma gramática que autoriza a violência (2007), qual o papel desempenhado pelo Estado (Das e Poole, 2004), qual o status das vítimas e sua capacidade de resistência, em que condições ocorrem os testemunhos e o que podem revelar (1995; 2007), entre outros. Life and Words persiste nessas indagações, propondo, no entanto, um novo e importante foco: averiguar como a violência desce ao cotidiano.

No prefácio ao livro, Stanley Cavell (2007:ix-xiv) sustenta que Das dialoga com Wittgenstein ao fazer sua análise girar em torno da dor. De fato, o diálogo existe e Life and Words é uma contribuição significativa aos estudos de violência, sofrimento e dor. Das utiliza o conceito de Wittgenstein de "formas de vida" para averiguar como a violência expõe os limites dos critérios de vida e se apresenta como fracasso da gramática cultural no estabelecimento e interpretação de formas de vida. Mas a importância desse livro – aquilo que a autora avança e acentua se comparado a seus trabalhos anteriores – reside, vale insistir, no lugar privilegiado atribuído ao cotidiano. Opção que enseja diversas indagações: de que forma esses eventos violentos, que se irrompem na vida social, descem ao dia-a-dia? que tipos de personagens atuam nessa descida? como agem? em quais gramáticas atuam e sob quais jogos? como operam os rumores? como as mulheres, que surgem como os principais atores desse processo, reconstroem o cotidiano como forma de resistir à violência?

*

O livro é dividido em duas partes. A primeira (capítulos 2 ao 5) aborda a Partição da Índia, em 1947, e os processos pelos quais a violência desse evento crítico é construída no dia-a-dia da Índia contemporânea. Nessa parte, tendo como interlocutores as vítimas da Partição, Das demonstra que os sujeitos enfrentam essa violência não com um acento excessivo numa memória paralisada, mas como forma de reabitar o cotidiano. Na segunda parte (capítulos 7 ao 11), Das reflete sobre a violência coletiva que se seguiu ao assassinato de Indira Gandhi, caracterizada pelos motins anti-Sikh. A abordagem se centra numa política de afetos que se transforma em atos de violência e conforma "comunidades de ressentimento".

Nas análises sobre a Partição, uma das questões principais abordadas pela autora é o rapto e a violação das mulheres. Durante a Partição, os Estados da Índia e do Paquistão adotaram normas que vinculavam a castidade da mulher à dignidade da nação. O corpo da mulher se transformou, então, num signo de comunicação entre homens, uma violenta linguagem da masculinidade. As mulheres violadas pelos raptores eram ora assassinadas, ora se suicidavam como condição de reentrar "honradas" na imaginação da nação; as sobreviventes eram marginalizadas e enfrentavam contínuas e árduas dificuldades para refazerem suas vidas. Segundo a autora, as mulheres raptadas circulavam nos debates políticos e permitiam ao Estado estabelecer um estado de exceção que sinalizava uma alteração do fluxo na troca de mulheres. Esse acontecimento permitiu um "contrato social" entre homens, fundamentado num "contrato sexual", que reivindicava os direitos dos homens sobre as mulheres. A violência infligida às mulheres não se referia apenas ao silenciamento de suas vozes, mas à transformação das mulheres em testemunhas da violência brutal, testemunhas silenciadas, mas que tinham em seus corpos os signos da violência – corpos apropriados numa disputa pela soberania que operava por uma gramática violenta de gênero.

Essas mulheres, cujos corpos são signos dessa gramática violenta de gênero, expressavam-se numa zona de silêncio. Das utiliza a metáfora de "conhecimento venenoso" para falar como as mulheres atuam sobre o sofrimento a elas infligindo. Quando conversava com as mulheres raptadas e violadas durante a Partição, indagando sobre suas experiências, Das percebeu uma zona de silêncio, principalmente sobre os fatos mais brutais. Surgia ali uma linguagem metafórica que se valia de figuras de linguagem para escapar de narrar diretamente a violação. As mulheres utilizavam a metáfora de uma mulher que bebia veneno e o mantinha dentro de si. Esse conhecimento manifestava-se no cotidiano e nas formas de perceber a vida, construindo um mapa das relações sociais, permitindo-lhes operar as experiências violentas no cotidiano, na reconstrução do dia-a-dia. Testemunhas silenciosas atuam – valendo-se do "trabalho do tempo" – sobre os relacionamentos familiares, num processo contínuo de reescrita. As mulheres parecem se valer de um tipo específico de compreensão: o tempo também possui agência, e trabalha. Saber lidar com o tempo significa atuar diretamente na reconstrução das relações e permite reabitar o mundo. O trabalho do tempo possibilita colocar essas mulheres na condição de sujeitos, no processo de reconstrução de suas relações familiares.

Para falar sobre o "trabalho do tempo", Das descreve a história de Manjit, uma das mulheres raptadas durante a Partição e resgatada pelo exército indiano. A narrativa acompanha Manjit do arranjo apressado de seu casamento (devido aos tumultos da Partição e seus efeitos nas famílias), à violência rotineira desferida por seu marido contra ela e, posteriormente, contra o primogênito do casal; aproxima-se das complexas negociações do casamento do filho de Manjit e mostra o deslocamento da violência de seu marido para a jovem esposa; assinala como essa violência faz com que se contrariem todas as convenções culturais, forçando o primogênito e sua esposa a se mudarem de casa; e finaliza retratando o esposo de Manjit adoecido e necessitando de cuidados, o filho de Manjit retornando à sua casa, onde a protagonista da narrativa consegue finalmente tranqüilidade para viver ao lado de seus netos. A história, muito mais rica do que pude descrever, conta-nos como o tempo não é algo simplesmente representado, mas um agente que trabalha nas relações, permitindo que sejam reinterpretadas e rescritas no embate dos agentes na construção de suas histórias.

Semelhanças entre essa poderosa história e O vento, filme de Victor Sjöström (1928), poderiam ser traçadas. No filme, uma jovem sulista vai ao Texas para se casar, mas é violentada no trem por um desconhecido. A jovem, entretanto, mata o agressor e enlouquece, em meio à tempestade de areia provocada pelo vento incessante. Embora ambos abordem a violência de gênero, a trama da narrativa é diferente: Manjit não enlouquece como a jovem Letty do filme, e sabe utilizar o trabalho do tempo a seu favor. Contudo, nas duas narrativas temos a forte presença de outros protagonistas: na obra de Sjöström, o vento; no texto de Das, o tempo – ambos são agentes que aparecem como personagens principais da história.

O trabalho do tempo também se manifesta nas relações entre a Partição e os eventos que se sucederam após 1984 (a invasão do Templo Dourado de Amritsar, o assassinato de Indira Gandhi por seus guardas Sikh, a violência contra os Sikh). A localização e a atualização da violência contra os Sikh devem ser compreendidas como uma mescla de memórias dos sobreviventes da Partição, de uma gramática de gênero violenta – caracterizada por uma masculinidade que auto-proclama sua superioridade sobre um outro-inferior-feminino ou feminilizado –, de um Estado conivente e, de certa forma, fomentador da violência. As relações do cotidiano processam sentimentos de raiva e ódio e permitem, ao mesmo tempo, um trabalho de reconstrução da sociabilidade, mas também possibilitam o incremento desses sentimentos de ódio que podem ser traduzidos em atos de violência, como o assassinato dos Sikh.

O passado tem um caráter indeterminado. O presente se converte no lugar onde elementos do passado que foram rejeitados podem assediar o mundo. O acontecimento sobrevive em versões diversas dentro da memória social dos diferentes grupos sociais. Das sustenta, então, que o rumor ocupa uma região da linguagem que pode fazer experimentar acontecimentos e, mais do que se apresentar como um ato externo, termina por produzir no mesmo ato em que enuncia. Os processos de tradução e rotação funcionam para atualizar certas regiões do passado e criam um sentido de continuidade entre os acontecimentos, conectando-os entre si. No caso dos acontecimentos pós-assassinato de Indira Gandhi, Das assinala como diversas correntes de rumores se combinaram para criar uma sensação de vulnerabilidade entre os hindus e fazer supor que os Sikh seriam desprovidos de subjetividade humana. O rumor acabou por fazer os hindus se pensarem como uma coletividade instável e em perigo – o que autorizou a violência contra o outro desprovido de subjetividade.

O rumor ressalta a dimensão do impessoal na vida social. Os rumores exercem um "campo de força" que atrai as pessoas para agirem de determinada maneira. Trata-se, portanto, de um tipo de violência que nubla as distinções claras entre agressores e vítimas. A impessoalidade e esse campo de forças propiciam atos morais que não seriam executados em condições diferentes, e pessoas comuns são arrastadas para cometer atrocidades (Das, 2010). O rumor, enfim, embaralha e complexifica as categorias convencionais que temos para pensar a violência e se constitui num modelo para complexificarmos as definições de agência. A força perlocucionária do rumor mostra a fragilidade do mundo, e como as imagens de desconfiança, que podem ser apenas virtuais, tomam uma forma volátil, e a ordem social se vê ameaçada por um acontecimento crítico.

A análise do rumor, além de focalizar o poder do impessoal (Das 2010:137), apresenta também a agência de determinados atores que não se encaixam naquilo que geralmente se imagina como "agência". Por exemplo, noções como paciência e paixão são mais vinculadas à passividade do que à resistência. A descida ao cotidiano, entretanto, abala nossos modelos pré-estabelecidos de resistência ou, pelo menos, apresenta outras possibilidades de pensá-los. Das encontra uma forma de lidar com a violência que se distancia dos modelos de resistência heróica, tal como os percebidos no modelo clássico de Antígona. A antropóloga indiana conta, então, a história de Asha, uma mulher punjab, que vivia com a família de seu esposo na fronteira do Paquistão no período da Partição. Depois do conflito, teve que abandonar sua "família política" por diversos motivos relacionados à sua condição de mulher e de viúva. Ela se casa com um comerciante bem estabelecido. Depois de muito tempo e de uma insistente ação de Asha e de sua cunhada, termina por reatar os laços com sua família política. Das contrasta as ações de Asha às de Antígona. Para a antropóloga, se a figura de Antígona oferecia uma maneira de pensarmos voz e agência, a figura de Asha mostra um sujeito genereficado que possui um "conhecimento venenoso", mas que constrói um trabalho cotidiano de reparação. Diferentemente de Antígona, a agência não está no heróico e no extra-ordinário, mas na descida ao cotidiano, no preparo diário da alimentação, na arrumação e organização dos afazeres, no cuidado e cultivo persistente das relações familiares. São essas ações cotidianas que possibilitam a criação de um discurso de reparação. Ao justapor o modo "menos dramático" de discurso utilizado por Asha ao discurso de Antígona, Das sugere que mulheres como Asha ocuparam uma zona diferente ao descer ao cotidiano em lugar de ascender a um "plano superior" (Das, 2007; 2010). Se nos dois casos percebemos mulheres como testemunhas – no sentido de se encontrarem no marco dos acontecimentos e de serem por eles afetadas –, Asha fala da zona do cotidiano, ocupando os signos das feridas que a afetaram e estabelecendo uma continuidade no espaço da devastação.

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Estes breves comentários nem de longe dão conta da argúcia dos argumentos, da riqueza das histórias descritas e do impecável estilo de Veena Das. Tentei apenas desenhar em traços largos os movimentos principais da obra. E, para finalizar, com objetivo apenas de ressaltar alguns aspectos, faço algumas considerações mais gerais sobre Life and Words.

Bronislaw Malinowski (1935) revelou em suas "confissões de ignorância e falha", no apêndice de Coral Gardens and Their Magic, que uma fonte geral da inadequação de seu material consiste no fato ter sido seduzido pelo dramático e excepcional e ter negligenciado o dia-a-dia (ver Martin, 2007). Porém, acompanhar o dia-a-dia de nossos interlocutores demanda tempo e uma pesquisa de campo prolongada (nem sempre possível, se pensarmos, por exemplo, na realidade brasileira). Sem uma interação cuidadosa, por anos a fio, muito do cotidiano se perde e o antropólogo acaba seduzido pelo "dramático e excepcional". Se isso vale mesmo para antropólogos que tiveram a oportunidade de ficar por muito tempo em campo, como Malinowski, há que se conjecturar as dificuldades de, em períodos curtos, se conseguir uma aproximação razoável às práticas cotidianas. Life and Words é interessante para refletirmos sobre o assunto. Ao analisar o trabalho de restabelecimento da sociabilidade após experiências de ruptura proporcionadas pela violência, assinala Das a persistência de zonas de silêncio nas quais a emergência da voz feminina se dava nem sempre pelo dizer, mas pelo mostrar. O mostrar não é algo que surge apenas de narrativas ou de reivindicações, mas no fabrico diário de modos de viver. Donde a necessidade de uma laboriosa prática etnográfica que se volte para o dia-a-dia. Das parece sugerir que somente um trabalho de campo que saiba manejar o "trabalho do tempo" conseguirá ouvir o que se tem a dizer, perceber os dizeres do silêncio e compreender o que os interlocutores desejam mostrar. Afinal, é a intensidade e persistência na investigação que possibilitam um vínculo com os interlocutores.

Todavia, não é estranha à história da antropologia a figura do "nativo" convertido simplesmente num vetor de informações (o informante), destituído de nome e sem traços que o singularize. A despeito desse movimento, e justamente pela intensidade do empreendimento etnográfico que, em maior ou menor grau, propicia vínculos com os interlocutores, alguns nomes ficaram marcados: Ahuia de Malinowski, Tuhami de Crapanzano, Ogotemmeli de Griaule, Muchona de Victor Turner, Pa Fenuatara de Raymond Firth, Adamu Jenitongo de Stoller. Das nos apresenta outros personagens. No decorrer do livro, a antropóloga se envolve e é interpelada pelos seus interlocutores, enredando-se no drama de suas vidas, estabelecendo vínculos que, em alguns casos, perduram por décadas. Certamente as mulheres desses eventos críticos narrados por Das, como Manjit e Asha, ficarão na história da disciplina. Ademais, a antropóloga lhes confere um lugar privilegiado, reivindicando uma equiparação às heroínas das tragédias gregas: Asha é igualada à não menos que Antígona.

Em Life and Words, as protagonistas são os interlocutoras da antropóloga, que não apenas narram suas histórias, mas formulam sofisticadas teorias sobre tempo, dor, sofrimento, adoecer; teorias sobre formas de relação. A antropóloga procura alçar a teoria de seus interlocutores ou, para falar em termos mais filosóficos, alçar suas práticas de conhecimento. O que não significa um abandono das discussões teóricas e dos conceitos antropológicos; antes, trata-se de intensificar as conexões entre os saberes. Daí, por exemplo, o intenso diálogo estabelecido com Wittgenstein (cf. Das, 1998) – diálogo ancorado numa longa experiência etnográfica, e numa lida cuidadosa com as teorias, sejam elas de mulheres punjab ou de filósofos austríacos. Apesar desse cuidado, teço duas pequenas observações.

1) Das lembra que a relação da formação do sujeito e a experiência de subjugação foi compreendida por Foucault, em sua análise da disciplina do corpo, por intermédio da metáfora da prisão: "a alma é a prisão do corpo". Entretanto, ressalta a antropóloga, ao tentar compreender as complexas conexões existentes entre violência e relações de parentesco, percebeu que os modelos de poder-resistência ou a metáfora da prisão são excessivamente grosseiros como ferramentas para entender o "delicado trabalho de criação do sujeito" (2007:78). Pelo contrário, continua a autora, ao explorar a profundidade temporal propiciada pelos momentos originários de violência, e o caráter fundamental da vida cotidiana, em vez de utilizarmos metáforas de prisão para significar as relações entre critérios externos e estados internos (corpo e alma), devemos pensar que eles se recobrem um ao outro, compreendidos sempre em união. A ressalva que faço – reconhecendo, evidentemente, a importância do achado etnográfico de Das – é que o autor de Vigiar e Punir é também autor de História da Sexualidade, e as exegeses da obra de Foucault vêm revelando em sua trajetória uma complexificação crescente do enfoque sobre a formação do sujeito e da subjetivação (ver Goldman, 1999). Qualquer análise que se concentre apenas na abordagem de Vigiar e Punir será necessariamente parcial, não alcançado a complexidade da abordagem de Foucault. Judith Butler (1997), por exemplo, em sua obra sobre a vida psíquica do poder (ou seja, sobre as relações entre "sujeição" e "tornar-se sujeito"), revela um Foucault atento às sutilezas daquilo que Das denominou de "delicado trabalho de criação do sujeito". A busca de compreender as práticas de conhecimento de nossos interlocutores não nos autoriza a simplificar as teorias que manejamos, quaisquer que sejam, e mesmo sob a justificativa de priorizar o conhecimento nativo. Ainda que se argumente que a utilização de Foucault em Das foi pontual, há que se indagar sobre o porquê de tal uso, já que o autor poderia atuar positivamente no desenvolvimento da autora e não apenas como algo tosco ("crude") a ser evitado.

2) Outra questão que me intriga na composição geral de Life and Words é que a autora, talvez pela inércia constitutiva da linguagem, parece demasiadamente colada aos significantes "homem" e "mulher" na sua concepção de gênero. Das está refletindo sobre um quadro em que a gramática de gênero parece girar quase exclusivamente em torno da heterossexualidade. Mas, ainda assim, sinto a falta de uma maior problematização sobre a concepção de gênero e da violência da própria gramática cultural heteronormativa. Quando Butler (1990) redefiniu gênero como performance, interrogou-se sobre a produção e reprodução do sistema sexo/gênero normativo e binário, concluindo que, da mesma maneira que sexo e sexualidade não são a expressão de si ou de uma identidade, mas o efeito do discurso sobre o sexo – um dispositivo disciplinar, portanto –, o gênero também não é uma expressão do sexo. Se a feminilidade não deve ser necessária e naturalmente a construção cultural de um corpo feminino; se a masculinidade não deve ser necessária e naturalmente a construção cultural do corpo masculino; se a masculinidade não é colada aos homens e se não é privilégio dos homens biologicamente definidos; é porque o sexo não limita o gênero, e o gênero pode exceder os limites do binarismo sexo feminino/sexo masculino. Todo gênero é uma performance de gênero, ou seja, uma paródia sem original. Sem querer me estender nessa questão, cabe aqui uma indagação sobre a pressuposição de gênero nos marcos estritamente heterossexuais ou numa gramática em torno de significantes hetero e também de uma possível homogeneização das mulheres que acabaria por criar um universalismo mascarado. Sobre esse último ponto, quem sabe não seja mais interessante perceber as mulheres não como um grupo explorado, mas uma coalizão política a construir, e que não se define unicamente pelo gênero ou pela opressão de gênero – posição esta, inclusive, que se aproxima ao próprio movimento teórico empreendido por Das. Essa questão precisa ser mais bem observada. De qualquer forma, um diálogo mais intenso com teóricas como Judith Butler, Teresa de Lauretis e Marilyn Strathern numa discussão conceitual da categoria gênero, poderá ser frutífero para futuros trabalhos de Veena Das.

Independentemente dessas observações, Life and Words consegue, de forma convincente, abordar a intersecção gênero, violência e subjetividade, demonstrando que a vida cotidiana é, para repetir Stanley Cavell, ao mesmo tempo, uma busca e uma pesquisa [a quest and an inquest]. Veena Das destaca, com persistência e delicadeza, os ensinamentos do poeta Rainer Maria Rilke ao aprendiz Franz Kappus, em famosa missiva que acabou por ser publicada em Cartas a um jovem poeta: "Se o cotidiano lhe parece pobre, não o acuse: acuse-se a si próprio de não ser muito poeta para extrair as suas riquezas".

Referências bibliográficas

Butler, Judith. The psychic life of power: theories in subjection. California, Stanford University Press, 1997.
__________. Gender Trouble: Feminism and the Subversion of Identity. New York, Routledge, 1990.
Cavell, Stanley. Foreword. In: Das, Veena. Life and Words. Violence and the descent into the ordinary. Berkeley, University of California Press, 2007, pp.ix-xiv.
Das, Veena. Listening to Voices. An interview with Veena Das. (interview by DiFruscia, Kim Turcot). Alterités, vol. 7, nº 1, 2010, pp.136-145.
__________. Life and Words. Violence and the descent intoordinary. Berkeley, University of California Press, 2007.
__________. Sexual violence, discursive formations and the state. In: Coronil, F. e Skurski, J. (eds.) States of Violence. Michigan, Univ. Mich. Press, 2005, pp.323-425.
__________. Trauma and testimony. Implications for political community. Anthropological Theory, vol. 3, nº 3, 2003, pp.293-307.
__________. Wittgenstein and anthropology. Annual Review of Anthropology, vol. 27, 1998, pp.171-195.
__________. Critical events. An anthropological perspective on contemporary India. Delhi, Oxford University Press. 1995.
__________. Our Work to Cry: Your Work to Listen. In: Das, Veena. (ed.) Mirrors of Violence: Communities, Riots and Survivors in South Asia. Delhi, Oxford University Press, 1990, pp.345-99.
__________ e Poole, Deborah. (eds.) Anthropology in the margins of the State. New Delhi, Oxford University Press. 2004.
Goldman, Márcio. Objetificação e subjetificação no último Foucault. In: Alguma Antropologia. Relume Dumará, Rio de Janeiro, pp.65-76.
Malinowski, Bronislaw. Coral Gardens and Their Magic: a Study of the Methods of Tilling the Soiland of Agricultural Rites in the Trobriand Islands. New York, American Book, 1935.
Martin, Emily. Violence, language and everyday life. American ethnologist, vol. 34, nº 4, pp.741-745.
Peirano, Mariza. Onde está a antropologia. Mana, vol. 3, nº 2, 1997, pp.67-102.

* Resenha do livro Das, Veena. Life and Words: Violence and the Descent into the Ordinary. Berkeley, University of California Press, 2007, 281p. Recebida para publicação em agosto de 2010, aceita em setembro de 2010.

Cadernos Pagu

Testo Yonqui






Wagner Xavier de CamargoI; Carmen Silvia de Moraes RialII
IDoutorando em Ciências Humanas na Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), em estágio sanduíche no Instituto Latinoamericano da "Freie Univesität von Berlin", Alemanha. Bolsista CAPES. wxcamargo@gmail.com
IIDoutora e professora dos departamentos de Antropologia e Interdisciplinar em Ciências Humanas da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Pesquisadora CNPq. carmensilviarial@gmail.com

Assalto à razão e delírio artístico, dois ingredientes que fazem de Testo Yonqui uma obra acadêmica à parte, de difícil classificação: Ensaio literário? Etnografia do/no corpo? Manual alternativo de sexualidade? Auto-ajuda para transgêneros mudarem seus corpos com o auxílio de drogas e hormônios? Talvez se possa ler o pujante escrito da (pós)feminista Beatriz Preciado como pós-moderno, com riscos de evocar conceito tão polêmico. Muito provavelmente, porém, ela se irritaria demasiado com a pecha da definição!

Definitivamente, BP – como se autodenomina na obra – não gosta de definições e classificações. Seu texto talvez seja uma etnografia antropológico-reflexiva, auto-ficção, ou "auto-teoria", como prefere a autora, que usa o próprio corpo como plataforma de análise e experimentação subjetiva. O que fica dúbio para os leitores é saber onde começam e onde terminam a vida e a arte, e talvez essa seja a contribuição mais interessante de Preciado.

Rizomático1, seu livro divide-se em 13 capítulos, que podem ser lidos em qualquer ordem, não havendo uma cronologia ou interdependência entre eles. Não há fio condutor. Curiosamente os capítulos pares são teórico-conceituais e os ímpares registram relatos de experiências, histórias pessoais, encontros e desencontros da própria protagonista-autora-artista. Produto de uma nova estética literária nas produções bibliográficas dos estudos de gênero – ou para sermos mais precisos, nos estudos gays, lésbicos, queer e transexuais – o trabalho de Beatriz Preciado mescla ficção, narrativa, filosofia e arte. Os relatos autobiográficos que emergem (relações sexuais, aplicação de hormônios, humor sarcástico e inúmeras rotas de fuga sem saída), nos entreatos analíticos que a autora apresenta, não são mais do que recursos que exercitam nossas subjetividades contemporâneas e mostram como construí-las ou descontruí-las.

A ideia de Preciado é abrir, a partir de sua etnografia reflexiva, uma discussão mais profunda sobre nossos sexos, nossos desejos, nossas percepções da realidade, acerca de um regime que nos comanda e governa nossas atitudes (ou não-atitudes), em respeito a uma múltipla combinação de fatores. De uma antropologia do corpo a uma filosofia da existência, a autora confere-nos um texto instigante e inovador. O que é questionável, para Preciado, é até que ponto a gestão biomidiática da subjetividade atual está sob controle do indivíduo ou passa despercebida por ele: a sua adição consciente à testosterona é parte de um projeto de micromutação fisiológica, política e teórica.2

A auto-etnografia propõe-se a ler criticamente a realidade da sociedade contemporânea sob uma perspectiva sexopolítica, onde o sexo e a sexualidade convertem-se no centro da política e da economia. O que era, até então, considerado por alguns como uma "sociedade do controle", para ela passa a se designar sociedade farmacopornográfica, na qual o controle emerge de dentro do próprio indivíduo. Nessa nova ecologia política não teríamos mais o controle frio, calculado, disciplinar e arquitetônico do panóptico de Jeremy Bentham, explicitado por Michel Foucault3, mas sim um "controle pop" implantado no próprio sujeito através de uma plataforma viva de órgãos, fluxos, neurotransmissores e formas de agenciamento, que seriam, ao mesmo tempo, suporte e partes de um programa político – novamente aqui encontramos influência deleuziana.

O regime farmacopornográfico, por sua vez, alimenta-se de dois pólos auto-sustentados, que funcionam mais em convergência do que em oposição: a farmacologia (tanto legal quanto ilegal) de um lado, e a pornografia, de outro. A produção farmacopornográfica não é um novo período da economia política mundial pelo volume com que se auto-produz ou pela presença massiva na vida das pessoas, mas pelo seu teor narcoticosexual.

Aqui cabe uma digressão: para Beatriz Preciado, o novo regime farmacopornográfico se anuncia na sociedade científica e colonial do século XIX a partir do duplo movimento de vigilância médico-jurídica em relação às práticas condenadas (aborto, pedofilia e afins) e da espetacularização midiática (de aberrações e anomalias genéticas). Ele tem suas bases hegemônicas constituídas no nascimento da modernidade capitalista, a partir das ruínas do sistema feudal. A constituição dos Estados nacionais europeus e a edificação dos regimes de saber científico-técnicos ocidentais estão nas origens da era farmacopornográfica. Contudo, sua efetivação é mais recente: data de fins da Segunda Guerra Mundial, no âmbito da corrida tecnológica espacial, e adquirirá seu atual perfil no desmantelamento da economia fordista dos anos 1970. Pós-industrial, terá um up grade a partir das técnicas informáticas e digitais de visão e difusão de informações.

Nesse contexto, o corpo farmacopornográfico do século XXI não é dócil. É, na verdade, uma interface tecnoorgânica, segmentada e habitada por distintos modelos políticos. Preciado aponta, assim, para um novo tipo de "governabilidade do ser vivo" e submete seu arcabouço feminista (e as próprias teorias feministas) ao solavanco que a aplicação de testosterona provocará em seu corpo durante 236 dias de auto-administração por adesivos cutâneos: há que se saber até que ponto as mutações que se passam nela não são transformações de uma época.4

Para a autora, o corpo polissexual vivo é o substrato da força orgásmica. Ele não é produto de um corpo pré-discursivo, como diria Judith Butler (2003), e nem teria seus limites contidos no envoltório da pele. O corpo não pode ser entendido hoje fora dos ditames da tecnociência e, portanto, essa entidade é entrecortada por milhares de fibras óticas, pixels e nanômetros. Trata-se, em realidade, de um tecnocorpo. Convocará Donna Haraway e a definição de tecnobiopoder para explicar porque essa nova tecnoecologia suplanta o biopoder de Foucault, justamente por exercer poder e controle de todo organismo tecnovivo interconectado.5 O que na leitura foucaultiana é biopoder, para Haraway é tecnopoder. E Preciado concorda. Assim, tanto a biopolítica (poder de controle e produção da vida) como a tanatopolítica (política de controle e gestão da morte) funcionam como farmacopornopolíticas, gestões planetárias de potentia gaudendi ou força orgásmica, potência (real ou virtual) de excitação total de um corpo.

Dessa forma, não só o sexo e a sexualidade poderiam ser pensados de modos diferentes, mas também o gênero. Por isso critica as primeiras teóricas do gênero (Margaret Mead, Mary Macintosh e Ann Oakley) por defini-lo na linha explicativa da "construção social e cultural da diferença sexual" (82). Isso gerou catastróficos efeitos que, em sua opinião, reverberam nas políticas atuais de gênero, de caráter estatal, empurrando o feminino para o beco binomial sem saída essencialismo/ construtivismo. Destaca que Teresa De Lauretis, Judith Butler e Denise Riley vão redesenhar os discursos feministas nos anos 1980.

Para ela, o gênero não nasceu da crítica feminista, mas foi gestado nos laboratórios de farmacopornismo da corrida tecnológica da Guerra Fria, ainda nos anos 40. Hoje não há como discutir o gênero. Há que se discutir as "tecnologias de gênero" (termos de Haraway), que codificam, descodificam, programam e desprogramam e são sintéticas, maleáveis, suscetíveis de serem transferidas, copiadas, produzidas e reproduzidas tecnicamente pelos sexos e gêneros dos "bio" e "tecno" sujeitos.6

É esse novo sujeito sexual farmacopornográfico que mantém e alimenta o farmacopoder. Lembrando o mecanismo disciplinar de controle do panóptico, seria como se agora esse fosse comestível e estivesse operando de dentro do sujeito e por ele próprio. Como exemplo, a autora lembra o caso das pílulas anticoncepcionais, inventadas e maciçamente divulgadas no meio do século XX com o que considera ser a fachada de controle de natalidade. A pílula feminina sempre funcionou, desde sua descoberta, não como uma técnica de controle da reprodução, mas de produção e controle de gênero, de acordo com Preciado. E mais: como foi elaborada para reproduzir tecnicamente os ritmos dos ciclos menstruais – ou seja, "imitar tecnicamente a natureza" – a autora sugere uma analogia: assim como as "drag queens" são homens biológicos que desempenham uma forma visível de feminilidade e as "drag kings" são mulheres biológicas que teatralizam uma forma de masculinidade, a pílula seria uma "bio-drag", uma espécie de travestismo somático, ou ainda, "produção farmacopornográfica de ficções somáticas de feminilidade e de masculinidade" (130). O que se produz não é algo externo (estilo, vestimenta, comportamento social), mas um processo biológico.

A fonte última de produção e riqueza do regime econômico pós-industrial farmacopornográfico é a pornografia que se prolifera pelos suportes técnicos (TV, computador, etc.) em ondas óticas para todo o planisfério terrestre. É ela que, no limite, alimenta o pornopoder. Como dispositivo virtual (literário, audiovisual, cibernético) masturbatório, a pornografia é a sexualidade transformada em espetáculo. Nesse sentido, para a autora, ela estaria para a indústria cultural, assim como a indústria do tráfico de drogas estaria em estreita relação com a indústria farmacêutica. Na pornografia, o sexo é performance, isto é, uma representação pública e um processo de repetição continuada, politicamente regulada. Nem o corpo individual, nem a esfera privada e nem o espaço doméstico escapariam da regulação política. Dessa forma presenciamos, então, um processo de "pornificação do trabalho", pois na economia farmacopornista, o trabalho é sexo. Como o termo "sexual" (no antigo conceito de divisão sexual do trabalho) silencia o aspecto normativamente heterossexual da reprodução, conferindo-lhe um caráter de única via natural, Preciado propõe reclassificar o conceito para "divisão gestacional do trabalho", devido à ênfase na segmentação do corpo derivada da capacidade (ou não) de gestação em útero.

Contudo, destaca que presenciamos no regime farmacopornográfico um processo dialético entre fármaco e porno. Tal dialética estaria manifesta através de contradições de biocódigos (low tech ou high tech), que formam a subjetividade e que procedem de regimes diferentes de produção do corpo. Dessa maneira, assistiríamos a uma horizontalização das técnicas de produção do corpo, que não estabelece diferenças entre classes sociais, raça ou sexualidade, ou outras características. A partir dessa horizontalização que, de acordo com BP, se depreenderia que a heterossexualidade será tão somente uma estética farmacopornográfica como qualquer outra (ou muitas), que poderá ser imitada, exportada e apreciada, mas que já se apresentaria como modelo falido e decadente em nossas sociedades contemporâneas. Para ela, a heterossexualidade está fadada a desaparecer e em seu lugar haverá uma proliferação de produção de corpos e de prazeres desviantes, outrossim, igualmente submetidos às regulações farmacopornográficas.

Da radicalidade de Preciado em momentos de auto-experimentação, passando pelas densas argumentações teóricas e quedas livres que nos arremessam ao precipício, se não fossem ficções "somato-políticas", como a própria autora destaca, elas provocariam em seus leitores insurreição contra uma ativista tão respeitada pelos estudos feministas. No entanto, Preciado não engana a quem está atento: apesar do tom catastrofista e do anúncio da auto-extinção imanente do ser humano, deixa possíveis saídas em seus capítulos finais7: aplicações maciças de testosterona e oficinas performáticas de drag king para bio-mulheres figurariam como propostas do que chama "micropolíticas de resistência" de gênero – aqui, novamente, a referência são as "micropolíticas do campo social" (Deleuze e Guattari, 2009:15).

Preciado anda às voltas com amigos e amigas em sua obra, sempre misturando propositalmente os gêneros e denominando-os por siglas (VD, V, GD). O protocolo de "intoxicação voluntária" que executa por rituais de administração de hormônio masculino, não significa mudança de sexo ou uma metamorfose transexual. É um processo de desnaturalização e de desidentificação. Mudam-se apenas os afetos e seu corpo.

O corpo é uma condição de perfeição e de ruína. Para ela, os corpos são recipientes inexoráveis de transporte de substâncias ilícitas e produtores de subjetividades adictas. São receptáculos produtores de excitação-frustração e circuito sob controle da gestão farmacopornográfica. O que importa, segundo ela, não é a produção de prazer, mas o controle do mecanismo cíclico excitação-frustração-excitação e de sua infinita repetição, que é justamente o motor do farmacopornismo em escala global. Está em cena, então, uma cooperação masturbatória entre corpos insatisfeitos, insaciáveis – que buscam hormônios, cocaína, pênis, vaginas, ânus – e novas formas de produção da repetição do mecanismo na contemporaneidade.

O legado de Beatriz Preciado com esta obra vai além de uma contribuição estilística e artística personalizada em estilo literário. Pode ser considerado uma nova luz-guia nas discussões acerca dos estudos de gênero e das produções das subjetividades dos (pós)corpos contemporâneos. Merece ser apreciado.

Referências bibliográficas

BUTLER, Judith. Problemas de Gênero: feminismo e subversão da identidade. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 2003.
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FOUCAULT, Michel. O Panoptismo. In: FOUCAULT, M. Vigiar e punir: nascimento da prisão. 8ª ed. Rio de Janeiro, Vozes, 1991, pp.173-199.
HARAWAY, Donna. A Cyborg Manifesto: Science, Technology, and Socialist-Feminism in the Late Twentieth Century. In: HARAWAY, D. Simians, Cyborgs and Women: The Reinvention of Nature. New York, Routledge, 1991, pp.149-181.

* Resenha de PRECIADO, Beatriz. Testo Yonqui. Madrid, Editora Espasa Calpe, 2008, 324p. Esta resenha é produto do incentivo da profa. Dra. Miriam Pillar Grossi, a quem devemos gratidão pela apresentação do livro em questão e pelos comentários pertinentes em relação à compreensão da teoria da autora.
1 Conceito de Gilles Deleuze e Feliz Guattari (2009), o rizoma "conecta um ponto qualquer com outro ponto qualquer e cada um de seus traços não remete necessariamente a traços da mesma natureza (...). Põe em jogo regime de signos muito diferentes e não conduz ao uno, nem ao múltiplo (...). Não se compõe de unidades, mas de dimensões (ou direções movediças); não tem início, nem fim, mas sempre transborda; é feito somente de linhas: de segmentaridade, de estratificação, como dimensões, mas também linhas de fuga ou de desterritorialização, como dimensão máxima segundo a qual, em seguindo-a, a multiplicidade se metamorfoseia, mudando de natureza (Deleuze e Guattari, 2009:32 e ss).
2 É clara a influência de Deleuze e Guattari (2009) nos escritos de Preciado: ela faz o que os autores chamam de "micropolítica" no campo social.
3 Referência a "O Panoptismo" (Foucault, 1991, cap. 3, 3ª parte).
4 Aqui cabe destacar os capítulos mais personalistas acerca da administração hormonal: "Tu Muerte" (cap. 1:19-24) e "Testogel" (cap. 3:47-56).
5 Donna Haraway traz a discussão sobre a figura do "cyborg", ou seja, do ser que descende das implosões de sujeitos e objetos, do natural e do artificial (Haraway, 1991).
6 Surgem as nomenclaturas bio e trans, como estatutos de gênero tecnicamente produzidos. Por um lado, os bio-homens e as bio-mulheres são aqueles que se identificaram com o sexo que lhes foi designado no nascimento e, por outro, os trans-homens e as trans-mulheres são os que contestaram tal designação e tentaram modificá-la com ajuda de procedimentos externos (técnicos, prostéticos, performativos e/ou legais). Tais designações não são melhores ou piores umas em relação às outras. Apenas dão conta do abismo que separa as pessoas bio das pessoas trans. Tal distinção, para a autora, tornar-se-á ultrapassada no futuro (Preciado, 2008:84 e ss).
7 Mais precisamente em "Micropolíticas de Gênero en la Era Farmacopornográfica. Experimentación, intoxicación voluntaria, mutación" (cap. 12:233-286).

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Minissaias, militâncias, revoluções e gênero na última ditadura argentina



Ana Maria Veiga
Doutoranda em História na Universidade Federal de Santa Catarina e bolsista da CAPES, Atualmente pesquisa sobre realizadoras de cinema do Brasil e da Argentina durante as ditaduras militares nos dois países, E-mail: amveiga@yahoo.com.br

O livro De minifaldas, militancias y revoluciones: exploraciones sobre los 70 en la Argentina amplia o debate sobre a última ditadura militar naquele país (1976-1983) ao inserir nele questões de gênero e a participação política das mulheres nos grupos de resistência.. Organizado por Andrea Andújar, Karin Grammático, Débora D'Antonio, Fernanda Gil Lozano e María Laura Rosa, o livro dá sequência à compilação eletrônica Historia, Género y Política en los '70 (Andújar, 2005), editada online pelo mesmo grupo no ano de 2005, como resultado das jornadas ocorridas na Universidade de Buenos Aires1, que lembraram os trinta anos do começo da ditadura argentina, abordando especificamente as relações de gênero.

A primeira parte da obra, denominada "Espacios de Militancia y Conflictividad", é composta de quatro capítulos. Marta Vassalo aborda a situação das mulheres nas fileiras militantes, tratadas como duplamente subversivas, já que fugiam aos seus papéis tradicionais, assumindo lugares considerados masculinos. Além disso, Vassalo explora a maternidade e as normas morais e sexuais para os casais militantes, que tinham seus relacionamentos mediados pelos ditames das organizações – a descoberta do feminismo e sua reivindicação vieram a complicar ainda mais a situação de algumas mulheres que passaram a atuar na chamada dupla militância. Em outro capítulo, Karin Grammático fala das disputas internas do Movimento Peronista e das manobras e demandas da "Rama Femenina", que tomou lugar nesse movimento. A autora aponta para as mulheres como grupo de interesse do peronismo, mas do qual não se fazia uma leitura política aprofundada; as mulheres teriam direitos políticos, dentro dos limites de seus papéis de mães e esposas, como as situava também Evita Perón. Além disso, Grammático faz uma interessante reflexão sobre a preocupação geracional do líder Perón, mesmo no exílio, de formar novos dirigentes a partir da Juventude Peronista. Segundo ela, Perón tentava apaziguar as agrupações armadas do movimento, como as Forças Armadas Peronistas e os Montoneros.

As trajetórias de religiosas "terceiromundistas" na Argentina são analisadas por Claudia Touris, que aponta os grupos de formação católica na renovação da esquerda nos anos 1960 e a ação limitada das mulheres dentro desses grupos, apesar da transformação das vidas das religiosas depois do Concílio Vaticano II; a aproximação com o peronismo e uma nova postura política marcaram a "nova mulher cristã", politicamente ativa. Luciana Seminara e Cristina Viano também seguem as trajetórias de duas mulheres que começaram a vida política em grupos católicos alinhados com a Teologia da Libertação e que acabaram por encontrar a luta armada praticada pelos Montoneros e pelo Partido Revolucionário de los Trabajadores, deparando-se ainda com o feminismo, em um momento de "direitização" do governo peronista, de repressão intensa e clandestinidade.

A segunda parte do livro, "Prácticas Terroristas, Prácticas de Resistencia", é aberta com o capítulo de Débora D'Antonio, que aborda a agência política praticada dentro dos cárceres entre 1974 e 1983. A autora tematiza a resistência e a reorganização política das mulheres no cárcere de Villa Devoto, criando uma cultura política carcerária; além disso, trata de violência sexual, tortura, sujeição dos corpos e colaboração, discutindo as estratégias de sobrevivência dessas mulheres. O capítulo de Laura Rodriguez Agüero mostra a repressão sobre prostitutas e militantes de esquerda em Mendoza, de 1974 a 1976, período em que estiveram em atividade na região os conservadores Comando Anticomunista de Mendoza e o Comando Moralizador Pio XII, que ameaçavam, assassinavam, colocavam bombas em casas noturnas, casas de militantes de esquerda, centros israelitas e igrejas evangélicas. Pessoas mortas eram encontradas nuas, algumas com as cabeças raspadas; a morte era decretada a quem colocasse em questão modos de vida tradicionais: prostitutas, homossexuais, traficantes.

No capítulo que encerra esta parte, Marina Franco aponta o exílio como espaço de transformação de gênero. Desde 1973, com a repressão da Aliança Anticomunista Argentina, aproximadamente 300 mil foragidos deixaram o país. A autora analisa o papel ativo das mulheres diante da experiência migratória, a construção de novas percepções como força, segurança e independência, e o encontro de muitas delas com o movimento feminista na França, para onde partiram quase dois mil e quinhentos argentinos/as. Mas a autora avisa que essa relação deve ser matizada, pois seus efeitos concretos foram limitados. A manutenção dos papéis periféricos das mulheres no exílio, com a reestruturação das organizações e o encontro com ideais liberalizantes, levou à ruptura de diversos casais, já que as mulheres adquiriram novas posições domésticas e políticas; portanto o exílio pode ter tido um efeito acelerador, como explica a autora, com o deslocamento de prioridades e a descoberta de novas demandas assumidas pelas mulheres.

A terceira parte do livro, "Representaciones, Imágenes y Vida Cotidiana", traz para o cenário historiográfico outras perspectivas, ainda incomuns nos meios acadêmicos. Andrea Andújar explora os vínculos de casal na militância política de esquerda dos anos 1970, trabalhando sobre a penetração mútua entre seus ideais e a cultura de massa, representada no capítulo pelas telenovelas e pelo rock and roll. Em um texto estimulante, Andújar reflete sobre a constituição de novas formas de ser e se relacionar para as mulheres, com a erosão do mundo tradicional e o questionamento das relações heterossexuais, monogâmicas, visando o casamento. Enquanto o rock trazia o rechaço aos cânones sociais vigentes e a apologia ao amor livre (ainda heterossexual), colocando as mulheres como agentes que também tomavam iniciativas, as telenovelas as representavam em sua passividade, mas já traziam algumas inovações nos papéis; ambos os segmentos culturais traziam o contexto social e político dos primeiros anos 1970. Enquanto isso, as organizações de esquerda viam as inquietudes amorosas como debilidade política, naturalizavam as tarefas tidas como femininas e reproduziam o modelo de conduta pregado pela ditadura: amor duradouro, fidelidade, reprovação do adultério, concepção tradicional de família. A autora sinaliza a cultura como espaço de disputas e a tentativa de novos vínculos amorosos em ambiguidade com o imaginário tradicional sobre o amor e as relações.

Isabella Cosse também traz os novos protótipos femininos que emergiram naqueles anos com a divulgação da imagem da "jovem liberada", com desejo sexual ativo, que trabalhava e não tinha como meta o casamento; surgia uma nova sensibilidade moral, principalmente entre a classe média mais elevada, identificada com os Estados Unidos e com a Europa. O modelo dona de casa passou a ser rechaçado, a tecnologia resolveria os problemas das mulheres. Cosse analisa o papel das revistas de vanguarda para jovens liberadas, o plano modernizador e a influência feminista; tudo isso em contraste com as tímidas mudanças na classe média mais ampla e com o embate ideológico travado por revistas conservadoras (Para Ti) e populares (Vosotras), que tiveram de atender às novas demandas, apropriando-se dos novos códigos sociais, mas sem questionar gênero – reforçavam os lugares tradicionais das mulheres.

Um dos últimos capítulos, de Rebekah Pite, questiona as tarefas domésticas das mulheres argentinas difundidas pelos livros do ícone da cozinha, Doña Petrona, no período de 1970 a 1983. Segundo Pite, além de receitas, a chefe ensinava também qual seria o lugar das mulheres na sociedade argentina: perfeitas donas de casa, que sabiam economizar e receber convidados. A autora mostra que a cozinha era um lugar "natural" e seguro para as mulheres, e que o programa de Doña Petrona na televisão foi talvez o único a não sofrer os cortes da censura. Em cima da mesa, uma placa avisava aos convidados: "Proibido falar de política". A apresentadora estava de acordo com os preceitos da ditadura: as mulheres deviam permanecer nos seus lares, mantendo os papéis tradicionais de gênero; era preciso modernizar a tradição, não romper com ela.

O único capítulo do livro que de certo modo destoa de um rigor metodológico é intitulado "Rastros de la ausencia: sobre la desaparición en la obra de Claudia Contreras". María Laura Rosa questiona como a arte pode falar de genocídio e, como resposta, discorre sobre o contexto argentino, fazendo um paralelo com a arte lá produzida, buscando explorá-la como política. "Como falar de um passado que se prolonga no presente?", pergunta a autora. Aos leitores e leitoras ficam algumas impressões que parecem pessoais e uma análise quase emotiva, que não problematiza o uso da arte como fonte para a historiografia. Essa é a ausência que podemos reivindicar.

Com esse apanhado de capítulos, percebemos a amplitude e o aprofundamento de temáticas que trazem para a discussão historiográfica sobre a última ditadura militar argentina a perspectiva das relações de gênero, no âmbito da esquerda política, mas também da direita. De minifaldas, militancias y revoluciones é uma parte importante de um debate, travado em sua transnacionalidade2 por pesquisadoras/es que se preocupam em complexificar a escrita da história, nela inserindo atores/as sociais que não estiveram presentes no que contemplou a historiografia tradicional, mas que trazem histórias e heranças próprias de um período intenso, vivido, lembrado e relembrado por grupos sociais que naquele momento ainda buscavam marcar seus lugares e espaços. Esse livro e as reflexões que ele suscita são marcas materiais de uma legitimidade e, ao mesmo tempo, espaços ocupados por sujeitos históricos ainda em permanente elaboração. Aos estudiosos e interessados, vale a pena conhecer um trabalho de competência acadêmica, que oferece novas possibilidades à historiografia latino-americana, partindo da perspectiva argentina.

Referências bibliográficas

Andújar, Andrea et alii. Historia, género y política en los '70. Buenos Aires, Feminaria, 2005. Disponível em www.feminaria.ar.
Pedro, Joana Maria; Wolff, Cristina Scheibe; Veiga, Ana Maria. (orgs.) Resistências, Gênero e Feminismos contra as ditaduras no Cone Sul. Florianópolis, Ed. Mulheres, 2011.
Pedro, Joana Maria; Wolff, Cristina Scheibe, (orgs.) Gênero, Feminismos e Ditaduras no Cone Sul. Florianópolis, Ed. Mulheres, 2010.

* Resenha de Andújar, Andrea et alii. De minifaldas, militancias y revoluciones: exploraciones sobre los 70 en la Argentina. Buenos Aires, Ediciones Luxemburg, 2009, 217 p. Recebida para publicação em agosto de 2010, aceita em março de 2011.
1 Em 2010 as jornadas alcançaram sua terceira edição.
2 Essas questões são trabalhadas no Brasil por pesquisadoras/es do chamado Projeto Cone Sul, do Laboratório de Estudos de Gênero e História na Universidade Federal de Santa Catarina, que acabaram de editar o livro Resistências, Gênero e Feminismos contra as ditaduras no Cone Sul (Pedro, Wolff, Veiga, 2011), com estudos realizados nos países situados nesse espaço geopolítico, também sob a perspectiva do gênero. Antes dele, uma primeira compilação de textos elaborados a partir do colóquio "Gênero, Feminismos e Ditaduras no Cone Sul" (realizado na UFSC em maio de 2009) também foi publicada, reunindo autoras/es da Argentina, Uruguai, Chile, Paraguai, Bolívia e Brasil, que problematizam os períodos de ditaduras militares em seus países, imbricados às relações de gênero que os permearam (Pedro e Wolff, 2010). Ligado à Universidade de Campinas, um grupo coordenado pela socióloga Maria Lygia Quartim de Moraes também tematiza as ditaduras militares e as relações de gênero nesse período. Ainda sobre ditaduras, encontramos o trabalho da equipe de pesquisa de Carlos Fico, na Universidade Federal do Rio de Janeiro.

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Dicionário crítico do feminismo




Maira Abreu
Doutoranda em Ciências Sociais – Unicamp, E-mail: mairabreu@yahoo.com


Publicado originalmente em francês1 e traduzido no ano de 2009 para o português, o Dicionário crítico do feminismo vem preencher uma importante lacuna no Brasil. Primeira obra do gênero editada no país2 oferece um panorama – numa linguagem clara e acessível a não especialistas – dos grandes temas do movimento feminista (aborto e contracepção, violências, família, etc.), polêmicas e conceitos centrais desse movimento (igualdade x diferença, patriarcado), além de interpretações feministas de algumas categorias (dominação, desemprego, trabalho, cidadania, poder).

São 48 verbetes formulados, em sua grande maioria, por autoras/es francesas/es, entre as quais um grande número de sociólogas, baseados numa bibliografia predominantemente francófona, embora em diálogo com outras produções. A proposta não é "colocar em ordem alfabética um conjunto de conhecimentos adquiridos", ou seja, o Dicionário não tem a pretensão de contemplar toda a pungente produção teórica sobre o tema já produzida– proposta pouco factível – mas, "transmitir uma nova grade de leitura", tornando "metodologicamente visível a sexualização do social e seus efeitos", e colocando no centro do debate "a problemática da dominação entre os sexos e suas consequências" (13).

No Brasil, a pretensão de "transmitir uma nova grade de leitura" ganha outra dimensão. Por motivos que caberiam ser investigados e que pertencem a múltiplos fatores históricos, culturais, intelectuais e institucionais da constituição do campo de "estudos de gênero" no país, aqui foram privilegiadas teorias desenvolvidas nos países anglo-saxões. Deve-se ter em mente que há sempre um conjunto complexo de mediações de natureza diversa na constituição dos aparatos teórico-conceituais, que são elaborados no bojo de disputas políticas e em simbiose com as tradições intelectuais, históricas e políticas de um determinado contexto. É por isso que a "diversidade de sotaques" nas ciências humanas é fundamental para o cosmopolitismo das ideias (Ortiz, 2002). Assim, um dos méritos da publicação do dicionário no Brasil é de permitir um maior contato, em português, do público brasileiro com alguns debates feministas franceses, abrindo meios para um diálogo entre essas produções teóricas. As escassas traduções da produção feminista francesa para o português, aliada à preponderância do inglês como "segunda língua", tornou a referida produção pouco acessível a um público mais amplo no país, mesmo se tratando de estudantes da área de ciências humanas.

As especificidades do contexto francês suscitaram uma produção teórica com características bastante distintas em relação, por exemplo, aos Estados Unidos. Os conceitos "relações sociais de sexo" (rapports sociaux de sexe) e "modo de produção doméstico" são exemplos de contribuições teóricas do feminismo francês. Esse quadro conceitual pode causar certo estranhamento em parte das/os leitoras/es brasileiras/os mais acostumados a outros referenciais teóricos e conceituais.

Alguns verbetes são fundamentais para compreender o contexto teórico/político feminista francês, entre os quais destacamos: "diferença dos sexos", "igualdade", "movimento feminista", "patriarcado (teorias do)", "sexo e gênero", "universalismo e particularismo".

A escolha dos temas abordados também é bastante significativa do contexto de elaboração da obra. Chamam a atenção, por exemplo, verbetes como "paridade", "diferença sexual" e a ausência de outros como "gênero" e "queer". Destaca-se também um grande número de verbetes relacionados à temática trabalho ("trabalho", "ofício, profissão, bico"; "categorias socioprofissionais", "desemprego", "divisão sexual do trabalho e relações sociais de sexo", "emprego", "flexibilidade", "saúde no trabalho", "sindicatos", "trabalho", "trabalho doméstico", etc.), que parece refletir em parte temas de interesse do grupo que organizou a obra. Segundo o esclarecimento no prefácio, essa obra é fruto da atividade do Grupo de Estudos sobre Divisão Social e Sexual do Trabalho (GEDISST-CNRS) que ganhou o nome de Gênero, Trabalho, Mobilidades (GTM)3 em 2005 (16).

Em análise comparativa com outros dicionários congêneres produzidos nos Estados Unidos percebe-se que no Dicionário em questão são poucos os verbetes relacionados à "sexualidade". Brigitte Lhomond ressalta que alguns debates relacionados à temática que deram lugar a "vívidas polêmicas nos países anglo-saxões" restaram marginais na França – como, por exemplo, prostituição, pornografia, sadomasoquismo dentre outras práticas sexuais (234). O fraco interesse por alguns debates que polarizaram feministas estadunidenses, como pornografia e políticas sexuais em geral, é uma questão ressaltada em outras obras . Para Lilian Mathieu (2003:45-46), diante do pouco interesse das feministas francesas pela discussão sobre prostituição, a presença de dois verbetes sobre o tema no Dicionário seria um "fato excepcional". Cabe ressaltar que é o único verbete com esse formato. O primeiro, escrito por Claudine Legardinier, define a prostituição como "uma organização lucrativa, nacional e internacional de exploração sexual do outro" (198) e critica a expressão "trabalhadoras do sexo" que legitimaria "a ideia de que a mercadoria sexo se tornou um dado indiscutível da economia moderna" (200). Por outro lado, Gail Pheterson, autora do segundo verbete, define a prostituição como uma instituição de regulação das relações sociais de sexo, procurando mostrar que há um continuum de trocas econômico-sexuais entre homens e mulheres, no qual a prostituição seria somente uma de suas modalidades (203-204).

No prefácio da obra, as organizadoras esclarecem que as análises que concebem a prostituição como um trabalho e aquelas que a definem como uma violência constituiriam, na França, pontos de vista irredutíveis e por isso a opção de apresentar duas rubricas contraditórias (15).4

Ainda sobre os verbetes, uma outra observação pertinente para o público brasileiro é que alguns estão bastante presos ao contexto francês, como "sindicatos"5, por exemplo.

Em relação ao referencial teórico predominante no Dicionário, cabe fazermos alguns comentários. Françoise Collin, no verbete "diferença dos sexos (teorias da)", enfatiza a importância da ideia de universalismo, vinculada às tradições cultural, filosófica e política herdadas do racionalismo iluminista, para o feminismo francês. Em "universalismo e particularismo", Eleni Varikas reconstrói as origens da noção de universalismo e assim resume um dos dilemas da discussão para o feminismo:

O interesse geral está tão associado a uma visão homogênea e uniforme do 'corpo' político que qualquer expressão de particularidades é imediatamente tida como suspeita de um particularismo ameaçador do princípio da universalidade dos direitos, que fundou a sacrossanta República (269).

Embora o verbete "movimentos feministas", de autoria de Dominique Fougeyrollas-Schwebel, enfatize a clivagem entre feminismo radical, marxista e liberal, essa não foi a divisão mais importante dentro do MLF (Mouvement de Libération des Femmes) na França (Picq, 1993 e Kandel, 2000). A polarização entre feminismo universalista e diferencialista, que dividiu MLF e provoca vivas polêmicas até os dias atuais, abordada por Collin no verbete acima mencionado, é fundamental para o feminismo francês. O Dicionário se insere claramente dentro de uma perspectiva universalista para a qual, como define Collin, a diferença que caracteriza homens e mulheres seria em si mesma insignificante e "sua importância determinante e socialmente estruturante é um efeito das relações de poder" (62).

Por tudo isso, pode-se perceber o distanciamento do Dicionário daquilo que ficou conhecido como "french feminism". Essa categoria, muito utilizada por acadêmicas anglófonas, engloba um conjunto de elaborações influenciadas pela psicanálise lacaniana e outros autores/as pós-estruturalistas, cujos principais nomes seriam Helene Cixous, Julia Kristeva e Luce Irigaray, e que têm, em maior ou menor medida, afinidades com as ideias da corrente diferencialista do feminismo francês.6

Outra particularidade do feminismo francês foi a importância do marxismo na sua constituição. Ao contrapor os movimentos feministas europeus ao contexto norte-americano Fougeyrollas-Schwebel enfatiza que nos primeiros "a relação com os partidos de esquerda é essencial e a dialética de inclusão-exclusão é permanente" (148). Como nos lembra Teresa de Lauretis, a ideia de que as mulheres não constituem um "grupo natural", cuja opressão seria o resultado de sua natureza física era compartilhada por diversas feministas de contextos diversos, "ainda que na Europa essa compreensão tenha precedido o feminismo, na América anglófona ela frequentemente seguiu e foi resultado de uma análise feminista do gênero" (Lauretis, 2003).

As militantes do MLF eram provenientes, em grande medida, de organizações de esquerda, embora a relação de muitas dessas com esses agrupamentos fosse de oposição e até mesmo de ruptura. As elaborações teóricas feministas na França se deram em constante debate com a teoria marxista, e é nesse contexto que devem ser compreendidos alguns dos seus conceitos e propostas. Uma das correntes que surge no seu bojo e que tem significativa influência do marxismo é o feminismo materialista. Essa perspectiva, que teve pouca divulgação e impacto no Brasil, mas cuja penetração foi significativa na França entre pesquisadoras de ciências humanas, particularmente sociólogas (Giraud, 2004:109), desponta em diversos momentos do Dicionário. Essa corrente surge no interior das mobilizações feministas francesas no final dos anos 1970, e se articula inicialmente em torno da revista Questions féministes, tendo como marca um posicionamento antiessencialista. A crítica ao naturalismo proposta consiste não somente na compreensão do caráter cultural das noções de feminilidade e masculinidade, mas, de maneira ainda mais radical, na afirmação de que as diferenciações sociais entre os sexos não preexistem logicamente às relações sociais que as engendram. Estão entre as propositoras dessa perspectiva Christine Delphy, Nicole-Claude Mathieu, Monique Wittig, Paola Tabet, Colete Guillaumin, entre outras. As duas primeiras autoras colaboraram com o Dicionário, e suas contribuições são expressamente mencionadas ao longo da obra, assim como as de outras autoras citadas. O primeiro parágrafo do verbete "divisão sexual do trabalho e relações sociais de sexo", de Danièle Kergoat, sintetiza algumas das contribuições desse referencial:

As condições em que vivem homens e mulheres não são produtos de um destino biológico, mas, sobretudo, construções sociais. Homens e mulheres não são uma coleção – ou duas coleções – de indivíduos biologicamente diferentes. Eles formam dois grupos sociais envolvidos numa relação social específica: as relações sociais de sexo. (67)

No Brasil, é muito difundida a ideia de uma certa equivalência entre teorias pós-modernas e uma perspectiva antiessencialista, como se a segunda só pudesse ser fruto da primeira posição. É interessante notar que os referenciais antinaturalistas vêm, em grande medida, nessa obra, de autoras de outras perspectivas teóricas. Além disso, percebe-se até mesmo uma certa reticência, por parte de algumas autoras, em relação às teorias chamadas de "pós-modernas" ou "pós-estruturalistas". Collin faz referência ao "pouco impacto" dessa perspectiva na França (64). Para Danielle Juteau essas teorias ocultariam frequentemente "as relações sociais fundadoras das categorias de sexo" (93). Para Nicole-Claude Mathieu nessas teorias "os aspectos simbólicos, discursivos e paródicos do gênero são privilegiados em detrimento da realidade material histórica das opressões sofridas pelas mulheres" (228).

Uma polêmica que perpassa o Dicionário já mencionada na introdução como uma das grandes controvérsias do livro é sobre o uso da categoria "gênero". O termo é frequentemente descrito como "de origem anglo-saxã" (15), "muito utilizado nos meios anglo-saxões" (93). Para Françoise Collin, o termo "importado dos Estados Unidos e traduzido por 'gênero'" não seria de "uso habitual" na França (59). Sabe-se que o conceito não teve aceitação imediata na França, mas, apesar das controvérsias, foi progressivamente incorporado. Embora seja de uso menos frequente que "relações sociais de sexo", o termo aparece em diversos verbetes. Múltiplas são as razões para que o conceito não tivesse uma aceitação imediata na França – e aqui não me limito às argumentações presentes no Dicionário. Para algumas autoras, o uso do termo "gênero" seria não só inapropriado como desnecessário. Um primeiro motivo, dentro dessa argumentação, é que "gênero" seria um estrangeirismo desnecessário, chegando ao ponto de considerá-lo como "tão somente um anglicismo irritante" (Ozouf e Sohn apud Offen, 2006). Delphy nos alerta para o que ela considera ser uma certa "hostilidade irracional contra aquilo que é visto como uma 'importação do exterior'" (177) existente na França. Embora algumas objeções ao uso do conceito de gênero na França se enquadrem nessa argumentação, há oposições de outra ordem que comentaremos ligeiramente a seguir.

Algumas leituras apontam para o caráter intraduzível do termo "gender" para o francês. Há inclusive uma recomendação oficial de 2005 da Comissão Geral de Terminologia e Neologismo (França) para o uso de termos franceses equivalentes ao termo "gender", considerando que não há necessidade linguística que justifique a substituição de "sexe" por "genre".[7] Nicole-Claude Mathieu, no verbete "sexo e gênero", menciona algumas outras objeções ao uso. Para algumas autoras, a distinção entre sexo e gênero, uma vez que compreenderia uma dicotomização entre biológico e cultural, acarretaria uma reificação da biologia, ocultando, assim, seu caráter ideológico e histórico. Para outras, o conceito de gênero eufemizaria as relações de poder e a ideia de antagonismo social correspondente a um sistema de exploração e dominação. Mas percebe-se que em muitos momentos as categorias "gênero" e "relações sociais de sexo" são utilizadas como sinônimos, sem que isso implique necessariamente um posicionamento teórico. Como enfatiza Delphy

não mais que outros termos de Ciências Sociais, os termos 'patriarcado', 'gênero' ou 'sistema de gênero', 'relações sociais de sexo' ou 'relações sociais de gênero', ou qualquer outro termo suscetível de ser empregado em seu lugar, não têm definição estrita e tampouco uma com a qual todos estejam de acordo (177-8).

Essa obra constitui um bom "guia" para uma viagem por alguns dos conceitos e propostas de um movimento teórico-político que revolucionou o século XX. Mas, trata-se de um dicionário, como procuramos mostrar, profundamente ancorado numa certa tradição teórica feminista francesa. O quadro teórico utilizado, a bibliografia que serviu de referência, os verbetes escolhidos são resultado de um contexto teórico/político particular. O caráter situado dessas elaborações, como de qualquer outra, não pode ser esquecido. Mas isso, de forma alguma, tira a pertinência da edição da obra no Brasil. Esperamos que a viagem dessas teorias ao país traga novos elementos para os debates brasileiros.

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Spender, Citeris. Routledge International Encyclopedia of women.Global women's issues and kwowledge. Londres/Nova York, Routledge, 2000.
Varikas, Eleni. Féminisme, modernité, postmodernisme: pour un dialogue des deux cotés de l'ocean. Futur Anterieur, 1993. Site: www.multitudes.samizdat,net/spip.php?rubrique334 - visitado em 5/03/2007__________. Penser le sexe et le genre. Paris, PUF, 2006.

* Resenha de Hirata, Helena; Laborie, Françoise et alii. Dicionário Crítico do feminismo. São Paulo, Editora UNESP, 2009. Recebida para publicação em janeiro de 2011, aceita em março de 2011.
1 A versão brasileira é uma tradução da 2ª edição da obra publicada na França em 2004. A principal modificação em relação à edição anterior, de 2000, é a inclusão de dois verbetes: emprego e lesbianismo.
2 Nos Estados Unidos há diversas publicações do gênero, ver, por exemplo: Code, 2000; Spender, 2000; Gambe, 2001.
3 "Genre Travail Mobilités" é apresentado no site do grupo como uma equipe do laboratório CRESSPPA (Centre de Recherches Sociologiques et Politiques de Paris) centrado nas questões do trabalho numa perspectiva de análise de gênero. Para maiores informações, ver site http://www.gtm.cnrs.fr/
4 Para se ter uma ideia das polêmicas envolvidas na elaboração desse verbete, cito um trecho da carta de Marie-Victoire Louis a Danièle Kergoat recusando o convite para escrever um verbete sobre o tema no Dicionário e explicando os motivos dessa posição: "Participar deste dicionário, conjuntamente com esta pesquisadora [Gail Pheterson], cujas posições eu conheço após diversos anos, significa que nossas duas "análises" pertencem ao mesmo debate de 'ideias'. E seriam da mesma natureza. Eu considero, de minha parte, que um texto legitimando um sistema de dominação proxeneta que – depois de séculos, frequentemente em acordo com os Estados – justificou o aprisionamento, a negação de direitos, os estupros, as violências, as torturas, os assassinatos praticados depois de séculos sobre as mulheres, as crianças e adolescentes dos dois sexos – mas também cada vez mais sobre os homens – não tem seu lugar num projeto de dicionário feminista" [www.marievictoirelous.netdocument.php?id=354 - visitado em 30/01/2011].
5 O verbete "sindicatos" começa, sem especificar o contexto ao qual se refere, com a seguinte frase "Em 21 de março de 1884, a lei Waldeck-Rousseau põe fim à lei de Le Chapelier (1791), permitindo a formação de sindicatos profissionais de operários e de trabalhadores de escritório" (236).
6 Sobre a ideia de "french feminism" ver Delphy (1996) e Varikas (1993).
7 Para consultar o documento, ver anexo do livro de Eleni Varikas, Penser le sexe et le genre (2006).

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