domingo, 20 de junho de 2010

As duas faces do gueto


Sulfurosas marginalizações

Vera Malaguti Batista1

WACQUANT, Loïc. As duas faces do gueto. Tradução de P. C. Castanheira. São Paulo: Boitempo, 2008. 158 p.

Este novo livro de Loïc Wacquant traz para o centro das discussões uma retificação conceitual fundamental para os campos de trabalho da sociologia, da criminologia e do urbanismo. Como ele mesmo diz, os nove artigos tratam de "uma década de pesquisa voltada para a dissecação da mudança de nexo da marginalidade social, da divisão etnorracial e da política do Estado nas metrópoles do Primeiro Mundo, na alvorada do século XXI". Tendo como objetivo mais amplo demarcar as diferenças entre o caso norte-americano e o francês, ele analisa os levantes de jovens no final da década de 1980 e os recentes na periferia parisiense.

Para isto ele vai realizar dois movimentos intelectuais que têm grande importância para nós, na periferia do capitalismo de barbárie. Ele demonstra como o neoliberalismo fez com que governantes desconstruíssem o Estado de bem estar social para "priorizar a administração penal dos rejeitos humanos", conduzindo o subproletariado urbano a uma sulfurosa marginalização. O outro movimento do poder é a introdução e difusão sistemática e coordenada do "imaginário e de tecnologias norte-americanas de segregação racial", como é o caso da utilização do conceito de gueto para a realidade francesa. A circulação desta cultura, dos papers aos seriados para a TV, tem impedido análises corretas das relações entre classe, lugar e pobreza. A articulação desses dois movimentos, o capital neoliberal que precisa do aumento do controle de força sobre os que estão fora do mercado de trabalho e a infestação de uma cultura policial e prisional norte-americana, produziu um embaçamento e um limite dramático à discussão da "questão criminal" e da questão penitenciária no Brasil. Esses limites propiciaram o que eu chamo de "adesão subjetiva à bárbarie" que produz a escalada do Estado policial em todas as suas facetas sombrias: números astronômicos de execuções policiais disfarçadas de autos de resistência, uso da prisão preventiva como rotina, aumento das teias de vigilância e de invasões à privacidade, escárnio das garantias e da defesa como se fossem embaraços antiéticos à busca da segurança pública. Não importa que tudo isso nos afaste cada vez mais de um convívio aceitável nas nossas grandes cidades, cenário de tantas injustiças e desigualdades sociais; o importante foi a construção de um senso comum criminológico que, da direita fascista à esquerda punitiva, se ajoelha no altar do dogma da pena. Incorporam ambas o argumento mais definitivo para o capital contemporâneo: é a punição que dará conta da conflitividade social, é a pena que moraliza o neoliberalismo. E, como diria Pavarini, para cada colarinho branco algemado no espetáculo das polícias (à la FBI ou Swat), milhares de jovens pobres jogados nas horrendas prisões brasileiras. O importante é a fé na purificação pelo castigo, o grande ordenador social dos dias de hoje.

Wacquant dá nova carga conceitual e semântica ao "processo de descivilização", utilizado por Norbert Elias, para tratar da "demonização do subproletariado negro por meio da alcunha de underclass", que ele chama de mito semijornalístico e semiacadêmico. Ele faz a genealogia da invenção da categoria underclass que circula rapidamente da mídia para "retornar de forma triunfante à sociologia", este saber que vive uma colossal crise ético-metodológica. Este movimento midiático e acadêmico permitiu a estigmatização crescente dos negros como perigosos e vadios, ao mesmo tempo em que desistoriciza, desrracionaliza e despolitiza a questão social e a questão criminal no gueto norte-americano. Com certeza, essa rede argumentativa constitui o alimento cotidiano do gigantesco processo de encarceramento seletivo nos Estados Unidos.

Esse dispositivo cultural que se espraia pelo mundo, vendendo suas mercadorias (prisões de segurança máxima, técnicas e equipamentos de polícia, tornozeleiras eletrônicas, alarmes, câmeras etc.), tem que lidar na prática com realidades locais heterogêneas, mas os discursos repetidos ad nauseam acabam produzindo outras realidades. Quantas vezes temos visto no Brasil os especialistas (sempre os mesmos sociólogos-psicólogos) revalidando na academia as manchetes de jornais? Estão aí os livros e teses sobre o Estado paralelo, o crime organizado, o narcotráfico, a guerra civil...

Como diz Wacquant, descivilização e demonização formam uma "combinação estrutural e discursiva" para legitimar políticas públicas de abandono urbano e contenção penal. Trazendo Foucault para o debate, ele percebe no gueto "a forma institucional, uma arma de poder de setores da sociedade por meio da qual os brancos dominantes mantiveram os descendentes de escravos – uma população que consideravam corrompida e perigosa – a um só tempo isolados e subjugados, forçados a residir em um perímetro restrito, onde os negros desenvolveram um microcosmo paralelo e uma cultura unificada" (p. 12). Ele aponta este "enclausuramento organizacional compulsório" como algo que se enraíza na escravidão, e aí não podemos deixar de observar alguns paralelos com a favela brasileira que também se diferencia substancialmente. No entanto, a questão etnorracial não pode ser desprezada no Brasil: nossas estatísticas sociais e criminais atestam a violência estrutural de nossa sociedade contra os afro-descendentes. Mas, como o gueto americano, a favela brasileira também cumpre missões contraditórias: por um lado, subordinação ao grupo dominante, mas por outro, escudo protetor. Como disse Sidney Chalhoub, a cidade que esconde é a cidade que protege.2 Estas cidades negras que se escondem na cidade branca, contidas à força, sofrem as consequências do ciclo neoliberal, transformadas agora em território de "medo e dissolução, em consequência da desindustrialização e das políticas de Estado de redução da assistência social e da retração urbana" (p. 77). Ao contrário do que pensam os ecologistas sucessores da Escola de Chicago, o gueto seria uma "forma especial de violência coletiva concretizada no e pelo espaço urbano" (p. 81). Ao gueto se aplica o papel de incubador simbólico e matriz de produção de uma identidade maculada no sentido de Goffman, que Wacquant retoma magistralmente.

Ele demonstra também que a criminalização da pobreza e dos que a defendem, os movimentos sociais, fazem parte da agenda do poder neoliberal. Mostrando os nexos históricos entre a prisão moderna e o processo de acumulação de capital, ele aponta três espécies de encarceramento no capitalismo contemporâneo, descritos pelo sociólogo francês Claude Faugeron: "o encarceramento de segurança, que visa a impedir indivíduos considerados perigosos de causar danos; o encarceramento de diferenciação, destinado a categorias sociais consideradas indesejáveis; e o encarceramento de autoridade, cujo propósito é principalmente reafirmar as prerrogativas e os poderes do Estado" (p. 95). No Brasil neoliberal ganhou evidência uma quarta espécie: o encarceramento de legitimação, essas prisões espetaculosas de alguns brancos ricos que, como dizem Nilo Batista e Raúl Zaffaroni, "servem para encobrir ideologicamente a seletividade do sistema que, através de tais casos, pode apresentar-se como igualitário".3 Essas estratégias se complementam e se dedicam a distribuir populações a serem controladas no coração do capitalismo central.

Em trabalhos anteriores Wacquant já demonstrara a simbiose entre o gueto e a prisão. Megan Comfort analisou as complexas relações familiares que hoje perpassam as gigantescas prisões norte-americanas.4 Wacquant denuncia a obsessão pelo tema da violência urbana e da delinquência juvenil como estratégias de fortalecimento do processo de redefinições de formas e conteúdos da ação do Estado: do Estado keynesiano ao Estado darwinista. Aqui ele analisa a "conversão das classes dominantes à ideologia neoliberal" apontando os três estágios na difusão mundial dessa cultura punitiva. O primeiro estágio seria o de gestação, implementação e demonstração nas cidades norte-americanas, especialmente em Nova York; o segundo, a exportação dessas ideias, esse vento punitivo que sopra da América; e o terceiro consiste em "aplicar uma cobertura de argumento científico sobre tais medidas". Nesta fase ele denuncia os intelectuais contrabandistas "que legitimam com sua autoridade acadêmica a adaptação das políticas e dos métodos norte-americanos" (p. 103).

Talvez o mais importante traço deste trabalho seja a afirmação do autor de que o recurso ao aparato prisional não pode ser naturalizado, mas apresenta-se como opção política, como filiação a um projeto mais amplo econômico, cultural e social. A ascensão do Estado penal norte-americano, em detrimento do seu wellfare system, ergueu-se nos últimos trinta anos e é caracterizado por Loïc Wacquant em cinco dimensões: 1) expansão vertical através da hiperinflação carcerária (2 milhões de pessoas nos EUA); 2) expansão horizontal através de medidas "despenalizadoras" (hoje, 6,5 milhões de norte-americanos estão sob supervisão da justiça criminal, estimando-se que as autoridades tenham acumulado 55 milhões de fichas policiais, o que cobre um terço dos homens da classe trabalhadora; 3) crescimento desproporcional de dotações orçamentárias prisionais em oposição à redução de gastos sociais; 4) ressurgimento e crescimento "frenético" da indústria carcerária privada; 5) "ação afirmativa carcerária", ou seja, absoluta concentração na população encarcerada de afro-americanos.

Loïc Wacquant afirma que só o pensamento crítico pode solver essa doxa neoliberal, na junção da crítica kantiana com a marxiana. Ele demonstra a força desse pensamento, ligado a um projeto de transformação cultural e social, a partir das leituras de Foucault e Bourdieu (os autores mais lidos e citados nas ciências sociais), mas também adverte para como esse pensamento pode ser fechado e sufocado pela grande muralha simbólica. Ele cita a carta a Arnold Ruge que Karl Marx escreve em 1844 propondo uma "crítica impiedosa de tudo o que existe". O livro de Loïc Wacquant nos inspira a repensar os efeitos do capitalismo, neste simulacro de democracia em que os jovens negros e os pobres em geral se encontram cada dia mais nas garras do sistema penal e dos grupos de extermínio. O que o pensamento crítico vai propor depois do grande encarceramento parece ser a principal questão política dos novos tempos.

1 Vera Malaguti Batista é secretária geral do Instituto Carioca de Criminologia (ICC), professora de Criminologia da Universidade Cândido Mendes e membro do Conselho Superior do Instituto Latino-Americano das Nações Unidas para a prevenção do delito (Ilanud). É autora de O medo na cidade do Rio de Janeiro: dois tempos de uma história. Esta entrevista foi publicada em nosso impresso de junho deste ano.
2 CHALHOUB, Sidney. Visões da liberdade. São Paulo: Companhia das Letras, 1990.
3 ZAFFARONI, E. Raúl; BATISTA, Nilo et al. Direito penal brasileiro – V. I. Rio de Janeiro: Revan, 2003, p. 50.
4 COMFORT, Megan. Encarceramento em massa e transformação de relações amorosas nos Estados Unidos. In: Revista Discursos Sediciosos – Crime, direito e sociedade. ano 11, nº 15/16. Rio de Janeiro: Revan/Instituto Carioca de Criminologia, 2007.

Revista de História - USP

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