domingo, 20 de junho de 2010

Buenos Aires negra: arqueologia histórica de una ciudad silenciada


Rosana Gonçalves
Mestranda em História Social-FFLCH/USP


SCHÁVELZON, Daniel. Buenos Aires negra: arqueologia histórica de una ciudad silenciada. Buenos Aires, Emecé Editores, 2003. (244p.)

Em abril de 2005, a Universidad Nacional de Tres de Febrero, com o apoio do INDEC (Instituto Nacional de Estadísticas y Censos), iniciou um censo no qual constará um levantamento quantitativo sobre a população afro-descendente na Argentina. Tal arrolamento não é feito oficialmente há mais de cem anos, uma vez que o último em que foi incluída a pergunta sobre ascendência racial data de 1887, quando 1,8% da população em Buenos Aires declarou ser de origem negra. Hoje estima-se que a população afro-descendente na capital argentina totaliza 4%, segundo a Universidade de Buenos Aires.

Entretanto, tais números nem sempre foram tão inexpressivos. Em 1810, um em cada três portenhos era afro-descendente. Daí a importância da obra Buenos Aires negra, de autoria do arqueólogo Daniel Schávelzon da Universidade de Buenos Aires, que diante do silêncio das fontes documentais convencionais, buscou a presença dessa população pela via de seus resquícios materiais.

Muitos dos viajantes que passaram por Buenos Aires no início do século XIX apontaram apenas 50% da população como branca. Há que se levar em conta a subjetividade dos números disponíveis, seja pela dificuldade de se definir quem era ou não branco, seja pela entrada de escravos contrabandeados. Segundo Schávelzon, entre 1606 e 1625, menos de 5% dos escravos que desembarcaram em Buenos Aires foram legalmente contabilizados.

O fato é que milhares de africanos foram levados para a Argentina como mão-de-obra escrava a partir do século XVI e no entanto, hoje o país apresenta cifras tão reduzidas de populações afro-descentes. O que teria acontecido? Daniel Schávelzon aponta vários possíveis fatores que já foram amplamente debatidos por estudiosos do tema: a epidemia de cólera em 1861 ou a de febre amarela dez anos mais tarde, fazendo muitas vítimas entre os escravos por sua alimentação deficiente e sua árdua rotina de trabalho; a dizimação pelo combate na Guerra do Paraguai; o branqueamento consciente por meio de matrimônios com brancos; a entrada em massa de mão-de-obra livre européia. Todos estes motivos somam-se ao fenômeno que o autor considera determinante: alta mortalidade infantil e baixa natalidade entre os negros. Além disso, os censos realizados pelo governo em fins do século XIX objetivaram maquiar qualquer estatística na intenção de caracterizar a nascente nação como européia e branca.

Apesar de apontar os motivos pelos quais vários estudiosos tentam justificar o desaparecimento dos afro-descendentes, este não é o foco principal de Schávelzon em seu livro, mas ressaltar a importância da população africana ou afro-americana na composição do quadro social na Argentina, e principalmente na história de Buenos Aires.

Schávelzon empenha-se em reconstruir esse passado recente, cujas características há muito se apagaram. Chama atenção para o descaso da produção artística e literária do século XIX que quase não citava estes 35% de afro-descendentes entre os habitantes de Buenos Aires ou quando resolvia inseri-los, no mais das vezes era de forma pejorativa, como imorais, incapazes ou infantis. Somente no século XX haveria uma retomada da construção da imagem do negro, sendo em alguns momentos destacado como herói ou personalidade em meio à população branca.

Nesse momento, quando entram em voga os estudos raciais, os especialistas passam a enxergar uma complexidade cultural que não poderia ser resumida como uma cultura africana na América, mas uma cultura afro-americana ou, melhor dizendo, da diáspora africana. Como defende o autor, não era possível ao africano atravessar o Atlântico e continuar vivendo exatamente da mesma forma que vivia em seu continente, não só pela condição de escravo, mas pelo convívio com outros africanos de regiões distantes da de sua origem, ou ainda pelo contato com a cultura americana, seja ela de procedência indígena ou européia. Mas ele traria consigo sua memória, seu aprendizado e seus valores culturais e religiosos.

Neste sentido, afirma Schávelzon, o estudo comparativo da cultura material presente no continente americano apresentou diversas semelhanças em regiões geograficamente distantes. Fumava-se em cachimbos parecidos em São Domingos (atual Haiti), em Cuba, no Brasil ou na Argentina; as cerâmicas que se supõem produzidas por escravos apresentavam similaridades em contextos muito diferentes.

Antes de chegar aos objetos, o autor fará um longo caminho analítico para caracterizar como viviam e se organizavam os escravos, a partir de documentos históricos e estudos etnográficos. Os registros de propriedade, por exemplo, são utilizados para ter-se uma idéia de onde a população afro-descendente podia estabelecer moradia. Assim, esforça-se em traçar um panorama do contexto social e entender como viviam estas pessoas, como travavam sua luta silenciosa pela sobrevivência de sua religiosidade e manifestações culturais, apesar de sua condição de cativos.

Um dos marcos de organização da população escrava foi, a partir de 1770, a fundação de "associações", importantes espaços de sociabilidade, sobre as quais Schávelzon afirma não ter muitos dados além de listas de membros e autorizações para criação. Embora não tenha detalhes das características dos espaços físicos, a documentação disponível sugere que havia locais ao ar livre para danças e candombe e recintos fechados para cerimônias de nascimento, casamento, morte, medicina e justiça, onde uma autoridade, na figura de um "rei" ou "rainha", encarregava-se de celebrar estes ritos.

Outra forma de sociabilidade eram os barrios del tambor, locais assim chamados pelos viajantes, onde havia registro de ao menos um terreno ou casa em nome de um escravo ou liberto, que poderia ser sede para as celebrações das "associações". Na verdade, não eram exatamente bairros, mas propriedades dispersas pela cidade. A idéia de bairro é muito mais uma denominação dada pelos viajantes decorrente da sensação negativa que lhes causava o agrupamento de afro-descendentes e suas manifestações religiosas e culturais. Um dado interessante é que tais propriedades, comumente localizadas nos bairros mais afastados, de tamanho reduzido para a época, valiam o dobro do que em média seria o preço de uma alforria, indicando que para o negro muitas vezes seria mais conveniente garantir um espaço de sociabilidade que a própria liberdade.

O autor cita documentos, principalmente do século XVIII, em que autoridades católicas queixavam-se de uma certa falta de ortodoxia por parte de alguns negros quando, apesar de freqüentarem a Igreja, eram flagrados em suas danças e cantos em "seu idioma". Nesse período, os escravos freqüentemente tinham que debater com a igreja permissões para seus festejos. Em fins do XVIII e início do século XIX, este quadro será facilitado com a conquista dos espaços das "associações". Ali os perseguia o racismo de outra maneira, afirma o autor, pois carregavam a alcunha de selvagens, primitivos e suas danças, indecentes.

Outra possibilidade de contato menos vigiado dava-se graças ao trabalho das lavadeiras que, ao se reunirem na região da costa do Rio da Prata para o cumprimento de suas tarefas, vivenciavam momentos de sociabilidade. Há um uso curioso da costa do rio, segundo o autor, porque enquanto durante o dia o local era restrito à freqüência das lavadeiras, sendo os brancos indesejados, ao cair da tarde no verão, elas se retiravam, e os brancos iam banhar-se. A onda higienista de fins do século XIX tentava proibir o trabalho das lavadeiras negras, com o fito de evitar o incômodo da desagradável imagem que o viajante tinha ao chegar no porto. A partir de 1880, com o incremento da política imigrantista, o trabalhador branco europeu assumiu rapidamente os espaços anteriormente ocupados pela mão-de-obra escrava negra.

Imbricado à análise dos documentos históricos e etnográficos, o foco de Schávelzon é decifrar a cultura material e olhar atentamente ao que foi produzido pelo afro-argentino, uma vez que estes objetos podem dar detalhes a respeito do cotidiano desta população, no geral, ignorados pelos relatos escritos. Para o autor, o estudo das fontes materiais é uma forma de dar voz ao afro-portenho, pois as fontes escritas são bastante parciais, tendo sido produzidas em sua maior parte por europeus ou americanos brancos. Entretanto, fazer arqueologia urbana em uma cidade cujo subsolo é destruído constantemente, como é o caso de Buenos Aires, é um árduo desafio.

Foram feitas escavações em diversos locais da cidade e estabelecidos cruzamentos com os registros das propriedades e suas funções, ou seja, se eram moradias, conventos, ou locais destinados ao comércio de mercadorias e escravos, muitos destes sob gerenciamento de religiosos, principalmente jesuítas. Além da reconstrução do cenário externo, para classificar os fragmentos materiais encontrados, o autor caracteriza a distribuição dos espaços no interior das casas, área de trabalho dos escravos, lugar onde dormiam, as "habitações do fundo" - onde normalmente eram instalados os escravos, junto ao galinheiro, ao depósito de lenha e à latrina. Lembra que algumas pessoas possuíam muitos cativos, chegando a 10 em uma só casa, o que os viajantes consideravam uma quantidade exorbitante para o nível social de seus proprietários.

Finalmente, classifica os materiais encontrados em três grupos: os objetos que ele conclui terem sido trazidos da África, os que foram manufaturados na América com características africanas e os apropriados por afro-portenhos (provenientes dos índios ou europeus). Lembra que qualquer classificação é feita sob deduções e probabilidades, nem sempre certezas. Uma constatação possível é o fato de que o acabamento de uma peça de cerâmica confeccionada para o escravo é normalmente grosseiro, não só pelo baixo custo como pela necessidade de resistir ao uso em ambiente de trabalho. Um cachimbo feito para uso de um escravo deveria ser de cano curto para que ele pudesse segurá-lo com apenas uma mão, enquanto mantinha a outra ocupada com o trabalho, ou enquanto caminhava. Entre as peças encontradas nas escavações nos vários sítios de Buenos Aires, foram descobertos colares ou contas de colares, bastões cerimoniais importantes para a cultura africana, pedrinhas, enfim objetos que o autor supõe terem sido usados por africanos ou seus descendentes, não sabendo precisar quando ou como, mas que são evidências de uma religiosidade africana muito presente.

Daniel Schávelzon mostra-se mestre na arte de dar vida a um objeto do qual muitas vezes só sobrou um fragmento. Para isso, segundo ele, é preciso associá-lo o mais possível ao cotidiano dessas pessoas, o que podiam fazer com ou sem autorização e como davam voz aos seus valores ancestrais ainda que transformados. Entender que uma simples faca feita do vidro de uma garrafa ou do osso de um animal, só podia ter sido usada por quem não tinha acesso a facas de ferro: o escravo. Por muito tempo houve resistência ao estudo da arqueologia da cultura africana na Argentina, principalmente porque aceitar este campo de pesquisa era pressupor a existência da cultura diaspórica como dinâmica, capaz de produzir formas de resistência, ainda que silenciosa e por muito tempo, silenciada. Encontrar resquícios da cultura negra ou ainda pessoas negras que se destacaram entre os brancos não parece, para Schávelzon, o mais importante. O relevante é tentar localizar pontos de resistência, manifestações paralelas em um mundo de brancos, ainda que tais experiências não fossem puramente africanas, mas afro-americanas.

E finaliza: "Las diásporas, todas ellas, nunca tuvieron un final feliz. (...) En la Argentina ni siquiera tiene la opción de llegar a tenerlo: simplemente, ya no existe."

Revista de História - USP

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