quarta-feira, 30 de junho de 2010

Um Sertão Chamado Brasil: Intelectuais e Representação Geográfica da Identidade Nacional

LIMA, Nísia Trindade. 1999. Um Sertão Chamado Brasil: Intelectuais e Representação Geográfica da Identidade Nacional. Rio de Janeiro: Revan/IUPERJ-UCAM. 232 pp.

Candice Vidal e Souza
Doutoranda, PPGAS-MN-UFRJ

O pensamento sobre o Brasil organi- zado em torno das representações sobre sertão e litoral é explorado neste trabalho ­ tese premiada em 1998 pelo IUPERJ ­ como proposições acerca da nacionalidade, nas quais se articulam reflexões sobre a identidade dos intelectuais locais. A reconstrução de uma duradoura tradição de excursões intelectuais com vistas a localizar, descrever e explicar o habitante do interior abrange textos distribuídos entre a segunda metade do século XIX, as primeiras três décadas do século XX e a sociologia universitária desenvolvida entre 1933 e 1964. O personagem que recebe os nomes de sertanejo, caboclo ou caipira foi objeto de avaliações positivas e negativas, otimistas e desesperançadas. Para a autora, são essas figurações e seus matizes opinativos os rastros a seguir para encontrar matrizes do pensamento social brasileiro e ensaiar pontos de vista inovadores sobre a história da explicação sociológica do Brasil.

A apresentação dos princípios de compreensão da atividade dos intelectuais em prol do conhecimento e da formação da nacionalidade é feita no primeiro capítulo, "Intelectuais e Interpretação do Brasil". São mobilizados argumentos de referência para a discussão sobre a identidade e a posição dos intelectuais, dentre os quais a concepção de Mannheim a respeito da intelligentsia como grupo social com incumbência de oferecer interpretações do mundo para dada sociedade é adotada para os intelectuais brasileiros em foco. Outras problemáticas se agregam para que se construa definições mais pertinentes ao contexto nacional brasileiro e à nossa história de constituição da reflexão social, as quais levam a constatar a simultaneidade com que o problema da nacionalidade e da identidade social dos intelectuais se colocou aqui. Ao proclamar sua escolha por uma abordagem que atente mais para os temas dos trabalhos sociológicos e menos para os métodos e parâmetros de formação dos pensadores do Brasil, Lima consegue reavaliar propostas consagradas a respeito da constituição das ciências sociais e de suposta ruptura com o pensamento social. A unidade temática que aproxima intelectuais produtores de interpretações do Brasil em diversas frentes de atuação se verifica no debate em torno da incorporação dos sertões. Mais que isto, é o sentimento de estranhamento em relação ao interior que perpassa tantas gerações de brasileiros letrados. Todo o livro convence sobre continuidades normalmente despercebidas entre os intelectuais abrigados nas instituições formadoras das novas gerações e a tradição ensaística. A crítica à adesão de estudiosos contemporâneos de nossa vida intelectual à auto-imagem de seus sujeitos de pesquisa é pois acertada e oportuna.

Descontinuidades geográficas reconhecidas no interior de algumas sociedades nacionais podem ser comparáveis às divisões entre sertão e litoral que fazem sentido para os brasileiros. Esta proposição domina o segundo capítulo, dedicado à representação geográfica da identidade nacional. A experiência norte-americana é privilegiada para o contraste com o caso brasileiro na aproximação entre a noção de fronteira e o par litoral/sertão. No momento em que Lima recupera opiniões sobre a adequação ou não do conceito de fronteira para o Brasil, aparecem incoerências metodológicas. Apesar da opção manifesta por um tratamento não realista do pensamento social ­ abdicar de estabelecer a precisão empírica das descrições sobre o sertão, o litoral ou a fronteira ­, há confusão entre a posição da autora que pretende dizer sobre o real e a fala dos autores do pensamento social. Isto se deve, em parte, à carência de uma definição prévia do estatuto das referências que atuam como material de análise e daquelas que são tomadas como fontes de autoridade explicativa para os propósitos do livro. Assim, o argumento daqueles que pesquisam sobre o tema é colocado no mesmo plano daqueles que efetivamente tomaram parte na construção do discurso sobre a fronteira no Brasil. O confronto despropositado entre teses de fontes distintas, como acontece na subseção "Fronteira e homem fronteiro", revela as implicações de fraquezas metodológicas para a interpretação. Um autor complexo como Vianna Moog é objeto de atenção diminuta e interpretação rasa. A relação entre fronteira e imagens nacionais, que se pretende estar desenvolvendo, perde uma de suas maiores fontes de elaboração justamente nos exercícios comparativos em que Moog foi mestre. Na posição de quem descarta uns e adere a outros, a autora deixa de notar a perspectiva naciocêntrica de um autor como Richard Morse, de quem adota a concepção de que "seria praticamente impossível, no caso brasileiro, falar de uma fronteira, pela inviabilidade de se- parar civilização e primitivismo" (:43).

Em "Missões ao Interior e Interpretação do Brasil", Lima destaca o papel das viagens para a conformação de visões intelectuais do Brasil: o deslocamento pelo território conduz à experiência de contato com espaços e modos de vida tidos por brasileiros. Nas primeiras década da República, foram valorizados os relatos baseados no "conhecimento de oltiva" sobre o sertão, resultantes de viagens científicas, expedições militares e incursões ao interior. Pertencem a esse momento a viagem de Euclides da Cunha aos sertões baianos, a campanha sertanista de Rondon e as viagens científicas do Instituto Oswaldo Cruz. Aqui a autora explora os significados que o sertão tinha para esses empreendedores de viagens e testemunhos. Nesse ponto, observa "como a tendência posterior de 'naturalizar' a palavra, referindo-a a um espaço físico claramente delimitado, desconsidera sua gênese e a alta carga de valores simbólicos a ela associada" (:58). Faz-se aqui uma generalização descuidada, posto que inexiste fundamento etnográfico para a avaliação sobre o empobrecimento ou redução do alcance geográfico e semântico da palavra sertão. Por outro lado, não há clareza sobre a quem se refere essa nota crítica: a autores do pensamento social, a pesquisadores do tema ou a outros agentes? Faço notar ainda que a citação de Nelson Werneck Sodré (:59) foi compulsada erroneamente.

A imagem do Brasil advinda do olhar médico que encontrou a gente dos sertões é objeto do quarto capítulo, "O Sertão como Patologia, Abandono e Essência da Vida Nacional". A participação do discurso higienista na construção de interpretações do Brasil pode ser atestada nas opiniões de vários intelectuais, as quais revelam o entusiasmo com o projeto de saneamento dos sertões convocado por cientistas que mapearam as doenças curáveis da nacionalidade. Nesse contexto, idéias sobre sertão e litoral articularam teorias do Brasil inspiradas na semiologia médica e conduziram a ações profiláticas interessadas em salvar os valores morais essenciais encontrados naqueles sertões em agonia. A observação direta das populações sertanejas gerou descrições de valor etnográfico, que davam notícia sobre organização social, hábitos e linguagem local. Intelectuais como Belisário Penna e Roquette-Pinto foram responsáveis pela constituição do homem do interior como objeto de pesquisa para uma antropologia dos tipos nacionais.

No ânimo do envolvimento intelectual na causa sanitarista foi criado o personagem do Jeca Tatu, alvo de polêmica que dizia respeito a representações do Brasil e à auto-imagem dos próprios intelectuais, conforme a discussão original do capítulo 5, "O País de Jeca Tatu". O pavio aceso por Monteiro Lobato incomodou muitos outros que lançaram alternativas à visão negativa do homem brasileiro, logo refeita pelo próprio criador, já crente na possibilidade de regeneração por políticas de civilização do interior. Da pura crítica, os intelectuais se lançam a pensar direções para a transformação do Jeca, tornado mais um símbolo nacional que a referência ao tipo social do meio rural brasileiro. Ele vem a ser mesmo a identidade metafórica para o intelectual orgulhoso de seus vínculos de origem com o interior, agora soldado da causa nacional.

Desdobramentos da colocação do brasileiro-Jeca como tema da reflexão e da programática de agentes implicados na campanha higienista são reconhecidos por Nísia Trindade Lima em lugar insuspeito: a pesquisa sociológica sobre os cenários rurais brasileiros. O argumento apresentado no último capítulo entusiasma pela visada inédita e surpreendente sobre obras e teses clássicas, capaz de desconstruir opiniões estabelecidas sobre a história das ciências sociais no Brasil. Trata-se da constatação de que a utopia sociológica substitui a utopia higienista em análises do mundo rural brasileiro que, além de descrever e categorizar, desejaram promover mudanças sociais "dirigidas" pela técnica sociológica, meio de redimir o sertão do atraso e integrá-lo à moderna sociedade de mercado. Enfim, a nacionalização do sertão, consolidada por um "sistema de entendimentos comuns", a forma da cultura nacional na visão de Emílio Willems. O par sertão/litoral foi ativado em categorias da análise sociológica como cultura de folk (em Florestan Fernandes) e cultura rústica (em Willems), posteriormente desenvolvidas em Antonio Candido e Maria Isaura Pereira de Queiroz. No tratamento dessa linhagem temática, o estudo de Maria Sylvia de Carvalho Franco é convertido em análise predileta de descrição do sertão em relação a seus antecessores, sem problematização da mudança de registro metodológico aí representada. Em outra seção, a autora retoma a curiosa metáfora fundada nas categorias sertão/litoral operada por Guerreiro Ramos para falar dos partidos intelectuais brasileiros: a oposição entre sociologia euclidiana e sociologia consular ou litorânea. Nesse trecho, a autora assume uma postura normativa ao se propor responder se "faz sentido opor sociologia euclidiana à sociologia consular?" (:203). Este capítulo ainda traz uma compilação de registros fotográficos e representações pictóricas alu- sivas aos sertões.

Nas "Considerações Finais" ao trabalho, além do resumo da argumentação geral, Lima reaparece com proposições sobre o dever-ser da atividade intelectual de compreensão do Brasil, incluindo-se na tradição estudada ao anunciar também uma utopia sociológica.

Pode-se reclamar deste trabalho a esquematização excessiva, prejudicial ao ritmo narrativo; além do uso incidental de pesquisas coincidentes, particularmente evidente nos três primeiros capítulos. Contudo, suas qualidades hermenêuticas devem ser festejadas e rapidamente incorporadas no que desbravam sobre a produção de idéias no Brasil.

Revista Mana

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