domingo, 20 de junho de 2010

Minas e currais. Produção rural e mercado interno de Minas Gerais, 1674-1807


Maximiliano M. Menz1
Doutor em História Econômica-FFLCH/USP


CARRARA, Angelo Alves. Minas e currais. Produção rural e mercado interno de Minas Gerais, 1674-1807. Juiz de Fora: Editora da UFJF, 2007, 364 p.

Editado em 2007 pela editora da UFJF o livro Minas e currais. Produção rural e mercado interno de Minas Gerais, de autoria de Angelo Carrara, pode ser considerado como um dos trabalhos mais importantes a respeito da economia mineradora e das suas estruturas ancilares de abastecimento. Os pontos fortes do trabalho são muitos: em primeiro lugar, a natureza e a abrangência das fontes utilizadas, com destaque à Coleção Casa dos Contos. Em segundo lugar, o rigor metodológico, especialmente na organização de séries sobre preços e entradas de mercadorias pelos registros mineiros. Em terceiro lugar, o seu modelo teórico que permite caracterizar de maneira original as dinâmicas econômicas e agrárias da Minas setecentista, apesar de certas limitações, como tentarei argumentar aqui. Por último, ressalto a incorporação da historiografia hispano-americana, que, dada a importância do fenômeno minerador na América espanhola, aporta raciocínios preciosos para o estudo de Minas Gerais.

A tese parte de uma discussão básica a respeito da economia colonial mineradora: a dicotomia entre decadência e opulência, tema recorrente entre os memorialistas e que perpassou quase toda a historiografia sobre as Minas Gerais. Se alguns historiadores apegaram-se ao discurso decadentista ao se exaurir a produção mineradora, outros procuraram ressaltar o desenvolvimento da agricultura de abastecimento, especialmente na segunda metade dos Setecentos, ressaltando a opulência econômica mineira. Diante desta antinomia, Angelo Carrara reconstitui os principais "indicadores econômicos" da região – quintos, dízimos, entradas de mercadorias, população – que, de certo modo, confirmam o quadro contraditório. Constata assim uma queda nos quintos e nas entradas de mercadorias na década de 1760, além de uma desaceleração no crescimento dos escravos, não obstante a estabilidade nos contratos dos dízimos e o crescimento demográfico geral da capitania.

Este problema, portanto, só pode ser esclarecido se recortado pelas duas paisagens características de Minas Gerais, as minas e os currais, que permitem demarcar "o modelo particular da sociedade agrária colonial de Minas Gerais". Mas, afinal, qual é este modelo?

Angelo Carrara inspira-se na obra de autores marxistas do Rio de Janeiro, como Ciro F. Cardoso, Maria Yeda Linhares e Francisco Teixeira Silva, e em trabalhos de historiadores latino-americanos, como Carlos Sempat Assadourian. A sociedade agrária de Minas se caracterizaria pela coexistência de dois modos de produção articulados, o modo de produção escravista colonial, centrado na produção aurífera e na produção agrária mercantil (auxiliar à extração do ouro), e a produção camponesa de mão-de-obra familiar, ligada, ainda que de maneira "frouxa", à produção mineira. É a articulação entre estes espaços econômicos (caracterizados pela natureza das relações de produção) que demarcaria o mercado interno no espaço colonial.

Além disso, o autor procura diferenciar a economia mineradora da economia açucareira, realçando que o modo de produção escravista na região mineradora esteve vinculado às "demandas geradas pela circulação monetária correspondente à produção do ouro." Assim, sua dinâmica não dependia da demanda externa e a determinação da atividade mineradora "era absolutamente interna" (p. 60). Tal raciocínio é de grande perspicácia, não apenas por permitir delimitar as diferenças entre os setores exportador e minerador na economia colonial, mas também por chamar a atenção para o fato de que, no segundo setor, é a oferta (do ouro) o elemento principal na formação da conjuntura. Contudo, esta afirmação deve ser relativizada pois os metais preciosos não possuem um valor em si; no limite, os custos da extração devem ser inferiores ao poder de compra do ouro extraído que vai depender, aí sim, da demanda exógena pelo metal. Voltarei a falar disso.

O autor desenvolve este eixo de idéias por cinco capítulos, organizados em duas partes: na primeira são analisados os movimentos dos preços e a estrutura dos "mercados internos", na segunda são estudadas as estruturas agrárias.

Da análise dos preços, inspirada na metodologia de Ernest Labrousse, chega-se a uma conclusão inovadora: ao contrário da historiografia sobre a colônia que sempre ressaltou o lado inflacionário da explosão mineradora, é demonstrado que, após o princípio especulativo, a tendência dos preços em Minas Gerais é para a baixa/estabilidade (p. 108). A rápida estabilização dos preços, já na década de 1750, "deve ser interpretada acima de tudo como um índice da capacidade que desde muito cedo a atividade agropecuária adquiriu para alcançar um nível de rendimento tal que tornasse possível a estabilização" (p. 110). Confirma-se assim uma característica da produção escravista de responder com rapidez frente à pressão positiva do lado da demanda. A série dos preços revela mais: depois de 1764, a tendência é para a queda, refletindo no preço dos alimentos a redução da produção aurífera; esta queda, no entanto, teria afetado a agricultura escravista, mas não a produção camponesa que dependia menos do mercado. Explicam-se, portanto, os movimentos contrários entre a população livre (crescendo) e a população cativa (diminuindo) em Minas Gerais.

Em seguida, são estudados os mercado internos pelos volumes de mercadorias e pelos seus caminhos. Angelo Carrara apresenta, assim, um estudo quantitativo dos registros de entradas de mercadorias, revelando que os diferentes espaços da capitania ligavam-se a distintas regiões da colônia (Rio de Janeiro, Bahia, São Paulo) e, sendo assim, movimentavam mercadorias de gênero diverso - escravos, gado, secos e molhados (produtos locais e reinóis). Naturalmente essas articulações reagiram de maneira distinta ao estímulo minerador. Assim, os registros em torno da zona mineradora acompanharam a queda da produção aurífera enquanto que outras zonas, como o sul de Minas, conectaram-se desde cedo ao mercado do Rio de Janeiro. Para Angelo Carrara estas conversões explicam-se também pela natureza da produção escravista, pois "à medida que surgiam novas demandas provocadas pelo crescimento de algum setor econômico, dentro ou fora da Capitania, as unidades de produção mais bem aparelhadas - leia-se, com maior número de escravos - circunstancialmente foram capazes de atender às demandas e de novo participar de uma conjuntura caracterizada por uma produção mercantilizada em grau relativamente elevado" (p. 144).

Confesso, no entanto, que não compreendo porque o autor insiste em falar de um mercado interno de Minas Gerais. Afinal, o que ele demonstra é justamente uma miríade de mercados que conectam-se aos centros mineradores ou a outras regiões, ao sabor das conjunturas. Além disso, não existe uma uniformidade dos preços que, pelo critério dos economistas, caracterizaria um mercado interno. Resta apenas a "territorialidade" desses fluxos até as Minas; mesmo assim, uma parte expressiva desse tráfego é movimentada por mercadorias de origem atlântica, exógenas ao espaço econômico colonial como caracterizado pelo autor. Parece-me, ademais, que Angelo Carrara está consciente deste problema já que apesar do título referir-se a um mercado interno, no singular, por diversas vezes ele fala em mercados internos, no plural. Mas, na minha opinião, esta questão teórica não pode ser contornada pela simples indefinição entre singular e plural: afinal, existiu um mercado interno colonial no Brasil? Acredito que, no final das contas, o livro de Angelo Carrara mostra que não; o que havia eram diversos mercados no interior do Brasil, articulados de diferentes maneiras com os mercados do litoral voltados ao Atlântico português.

Na segunda parte de seu livro são abordadas as estruturas agrárias de Minas. A documentação sesmarial, além de outros documentos cartoriais, permite-lhe reconstituir as diferentes paisagens, as formas de apropriação do espaço e os decorrentes sistemas de produção. As sesmarias, as posses e, principalmente, a compra e a venda de terras são os meios de apropriação do território. Causa surpresa, no entanto, a afirmação do autor de que a propriedade fundiária em Minas sempre funcionou como propriedade privada no sentido econômico. Ora, a propriedade não se define pelo seu uso econômico, mas, com o perdão da redundância, pelo seu modo de apropriação: na medida em que existiam diversos meios de acesso a terra em Minas, a maior parte da população não estava "privada" da terra, mas apenas das melhores glebas já mercantilizadas.

Do ponto de vista da morfologia da exploração agrária, as minas, caracterizadas pelos pequenos sítios, e os sertões das fazendas de gado conformavam as duas principais paisagens das Minas Gerais. Além disso, há que se diferenciar a produção camponesa, direcionada para o auto-consumo, da produção escravista, voltada ao mercado. A partir dessas distinções Angelo Carrara desce às rotinas da produção, rendimentos, técnicas e tipos de produtos, descritos com riqueza de detalhes.

Esta descrição ganha em conteúdo no 4º capítulo com a análise da documentação privada dos contratadores dos dízimos. Além de revelar os segredos do negócio da arrecadação do dízimo – questão que não é menor dado o ineditismo de sua análise –, a fonte permite-lhe demonstrar os ritmos desiguais da produção agrária mineira na segunda metade do século XVIII. As zonas ligadas ao abastecimento das minas sofreram com a diminuição da produção rural, enquanto que nas áreas de fronteira houve um aumento do produto decorrente da ocupação e crescimento demográfico. Tais comportamentos caracterizam o que o autor chama de desconcentração da produção rural, fenômeno marcado pela diminuição da produção escravista de escala e pela pulverização da propriedade em torno de células camponesas. Esclarece-se, portanto, a estabilidade dos dízimos da Capitania no quadro da depressão aurífera, a estabilidade da produção agrícola bruta é contrabalançada pela queda da produtividade e pela retração da produção para o mercado.

A depressão aurífera afetou, assim, o modo de produção escravista provocando a sua dispersão. Vale notar que o autor não fala em crise, pois "o arrefecimento das atividades dominantes atingiu apenas a circulação, e não o nível técnico ou as relações de produção. Só nos é possível falar numa ruptura generalizada na base material, isto é, na formação de um novo modo material de produção (...) a partir dos anos finais do século XIX" (p. 258). Ou seja, seu modelo não deixa de reiterar, ainda que de modo matizado, a idéia da decadência.

No final das contas, apesar dos destacados méritos do modelo, ficam expostos os seus limites: tanto a forma de produção escravista como as populações de lavradores não podem ser pensadas enquanto totalidades (ou seja, enquanto modos de produção). Sem a demanda européia por ouro e a demanda africana por têxteis e armas de fogo seria impossível a reprodução do "modo de produção escravista" e a formação dos mercados que também eram alimentados pela produção camponesa. Outrossim, se é verdade que o modelo é frutífero para explicar as conjunturas do ouro, seguramente ele não permite perceber as grandes transformações no escravismo do século XIX. A escravidão na cafeicultura, por exemplo, é bastante distinta na sua base técnica da produção escravista na mineração ou da produção agropecuária para o abastecimento. Não deixa de ser curioso, no final das contas, que o autor inicie seu texto chamando a atenção para a especificidade da economia mineradora frente à produção agroexportadora e conclua pela sua igualdade, mesmo que limitada à base técnica.

Bem entendido que, apesar das discordâncias teóricas referentes a problemas tangenciais a sua tese, considero que o modelo dá conta das principais questões levantadas no livro. Mérito do autor que, com o rigor de sua exposição e a seriedade de sua metodologia, deixa à sombra as eventuais incongruências do modelo. Parece-me, portanto, que o seu livro é leitura obrigatória para os estudiosos da sociedade mineira e interessados na economia colonial em geral.

1 O autor agradece os comentários do prof. ms. Gustavo Acioli.

Revista de História - USP

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