Eduardo Henrik Aubert
Graduando Depto. de História - FFLCH/USP e Bolsista de Iniciação Científica - FAPESP
SCHMITT, Jean-Claude. Os vivos e os mortos na sociedade medieval (trad. Maria Lucia Machado). São Paulo, Companhia das Letras, 1999. 300 p.
A fora textos que originalmente constituíam participações em obras coletivas, Os vivos e os mortos é o primeiro trabalho de Jean-Claude Schmitt traduzido para o português. Infelizmente, pois se trata de um dos mais destacados medievalistas da atualidade, autor de alguns livros de grande impacto na historiografia medievalística contemporânea, como Le Saint Lévrier, de 1979, e La raison des gestes dans l'Occident médiéval, de 1990. De qualquer modo, a publicação em questão, cuja edição francesa data de 1994, oferece uma boa oportunidade para o público brasileiro entrar em contato com o pensamento e a obra de Schmitt.
Schmitt delineia-se, grosso modo, como um representante da heterogênea corrente da "Nova História"1, profundamente vinculada à terceira geração da chamada "Escola dos Annales". É a partir dessa relação que se compreende como, seguindo e verticalizando propostas já apontadas e conduzidas no âmbito da historiografia medievalística por historiadores como Jacques Le Goff (a quem, aliás, dedica o livro), Schmitt elege a antropologia sua interlocutora privilegiada. Há também que se considerar a sólida formação de erudição na "École des Chartes" de que o historiador se beneficiou, o que o deixa muito à vontade no trato com a documentação. Nessa posição, Schmitt soube dar um tratamento bastante instigante a um objeto que, desde a década de 1970, vem merecendo forte atenção dos historiadores, como demonstram os trabalhos de Philippe Ariès, Pierre Chaunu e Michel Vovelle: a morte (Cf. Ariés 1975 e 1977; Chaunu 1978; Vovelle 1975).
Mais especificamente, Schmitt estuda uma modalidade do contato imaginado entre vivos e mortos, as aparições de fantasmas. Quanto a esse ponto, aliás, existe uma ressalva a se fazer à tradução, bastante boa no geral: o título original Les revenants, "Os fantasmas" (ou, mais literalmente, "Os que voltam"), foi excluído do livro em português, batizado com o subtítulo da edição francesa, Les vivants et les morts dans la société médiévale. Essa escolha pode ter por conseqüência retardar a aproximação do leitor com o conteúdo da obra, já que o tipo de relação envolvendo vivos e mortos na sociedade medieval não é único, existindo, pelo menos, uma outra grande dimensão para esses contatos, que compõe uma problemática inteiramente diversa, as viagens ao Além.
O objetivo de Schmitt é entender como e por que os vivos medievais imaginaram uma existência post-mortem para seus finados. Invertendo um conhecido adágio medieval, o autor parte do pressuposto de que "O vivo agarra o morto" (Schmitt 1999: 243), isto é, cabe ao vivo a função ativa no "enunciado do crer": "Com efeito, são os vivos que atribuem aos defuntos uma espécie de existência post-mortem. Se têm a impressão de que os mortos tomam a iniciativa de lhes aparecer, são apenas eles, em seus relatos e suas imagens, seus fantasmas e seus sonhos, seu sentimento de culpa e sua cupidez, que fabricam o retorno dos mortos." (Schmitt 1999: 243). Encarados, assim, como parte de um crer ativo (daí a preferência da substantivação do verbo "crer" ao substantivo "crença"), os relatos de fantasmas se explicam a partir das funções sociais que desempenham, estruturando e confirmando redes de solidariedade, mitigando a dor da perda e a culpa – em uma espécie de "trabalho de luto" – servindo como instrumento de exercício do poder, construindo e fortalecendo a representação do mundo e da figura humana.
O levantamento documental de Schmitt, ainda que não exaustivo, é bastante completo, envolvendo tanto fontes escritas como iconográficas (dessas, há 30 reproduções no miolo central do livro), tratadas nas suas especificidades, como se faz necessário. A atenção para com a natureza do documento toma papel primordial na exposição, pois é na dialética entre a forma e o conteúdo da fonte que se revelam mais claramente as funções sociais do relato, levando o historiador ao cerne do objetivo de deslindar o "funcionamento social da memória dos mortos na época medieval" (Schmitt 1999: 21).
Ainda que pretenda ser uma história dos fantasmas medievais entre os séculos V e XV, a ênfase do livro é reconhecidamente colocada na Idade Média Central. Dessarte, o capítulo 1, "A rejeição dos fantasmas", que trata da atitude reinante na Alta Idade Média com relação aos fantasmas, parece algo introdutório. Nesse período, os fantasmas eram rechaçados pela Igreja, fundamentando-se tanto na Bíblia como em Santo Agostinho, "verdadeiro fundador da teoria cristã dos fantasmas" (Schmitt 1999: 33). Essa atitude, bem como a decorrente "escassez" dos relatos no período, explica-se pela força ainda grande dos elementos do paganismo antigo, combatidos fortemente pela Igreja, e pela dimensão da concepção dualista do mundo, que privilegiava as aparições das criaturas celestes e do mundo demoníaco em detrimento dos fantasmas propriamente ditos.
A partir do ano 1000 e no século XI afora, contudo, os relatos de fantasmas se multiplicam, principalmente em função do desenvolvimento da liturgia dos mortos, que estrutura uma complexa rede de trocas materiais e simbólicas entre o morto, seus herdeiros, a Igreja e os pobres (Cf. Schmitt 1999: 49-50). A difusão desse dispositivo institucional altera a atitude com relação às aparições dos mortos, que então "podem aparecer para os vivos, e para o duplo benefício de uns e outros" (Schmitt 1999: 51). A existência de um corpus documental de vulto indica um papel ativo e relevante das aparições de fantasmas, possibilitando a Schmitt entrar, de fato, na investigação que se propõe. Essa é, sem dúvida, uma das fortes razões que o levam a centrar o estudo na Idade Média Central, e não antes.
Uma das feições que esses relatos assumem é como parte de uma auto-biografia, em que as aparições costumam ocorrer durante o sono, configurando uma experiência mais subjetiva. A promoção desse tipo de relato articula-se com o reconhecimento do "eu" e, portanto, com a noção de indivíduo. De fato, a promoção do sonho e da auto-biografia acompanha a do sujeito, a partir do século XI. Essa é a matéria do capítulo 2, "Sonhar com mortos", de importância fundamental na exposição de Schmitt, especialmente em função da oposição que estabelece com os cinco capítulos subseqüentes, que tratam de relatos contados de fantasmas, de experiências de terceiros. Essa diferença encontra-se na base de uma das principais hipóteses do livro, "de uma objetivação da visão e da imagem do fantasma que vai de par com a socialização do relato, com sua transmissão e sua legitimação pelo escrito autorizado de um clérigo, sua utilização para toda espécie de fins ideológicos" (Schmitt 1999: 244).
A partir dessa distinção, entende-se por que mais da metade do livro se dedica ao estudo dos relatos contados: são eles que circulam mais amplamente na sociedade, adquirindo funções sociais múltiplas. A forma dos relatos, nesse caso, é bastante reveladora, e daí que Schmitt delimite seus capítulos tendo em conta os gêneros narrativos dos documentos aos quais se volta. No princípio do capítulo 3, estabelece uma diferenciação entre miracula, mirabilia e exempla que o conduzirá até o capítulo 6 inclusive.
O capítulo 3, "A invasão dos fantasmas", ocupa-se dos miracula, cujo âmbito de produção e circulação é fundamentalmente o meio clerical, especialmente monástico. Acompanhando a função cada vez mais determinante dos monges na liturgia dos mortos, prestam-se tanto ao "trabalho de luto", como ao objetivo mais diretamente político de reforma monástica (Cluny é o melhor exemplo), prestigiando os mosteiros em que a aparição se dá. Essa função é típica dos miracula, que se diferenciam dos mirabilia porque o fato prodigioso que aqueles narram é fruto da intervenção divina na ordem natural do mundo. Os mirabilia, por sua vez, falam de fenômenos que têm causas naturais ocultas. Essa característica possibilita a secularização dos relatos, em que surge, então, o morto leigo e se facultam as aparições coletivas. O morto individual é objeto do capítulo 4, "Os mortos maravilhosos", e a aparição coletiva, a tropa dos mortos, do capítulo 5, "O bando Hellequin". Destaca-se aí uma hipótese bastante interessante articulada por Schmitt: o "exército dos mortos" teria servido, ao longo da Idade Média Central, especialmente no século XII, como instrumento ideológico da Igreja para frear a belicosidade da nobreza, concomitantemente com outras instituições, como a "trégua de Deus" e a "paz de Deus".
No entanto, a difusão ampla dos relatos de aparições de fantasmas no corpo da sociedade só ocorreu no século XIII, veiculados pelos exempla dos pregadores cistercienses e, de modo muito mais intenso, mendicantes. Assunto do capítulo 6, "O imaginário domesticado?", essas narrativas, em que os mortos aparecem muito mais como tipos gerais do que na sua particularidade, desempenham a função de instrumentos de pregação, jogando com os sentimentos de esperança e medo de forma a definir e esquadrinhar o comportamento do fiel.
A documentação que fundamenta o capítulo 7, "Os mortos e o poder", constituise de três relatos muito singulares, longas "entrevistas" com os fantasmas, espécies de interrogatórios dos mortos. Distribuídos entre os séculos XIII e XV, esses relatos "fazem eco aos grandes debates contemporâneos sobre esses temas [a condição do morto em particular, dos mortos em geral e sua sorte no além]. Dão testemunho, a esse título, da inserção da reflexão teológica no gênero narrativo." (Schmitt 1999: 171). Oferecidos todos eles ao papa ou ao imperador, constituem "instrumentos de uma política eclesiástica de doutrinação moral e religiosa" (Schmitt 1999: 178), fortemente ancorada na reflexão teórica. São instrumentos de "alta política", por assim dizer, e, portanto, de mais restrita circulação.
Os capítulos 8 e 9, "Tempo, espaço e sociedade" e "Figurar os fantasmas", distinguem-se um pouco daqueles que os precedem por não se deterem em um ou outro gênero narrativo específico, mas, abrindo o leque da documentação (no capítulo 9, as fontes iconográficas, no seu conjunto e na sua especificidade, colocamse no centro da investigação), referem-se a uma função fundamental e ampla das aparições de fantasmas, o seu papel cognitivo. Nesses dois capítulos, encontram-se algumas das passagens mais notáveis da obra. A rede imaginária criada pela existência post-mortem, nas interpenetrações e nas alteridades que estabelece com o mundo terreno, mostra-se como móvel fundamental na incessante construção dos quadros de referência da sociedade medieval.
Do percurso expositivo e argumentativo perseguido, de sua atenção para com a natureza da documentação, do modo como articula forma e função do relato e da alternância que cria entre narrativa e interpretação, depreende-se que o autor repousa seu interesse sobre alguns aspectos localizados no entrecruzamento do que Vovelle denominou a "morte vivida" e o "discurso da morte" (Vovelle 1975 e 1996), isto é, dos sentimentos, ritos e gestos associados à morte, e de sua representação discursiva consciente. A proposta de abordagem para esse problema, enunciada pelo próprio Schmitt, parece-nos bastante acertada, inscrevendo o trabalho no âmbito da "história social do imaginário", uma escolha que tem decorrências importantes. Primeiramente, ao definir seu trabalho como história social, o autor privilegia o objeto geral em detrimento do particular, ou seja, o morto ordinário em detrimento do morto singular. Daí que seus relatos não incluam, por exemplo, os santos, que, para usar a expressão de Peter Brown ecoada por Schmitt, são "mortos muito especiais" (Schmitt 1999: 16). Em segundo lugar, é um trabalho de história do imaginário, uma modalidade que se constrói na interpenetração entre temporalidades longas e curtas, possibilitando o diálogo efetivo da história com as outras ciências do homem, de perspectiva primordialmente sincrônica, sem, contudo, prejudicar a diacronia, localizada no cerne do métier d'historien. Assim, a história social do imaginário constitui campo fecundo para o desenvolvimento de uma "antropologia histórica", como essa modalidade é denominada no interior do movimento da chamada "Nova História", ou, ao menos, de uma "história antropológica", como alguns historiadores certamente prefeririam denominá-la2. De todomodo, é sob o signo dessa relação que se inscreve a obra de Schmitt3.
Caudatário da reflexão da antropologia estrutural, Schmitt busca entender um universo social na sua coesão interna e na sua alteridade, enxergando na sociedade medieval um sistema sócio-cultural complexo, com estruturas de funcionamento próprias cujos mínimos elementos só adquirem sentido e, portanto, só podem ser explicados a partir do papel que desempenham com relação ao todo do sistema, papel esse incessantemente presentificado nas práticas da sociedade. Em função dessa perspectiva, Schmitt não admite a possibilidade de "sobrevivências" antigas em um sistema social. Assim, no primeiro capítulo, dedica um espaço bastante reduzido ao que chama de "heranças e contramodelos" (Schmitt 1999: 28), o que contrasta com a disposição adotada, por exemplo, por Le Goff, que, em seu La Naissance du Purgatoire, dedica um capítulo inteiro ao "Além antes do Purgatório". Na atitude de Schmitt, não se pode deixar de vislumbrar um eco das palavras de Bloch insurgindo-se contra o "ídolo das origens", em seu Apologie pour l'histoire. Tal posição, ainda que bastante acertada em muitos casos, quando ganha dimensão propriamente iconoclasta, pode acarretar conseqüências mais sensíveis do que o próprio anacronismo, que pretende evitar. No livro de Schmitt, isso se torna evidente em um problema de datação, no que se refere à relação entre a multiplicação dos relatos, no século XI, e a causa identificada, o estabelecimento da liturgia no século IX. Para dar conta desse lapso temporal, o autor oscila muitas vezes na demarcação rigorosa desses fenômenos, o que parece desnecessário se se tem em conta que os diversos fenômenos são dotados de diferentes temporalidades de repercussão social. No caso, a duração desse processo tende a ser omitida, quando está evidente no próprio livro que há dois séculos se interpondo entre dois fenômenos conexos, correspondentes justamente a seu tempo de repercussão social.
A perspectiva antropológica, bem como a histórica, beneficia-se da alteridade, e nisso se assemelham. É uma alteridade parcial, está certo, visto que a separação radical entre sujeito e objeto do conhecimento do homem é, no mínimo, ilusória. De qualquer forma, um certo senso de alteridade, que é, de fato, fruto de uma diferença real, tem grande utilidade, munindo o pesquisador com uma arma poderosa para a compreensão do seu objeto: o estranhamento. Há, contudo, que se tomar certos cuidados a esse respeito, especialmente para evitar certas perspectivas ideologicamente perniciosas, imaginando-nos a nós, pesquisadores, em situação superior – como juízo de valor – à dos homens que constituem nosso objeto. Se é bem verdade que Schmitt se preocupa com a questão, por exemplo, descartando logo na introdução a noção de Lévy-Bruhl de uma "mentalidade primitiva" (Schmitt 1999: 22), por vezes, sentem-se no texto vestígios dessa atitude. É o caso do sempre reiterado ceticismo com relação à existência dos fantasmas. O livro se abre com a frase "Os mortos têm apenas a existência que os vivos imaginam para eles." (Schmitt 1999: 15), que ecoa em todo o livro, inclusive na conclusão, em que se lê: "Não cessamos de relembrá-lo: os mortos não têm outra existência que não a que os vivos lhes dão." (Schmitt 1999: 246). Mais à frente, ao falar do papel dos fantasmas hoje, Schmitt se insurge contra a "voga" das pesquisas de parapsicologia ou de metapsicologia, do espiritismo e da vidência: "O fenômeno não parece tão marginal quanto se poderia pensar ou desejar" (Schmitt 1999: 248). Essa constatação não visa de forma alguma a abalar o mérito da obra ou da posição adotada pelo autor, mas tão somente apontar para a força do enraizamento de uma atitude mental que talvez não fosse, em todas as suas dimensões, aquela por que conscientemente optaríamos. A noção de alteridade em Schmitt é, no mais das vezes, bastante bem resolvida, levando o autor a considerar mesmo a possibilidade e o interesse de uma história comparada dos fantasmas, o que, contudo, não persegue, em virtude das dimensões e dos propósitos da obra.
Por fim, há uma última decorrência da adoção da perspectiva antropológica, que repercute diretamente na obra. Como o antropólogo, o "antropólogo-historiador", ou o "historiador-antropólogo", ao se deter sobre um fenômeno, efetua sua descrição detalhada, nos moldes daquela facultada pelo caderno de anotações que o etnógrafo leva a campo. Trata-se da característica microscópica da "descrição densa" de que fala Geertz (1989: 31), refletida no trabalho do historiador na chamada "microhistória" (cf. Levi 1992: 133-161). Nesse sentido, a exposição de um fenômeno, por menor que ele possa parecer, torna-se longa; os detalhes são pormenorizados até onde as forças do pesquisador conseguem levá-lo. Embora possa mostrar-se bastante útil, abrindo, é certo, múltiplas sendas para atingir idéias mais abrangentes acerca do sistema sócio-cultural explorado, pois que a alteração da escala de observação altera necessariamente o ponto de vista, essa atitude tem por contraponto necessário a delimitação de objetos reduzidos, o que é, de resto, marca de uma "pósmodernidade" receosa – talvez não sem razão – das totalizações. Nesse sentido, o livro de Schmitt não pode ser considerado exaustivo – nem o autor assim o pretende. Ainda há muito o que se fazer a respeito dos fantasmas medievais, especialmente se se tem em conta a idéia de uma "longa Idade Média", como sugeriu Le Goff, possibilidade para a qual Schmitt aponta (Schmitt 1999: 246-248), mas que não desenvolve. De fato, no que diz respeito aos fantasmas da Idade Média Central no Ocidente europeu, a obra é excepcionalmente clara e abrangente, além de profundamente instigante, mas, mesmo assim, aberta a contribuições.
No número de possibilidades que a obra de Schmitt abre para ulteriores investigações acerca dos fantasmas medievais, devemos entrever algo do mesmo espírito que guiava Bloch na introdução de A sociedade feudal: "Este livro não tem desejo mais forte do que abrir o apetite a alguns estudiosos." (Bloch 1987: 15). Apropriando-nos da imagem micheletista, poderíamos dizer que ainda há muito sangue negro dos mortos para se beber (Michelet in Barthes 1991: 17-18). O livro de Schmitt oferece um bom aperitivo.
Referências Bibliográficas
AGOSTINI, Ailton José. "Jacques Le Goff: por uma nova fronteira entre Antropologia e História", in SCHWARCZ, Lilia K. Moritz & GOMES, Nilma Lino (orgs.). Antropologia e História: debate em região de fronteira. Belo Horizonte, Autêntica, 2000. p. 33-51.
ARIÈS, Philippe. Essais sur l'histoire de la mort en Occident du moyen âge à nos jours. Paris, Seuil, 1975.
______. L'Homme devant la mort. Paris, Seuil, 1977.
BARTHES, Roland. Michelet. São Paulo, Companhia das Letras, 1991.
BLOCH, Marc. A sociedade feudal. Lisboa, Edições 70, 1987.
CHAUNU, Pierre. La Mort à Paris, XVIe, XVIIe, XVIIIe siècles. Paris, Fayard, 1978.
DOSSE, François. A História em Migalhas. São Paulo, Ensaio, 1994.
GEERTZ, Clifford. "Uma descrição densa: por uma teoria interpretativa da cultura", in: A interpretação das culturas. Rio de Janeiro, LTC, 1989, p.13-41.
LEVI, Giovanni. "Sobre a micro-história", in: BURKE, Peter (org.). A escrita da história. São Paulo, Unesp, 1992, p. 133-161.
SCHMITT, Jean-Claude. Os vivos e os mortos na sociedade medieval. São Paulo, Companhia das Letras, 1999.
______. "Entrevista concedida a Hilário Franco Junior", in Revista USP, 23, 1994, p. 14-21.
VOVELLE, Michel. Mourir autrefois. Paris, Gallimard/Julliard, 1975.
______. "A História dos Homens no Espelho da Morte", in BRAET, Herman & VERBEKE, Werner (eds.). A Morte na Idade Média. São Paulo, Edusp, 1996. p. 11-26.
1 Ainda que não se sinta confortável com a etiqueta (cf. Schmitt 1994:16).
2 Referimo-nos, aqui, à crítica de François Dosse (1994: 173), que discute a "redução" da história a adjetivo da antropologia.
3 Não se trata, é claro, de uma aproximação com algo como uma "antropologia global", mas sim de uma filtragem seletiva de alguns campos da reflexão antropológica e de um corpo determinado de autores. É com um certo remorso que nos submetemos à generalização, reconhecendo o interesse que teria uma delimitação mais precisa dos pontos de contato entre história e antropologia na obra de Schmitt, um pouco como Agostini sugere para a obra de Le Goff (Agostini 2000).
Graduando Depto. de História - FFLCH/USP e Bolsista de Iniciação Científica - FAPESP
SCHMITT, Jean-Claude. Os vivos e os mortos na sociedade medieval (trad. Maria Lucia Machado). São Paulo, Companhia das Letras, 1999. 300 p.
A fora textos que originalmente constituíam participações em obras coletivas, Os vivos e os mortos é o primeiro trabalho de Jean-Claude Schmitt traduzido para o português. Infelizmente, pois se trata de um dos mais destacados medievalistas da atualidade, autor de alguns livros de grande impacto na historiografia medievalística contemporânea, como Le Saint Lévrier, de 1979, e La raison des gestes dans l'Occident médiéval, de 1990. De qualquer modo, a publicação em questão, cuja edição francesa data de 1994, oferece uma boa oportunidade para o público brasileiro entrar em contato com o pensamento e a obra de Schmitt.
Schmitt delineia-se, grosso modo, como um representante da heterogênea corrente da "Nova História"1, profundamente vinculada à terceira geração da chamada "Escola dos Annales". É a partir dessa relação que se compreende como, seguindo e verticalizando propostas já apontadas e conduzidas no âmbito da historiografia medievalística por historiadores como Jacques Le Goff (a quem, aliás, dedica o livro), Schmitt elege a antropologia sua interlocutora privilegiada. Há também que se considerar a sólida formação de erudição na "École des Chartes" de que o historiador se beneficiou, o que o deixa muito à vontade no trato com a documentação. Nessa posição, Schmitt soube dar um tratamento bastante instigante a um objeto que, desde a década de 1970, vem merecendo forte atenção dos historiadores, como demonstram os trabalhos de Philippe Ariès, Pierre Chaunu e Michel Vovelle: a morte (Cf. Ariés 1975 e 1977; Chaunu 1978; Vovelle 1975).
Mais especificamente, Schmitt estuda uma modalidade do contato imaginado entre vivos e mortos, as aparições de fantasmas. Quanto a esse ponto, aliás, existe uma ressalva a se fazer à tradução, bastante boa no geral: o título original Les revenants, "Os fantasmas" (ou, mais literalmente, "Os que voltam"), foi excluído do livro em português, batizado com o subtítulo da edição francesa, Les vivants et les morts dans la société médiévale. Essa escolha pode ter por conseqüência retardar a aproximação do leitor com o conteúdo da obra, já que o tipo de relação envolvendo vivos e mortos na sociedade medieval não é único, existindo, pelo menos, uma outra grande dimensão para esses contatos, que compõe uma problemática inteiramente diversa, as viagens ao Além.
O objetivo de Schmitt é entender como e por que os vivos medievais imaginaram uma existência post-mortem para seus finados. Invertendo um conhecido adágio medieval, o autor parte do pressuposto de que "O vivo agarra o morto" (Schmitt 1999: 243), isto é, cabe ao vivo a função ativa no "enunciado do crer": "Com efeito, são os vivos que atribuem aos defuntos uma espécie de existência post-mortem. Se têm a impressão de que os mortos tomam a iniciativa de lhes aparecer, são apenas eles, em seus relatos e suas imagens, seus fantasmas e seus sonhos, seu sentimento de culpa e sua cupidez, que fabricam o retorno dos mortos." (Schmitt 1999: 243). Encarados, assim, como parte de um crer ativo (daí a preferência da substantivação do verbo "crer" ao substantivo "crença"), os relatos de fantasmas se explicam a partir das funções sociais que desempenham, estruturando e confirmando redes de solidariedade, mitigando a dor da perda e a culpa – em uma espécie de "trabalho de luto" – servindo como instrumento de exercício do poder, construindo e fortalecendo a representação do mundo e da figura humana.
O levantamento documental de Schmitt, ainda que não exaustivo, é bastante completo, envolvendo tanto fontes escritas como iconográficas (dessas, há 30 reproduções no miolo central do livro), tratadas nas suas especificidades, como se faz necessário. A atenção para com a natureza do documento toma papel primordial na exposição, pois é na dialética entre a forma e o conteúdo da fonte que se revelam mais claramente as funções sociais do relato, levando o historiador ao cerne do objetivo de deslindar o "funcionamento social da memória dos mortos na época medieval" (Schmitt 1999: 21).
Ainda que pretenda ser uma história dos fantasmas medievais entre os séculos V e XV, a ênfase do livro é reconhecidamente colocada na Idade Média Central. Dessarte, o capítulo 1, "A rejeição dos fantasmas", que trata da atitude reinante na Alta Idade Média com relação aos fantasmas, parece algo introdutório. Nesse período, os fantasmas eram rechaçados pela Igreja, fundamentando-se tanto na Bíblia como em Santo Agostinho, "verdadeiro fundador da teoria cristã dos fantasmas" (Schmitt 1999: 33). Essa atitude, bem como a decorrente "escassez" dos relatos no período, explica-se pela força ainda grande dos elementos do paganismo antigo, combatidos fortemente pela Igreja, e pela dimensão da concepção dualista do mundo, que privilegiava as aparições das criaturas celestes e do mundo demoníaco em detrimento dos fantasmas propriamente ditos.
A partir do ano 1000 e no século XI afora, contudo, os relatos de fantasmas se multiplicam, principalmente em função do desenvolvimento da liturgia dos mortos, que estrutura uma complexa rede de trocas materiais e simbólicas entre o morto, seus herdeiros, a Igreja e os pobres (Cf. Schmitt 1999: 49-50). A difusão desse dispositivo institucional altera a atitude com relação às aparições dos mortos, que então "podem aparecer para os vivos, e para o duplo benefício de uns e outros" (Schmitt 1999: 51). A existência de um corpus documental de vulto indica um papel ativo e relevante das aparições de fantasmas, possibilitando a Schmitt entrar, de fato, na investigação que se propõe. Essa é, sem dúvida, uma das fortes razões que o levam a centrar o estudo na Idade Média Central, e não antes.
Uma das feições que esses relatos assumem é como parte de uma auto-biografia, em que as aparições costumam ocorrer durante o sono, configurando uma experiência mais subjetiva. A promoção desse tipo de relato articula-se com o reconhecimento do "eu" e, portanto, com a noção de indivíduo. De fato, a promoção do sonho e da auto-biografia acompanha a do sujeito, a partir do século XI. Essa é a matéria do capítulo 2, "Sonhar com mortos", de importância fundamental na exposição de Schmitt, especialmente em função da oposição que estabelece com os cinco capítulos subseqüentes, que tratam de relatos contados de fantasmas, de experiências de terceiros. Essa diferença encontra-se na base de uma das principais hipóteses do livro, "de uma objetivação da visão e da imagem do fantasma que vai de par com a socialização do relato, com sua transmissão e sua legitimação pelo escrito autorizado de um clérigo, sua utilização para toda espécie de fins ideológicos" (Schmitt 1999: 244).
A partir dessa distinção, entende-se por que mais da metade do livro se dedica ao estudo dos relatos contados: são eles que circulam mais amplamente na sociedade, adquirindo funções sociais múltiplas. A forma dos relatos, nesse caso, é bastante reveladora, e daí que Schmitt delimite seus capítulos tendo em conta os gêneros narrativos dos documentos aos quais se volta. No princípio do capítulo 3, estabelece uma diferenciação entre miracula, mirabilia e exempla que o conduzirá até o capítulo 6 inclusive.
O capítulo 3, "A invasão dos fantasmas", ocupa-se dos miracula, cujo âmbito de produção e circulação é fundamentalmente o meio clerical, especialmente monástico. Acompanhando a função cada vez mais determinante dos monges na liturgia dos mortos, prestam-se tanto ao "trabalho de luto", como ao objetivo mais diretamente político de reforma monástica (Cluny é o melhor exemplo), prestigiando os mosteiros em que a aparição se dá. Essa função é típica dos miracula, que se diferenciam dos mirabilia porque o fato prodigioso que aqueles narram é fruto da intervenção divina na ordem natural do mundo. Os mirabilia, por sua vez, falam de fenômenos que têm causas naturais ocultas. Essa característica possibilita a secularização dos relatos, em que surge, então, o morto leigo e se facultam as aparições coletivas. O morto individual é objeto do capítulo 4, "Os mortos maravilhosos", e a aparição coletiva, a tropa dos mortos, do capítulo 5, "O bando Hellequin". Destaca-se aí uma hipótese bastante interessante articulada por Schmitt: o "exército dos mortos" teria servido, ao longo da Idade Média Central, especialmente no século XII, como instrumento ideológico da Igreja para frear a belicosidade da nobreza, concomitantemente com outras instituições, como a "trégua de Deus" e a "paz de Deus".
No entanto, a difusão ampla dos relatos de aparições de fantasmas no corpo da sociedade só ocorreu no século XIII, veiculados pelos exempla dos pregadores cistercienses e, de modo muito mais intenso, mendicantes. Assunto do capítulo 6, "O imaginário domesticado?", essas narrativas, em que os mortos aparecem muito mais como tipos gerais do que na sua particularidade, desempenham a função de instrumentos de pregação, jogando com os sentimentos de esperança e medo de forma a definir e esquadrinhar o comportamento do fiel.
A documentação que fundamenta o capítulo 7, "Os mortos e o poder", constituise de três relatos muito singulares, longas "entrevistas" com os fantasmas, espécies de interrogatórios dos mortos. Distribuídos entre os séculos XIII e XV, esses relatos "fazem eco aos grandes debates contemporâneos sobre esses temas [a condição do morto em particular, dos mortos em geral e sua sorte no além]. Dão testemunho, a esse título, da inserção da reflexão teológica no gênero narrativo." (Schmitt 1999: 171). Oferecidos todos eles ao papa ou ao imperador, constituem "instrumentos de uma política eclesiástica de doutrinação moral e religiosa" (Schmitt 1999: 178), fortemente ancorada na reflexão teórica. São instrumentos de "alta política", por assim dizer, e, portanto, de mais restrita circulação.
Os capítulos 8 e 9, "Tempo, espaço e sociedade" e "Figurar os fantasmas", distinguem-se um pouco daqueles que os precedem por não se deterem em um ou outro gênero narrativo específico, mas, abrindo o leque da documentação (no capítulo 9, as fontes iconográficas, no seu conjunto e na sua especificidade, colocamse no centro da investigação), referem-se a uma função fundamental e ampla das aparições de fantasmas, o seu papel cognitivo. Nesses dois capítulos, encontram-se algumas das passagens mais notáveis da obra. A rede imaginária criada pela existência post-mortem, nas interpenetrações e nas alteridades que estabelece com o mundo terreno, mostra-se como móvel fundamental na incessante construção dos quadros de referência da sociedade medieval.
Do percurso expositivo e argumentativo perseguido, de sua atenção para com a natureza da documentação, do modo como articula forma e função do relato e da alternância que cria entre narrativa e interpretação, depreende-se que o autor repousa seu interesse sobre alguns aspectos localizados no entrecruzamento do que Vovelle denominou a "morte vivida" e o "discurso da morte" (Vovelle 1975 e 1996), isto é, dos sentimentos, ritos e gestos associados à morte, e de sua representação discursiva consciente. A proposta de abordagem para esse problema, enunciada pelo próprio Schmitt, parece-nos bastante acertada, inscrevendo o trabalho no âmbito da "história social do imaginário", uma escolha que tem decorrências importantes. Primeiramente, ao definir seu trabalho como história social, o autor privilegia o objeto geral em detrimento do particular, ou seja, o morto ordinário em detrimento do morto singular. Daí que seus relatos não incluam, por exemplo, os santos, que, para usar a expressão de Peter Brown ecoada por Schmitt, são "mortos muito especiais" (Schmitt 1999: 16). Em segundo lugar, é um trabalho de história do imaginário, uma modalidade que se constrói na interpenetração entre temporalidades longas e curtas, possibilitando o diálogo efetivo da história com as outras ciências do homem, de perspectiva primordialmente sincrônica, sem, contudo, prejudicar a diacronia, localizada no cerne do métier d'historien. Assim, a história social do imaginário constitui campo fecundo para o desenvolvimento de uma "antropologia histórica", como essa modalidade é denominada no interior do movimento da chamada "Nova História", ou, ao menos, de uma "história antropológica", como alguns historiadores certamente prefeririam denominá-la2. De todomodo, é sob o signo dessa relação que se inscreve a obra de Schmitt3.
Caudatário da reflexão da antropologia estrutural, Schmitt busca entender um universo social na sua coesão interna e na sua alteridade, enxergando na sociedade medieval um sistema sócio-cultural complexo, com estruturas de funcionamento próprias cujos mínimos elementos só adquirem sentido e, portanto, só podem ser explicados a partir do papel que desempenham com relação ao todo do sistema, papel esse incessantemente presentificado nas práticas da sociedade. Em função dessa perspectiva, Schmitt não admite a possibilidade de "sobrevivências" antigas em um sistema social. Assim, no primeiro capítulo, dedica um espaço bastante reduzido ao que chama de "heranças e contramodelos" (Schmitt 1999: 28), o que contrasta com a disposição adotada, por exemplo, por Le Goff, que, em seu La Naissance du Purgatoire, dedica um capítulo inteiro ao "Além antes do Purgatório". Na atitude de Schmitt, não se pode deixar de vislumbrar um eco das palavras de Bloch insurgindo-se contra o "ídolo das origens", em seu Apologie pour l'histoire. Tal posição, ainda que bastante acertada em muitos casos, quando ganha dimensão propriamente iconoclasta, pode acarretar conseqüências mais sensíveis do que o próprio anacronismo, que pretende evitar. No livro de Schmitt, isso se torna evidente em um problema de datação, no que se refere à relação entre a multiplicação dos relatos, no século XI, e a causa identificada, o estabelecimento da liturgia no século IX. Para dar conta desse lapso temporal, o autor oscila muitas vezes na demarcação rigorosa desses fenômenos, o que parece desnecessário se se tem em conta que os diversos fenômenos são dotados de diferentes temporalidades de repercussão social. No caso, a duração desse processo tende a ser omitida, quando está evidente no próprio livro que há dois séculos se interpondo entre dois fenômenos conexos, correspondentes justamente a seu tempo de repercussão social.
A perspectiva antropológica, bem como a histórica, beneficia-se da alteridade, e nisso se assemelham. É uma alteridade parcial, está certo, visto que a separação radical entre sujeito e objeto do conhecimento do homem é, no mínimo, ilusória. De qualquer forma, um certo senso de alteridade, que é, de fato, fruto de uma diferença real, tem grande utilidade, munindo o pesquisador com uma arma poderosa para a compreensão do seu objeto: o estranhamento. Há, contudo, que se tomar certos cuidados a esse respeito, especialmente para evitar certas perspectivas ideologicamente perniciosas, imaginando-nos a nós, pesquisadores, em situação superior – como juízo de valor – à dos homens que constituem nosso objeto. Se é bem verdade que Schmitt se preocupa com a questão, por exemplo, descartando logo na introdução a noção de Lévy-Bruhl de uma "mentalidade primitiva" (Schmitt 1999: 22), por vezes, sentem-se no texto vestígios dessa atitude. É o caso do sempre reiterado ceticismo com relação à existência dos fantasmas. O livro se abre com a frase "Os mortos têm apenas a existência que os vivos imaginam para eles." (Schmitt 1999: 15), que ecoa em todo o livro, inclusive na conclusão, em que se lê: "Não cessamos de relembrá-lo: os mortos não têm outra existência que não a que os vivos lhes dão." (Schmitt 1999: 246). Mais à frente, ao falar do papel dos fantasmas hoje, Schmitt se insurge contra a "voga" das pesquisas de parapsicologia ou de metapsicologia, do espiritismo e da vidência: "O fenômeno não parece tão marginal quanto se poderia pensar ou desejar" (Schmitt 1999: 248). Essa constatação não visa de forma alguma a abalar o mérito da obra ou da posição adotada pelo autor, mas tão somente apontar para a força do enraizamento de uma atitude mental que talvez não fosse, em todas as suas dimensões, aquela por que conscientemente optaríamos. A noção de alteridade em Schmitt é, no mais das vezes, bastante bem resolvida, levando o autor a considerar mesmo a possibilidade e o interesse de uma história comparada dos fantasmas, o que, contudo, não persegue, em virtude das dimensões e dos propósitos da obra.
Por fim, há uma última decorrência da adoção da perspectiva antropológica, que repercute diretamente na obra. Como o antropólogo, o "antropólogo-historiador", ou o "historiador-antropólogo", ao se deter sobre um fenômeno, efetua sua descrição detalhada, nos moldes daquela facultada pelo caderno de anotações que o etnógrafo leva a campo. Trata-se da característica microscópica da "descrição densa" de que fala Geertz (1989: 31), refletida no trabalho do historiador na chamada "microhistória" (cf. Levi 1992: 133-161). Nesse sentido, a exposição de um fenômeno, por menor que ele possa parecer, torna-se longa; os detalhes são pormenorizados até onde as forças do pesquisador conseguem levá-lo. Embora possa mostrar-se bastante útil, abrindo, é certo, múltiplas sendas para atingir idéias mais abrangentes acerca do sistema sócio-cultural explorado, pois que a alteração da escala de observação altera necessariamente o ponto de vista, essa atitude tem por contraponto necessário a delimitação de objetos reduzidos, o que é, de resto, marca de uma "pósmodernidade" receosa – talvez não sem razão – das totalizações. Nesse sentido, o livro de Schmitt não pode ser considerado exaustivo – nem o autor assim o pretende. Ainda há muito o que se fazer a respeito dos fantasmas medievais, especialmente se se tem em conta a idéia de uma "longa Idade Média", como sugeriu Le Goff, possibilidade para a qual Schmitt aponta (Schmitt 1999: 246-248), mas que não desenvolve. De fato, no que diz respeito aos fantasmas da Idade Média Central no Ocidente europeu, a obra é excepcionalmente clara e abrangente, além de profundamente instigante, mas, mesmo assim, aberta a contribuições.
No número de possibilidades que a obra de Schmitt abre para ulteriores investigações acerca dos fantasmas medievais, devemos entrever algo do mesmo espírito que guiava Bloch na introdução de A sociedade feudal: "Este livro não tem desejo mais forte do que abrir o apetite a alguns estudiosos." (Bloch 1987: 15). Apropriando-nos da imagem micheletista, poderíamos dizer que ainda há muito sangue negro dos mortos para se beber (Michelet in Barthes 1991: 17-18). O livro de Schmitt oferece um bom aperitivo.
Referências Bibliográficas
AGOSTINI, Ailton José. "Jacques Le Goff: por uma nova fronteira entre Antropologia e História", in SCHWARCZ, Lilia K. Moritz & GOMES, Nilma Lino (orgs.). Antropologia e História: debate em região de fronteira. Belo Horizonte, Autêntica, 2000. p. 33-51.
ARIÈS, Philippe. Essais sur l'histoire de la mort en Occident du moyen âge à nos jours. Paris, Seuil, 1975.
______. L'Homme devant la mort. Paris, Seuil, 1977.
BARTHES, Roland. Michelet. São Paulo, Companhia das Letras, 1991.
BLOCH, Marc. A sociedade feudal. Lisboa, Edições 70, 1987.
CHAUNU, Pierre. La Mort à Paris, XVIe, XVIIe, XVIIIe siècles. Paris, Fayard, 1978.
DOSSE, François. A História em Migalhas. São Paulo, Ensaio, 1994.
GEERTZ, Clifford. "Uma descrição densa: por uma teoria interpretativa da cultura", in: A interpretação das culturas. Rio de Janeiro, LTC, 1989, p.13-41.
LEVI, Giovanni. "Sobre a micro-história", in: BURKE, Peter (org.). A escrita da história. São Paulo, Unesp, 1992, p. 133-161.
SCHMITT, Jean-Claude. Os vivos e os mortos na sociedade medieval. São Paulo, Companhia das Letras, 1999.
______. "Entrevista concedida a Hilário Franco Junior", in Revista USP, 23, 1994, p. 14-21.
VOVELLE, Michel. Mourir autrefois. Paris, Gallimard/Julliard, 1975.
______. "A História dos Homens no Espelho da Morte", in BRAET, Herman & VERBEKE, Werner (eds.). A Morte na Idade Média. São Paulo, Edusp, 1996. p. 11-26.
1 Ainda que não se sinta confortável com a etiqueta (cf. Schmitt 1994:16).
2 Referimo-nos, aqui, à crítica de François Dosse (1994: 173), que discute a "redução" da história a adjetivo da antropologia.
3 Não se trata, é claro, de uma aproximação com algo como uma "antropologia global", mas sim de uma filtragem seletiva de alguns campos da reflexão antropológica e de um corpo determinado de autores. É com um certo remorso que nos submetemos à generalização, reconhecendo o interesse que teria uma delimitação mais precisa dos pontos de contato entre história e antropologia na obra de Schmitt, um pouco como Agostini sugere para a obra de Le Goff (Agostini 2000).
Revista de História - USP
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