domingo, 20 de junho de 2010

OÙ VA LE LIVRE?


Marisa Midori Deaecto
Doutoranda em História-FFLCH/USP e bolsista Fapesp


MOLLIER, JEAN-YVES ET COLLECTIF. OÙ VA LE LIVRE? PARIS: LA DISPUTE; SNEDIT, 2002/2003. 349P.

"De todas as cidades" – escreve Walter Benjamin – "não há nenhuma que se ligue mais intimamente com o livro do que Paris".01 Ligação perigosa, que se potencializou no Século das Luzes e confluiu para a emergência de um novo tipo empreendedor no Oitocentismo. É a era do capitalismo editorial de que nos chama a atenção Jean-Yves Mollier, em livro com título deveras sugestivo, O dinheiro e as letras – história do capitalismo editorial (1880-1920)02 – ainda não vertido para o português. De tal sorte que o livro se afirmou como símbolo e produto de uma França ilustrada e revolucionária. Imagem que surge um tanto mais empalidecida nos últimos tempos, quando o sólido e tradicional mercado de livros franceses se confunde com uma nova escala econômica e empresarial: a mídia. Diante desse quadro, Où va le livre?, perguntam-se os estudiosos do volume que ora apresentamos.

A publicação dirigida por Jean-Yves Mollier, diretor do Centre d'Histoire Culturelle des Sociétés Contemporaines, da Université de Versailles Saint-Quentin-en-Yvelines, apresenta uma série de contribuições muito originais sobre os caminhos do livro na França, desde o aparecimento da Encyplopédie de Diderot, até os dias atuais, quando parece incerto seu destino. A estas novas questões subjaz a tese de uma "terceira revolução do livro", que se apóia, grosso modo, no aparecimento de novas possibilidades de suporte de leitura, de diferentes meios de difusão da palavra escrita, como o e-book, e seus efeitos sobre os leitores. De acordo com Roger Chartier, "é fundamentalmente a própria noção de livro que coloca em questão a textualidade eletrônica. Na cultura impressa – afirma – uma percepção imediata associa um tipo de objeto, uma classificação de texto e de usos particulares do texto. A ordem dos discursos é, então, estabelecida segundo sua materialidade, esta, por sua vez, própria aos seus suportes: a carta, o jornal, a revista, o livro, o arquivo etc. Isto não acontece no mundo digital onde todos os textos, quaisquer que sejam eles, são dados a ler num mesmo suporte (a tela do computador) e sob as mesmas formas (que são geralmente decididas pelo leitor)" (pp.301-302).

Outrossim, há de se levar em conta o viés econômico do livro, em cujo mercado se observa a participação cada vez mais expressiva de grandes empresas mediáticas, na verdade, de conglomerados de capital internacional. Basta lembrar, como bem acentua o organizador do volume em questão, que o sagrado campo editorial francês se encontra atualmente dominado por três gigantes do setor de comunicações: a Vivendi-Universal, a Lagardère-Groupe e o grupo Rizzoli-Corriere della sera. Onde o espaço do livro, de editores e escritores, e de todos aqueles "intermediários esquecidos da literatura" de que nos fala Robert Darnton03, nesse mar de empresas transnacionais? Teriam chegado ao fim os paradigmas sobre os quais se apoiaram estudiosos do livro, quais sejam, as questões de identidade nacional, de campo literário, de direito autoral, para citar aqueles que tocam diretamente as características fundamentais do mercado de bens simbólicos? Ou, bem ao contrário, estaria aumentando a tensão permanente entre grandes grupos editoriais e as tradicionais e resistentes editoras? Em termos mais específicos, entre o valor de mercado e o valor simbólico do produto intelectual?04

O que ensina a História. Situa-se nos anos de 1820/30 as primeiras mudanças que atingiram de forma definitiva os editores franceses modernos. Do ponto de vista técnico, temos o uso de bobinas de papel contínuo, a aparição de maquinismos ingleses que "multiplicaram o trabalho humano" (p.25), o uso da estereotipia e da litografia, enfim, uma série de novos aparatos e inovações possibilitaram a produção do livro em larga escala. E, por seu turno, a emergência de um novo tipo de editor/empresário, de modo que o nome de Louis Hachette, que se mantém forte nos catálogos de publicações francesas até nossos dias, personificou esta nova tendência. Na senda de novos profissionais, destacaram-se igualmente os irmãos Garnier, cuja filial foi instalada no Rio de Janeiro em 1851, Hetzel, conhecido editor de Jules Vernes e das belas coleções de livros ilustrados que figuravam amiúde nos catálogos de livrarias brasileiras, Ernest Flammarion, Gallimard, François Maspero..., enfim, toda uma geração de editores-livreiros que perpassou e se adaptou às vicissitudes e outras formas de concorrência e de concentração de empresas que marcaram o mercado editorial no novo século XX.

No que toca à questão das práticas de leitura, observa-se que no século XIX o aumento do número de editores-livreiros e do potencial de produção e distribuição de impressos tornou possível a queda do preço do livro e, conseqüentemente, sua maior difusão. Entre 1838 e 1853 "o preço das principais coleções caiu de 15 F para uma média de 1 F e, paralelamente, as tiragens se elevaram de 1.000 para 6.000 exemplares", escreve Jean-Yves Mollier (p.27). À vista desses dados, parece natural que estudiosos de diferentes áreas das ciências humanas tenham se voltado para temáticas atinentes às práticas de leitura na França oitocentista, rompendo, dessa forma, com a tradição de estudos centrados na problemática da crise do Antigo Regime. Afinal – e a este respeito os críticos literários já tinham dado sua palavra – eram evidentes as mudanças no hábito de consumo de livros, tanto nos limites do país, como nas comunidades francófonas, que nestes tempos se espalhavam por todo o Ocidente. Assim surgiram estudos sobre coleções e bibliotecas populares, ou o que quer que os editores pudessem inventar naquela época para atrair o público leitor. Pesquisas sobre a expansão de bibliotecas públicas e gabinetes de leitura, em termos quantitativos, mas também qualitativos e análises sobre as formas de circulação do impresso, atentas ao funcionamento das tradicionais livrarias, mas também aos circuitos alternativos, como as vendas itinerantes e de camelots nos centros urbanos.

Os estudos reunidos no presente volume se distribuem em três grandes eixos temáticos. Em "A economia do livro", apresentam-se contribuições de Jean-Yves Mollier, sobre "a evolução do sistema editorial francês"; balanço do mercado editorial na atualidade, por Ahmed Silem em "Os dois gigantes do livro: Vivendi Universal Publishing et Hachette-Livre"; e duas reflexões sobre o papel de editores e livreiros na contemporaneidade, de Elisabeth Parinet e Philippe Lane.

A segunda parte, "Resistências e mutações da edição" trata da ligação tênue e muitas vezes controversa do mundo dos negócios e o da cultura. Afinal, como pensar a história editorial sem figuras-chave que se notabilizaram justamente por se colocarem contra a corrente? Como um Gaston Gallimard, que se viu tentado a publicar o então desconhecido Marcel Proust, ainda que sua idéia tenha sido vetada pelo conselho da editora, por ninguém mais que... André Gide.05 E, fato mais recente, a de uma pequena editora de província que se aventurou na edição do romance de Gao Xingjian (A montanha da alma), prêmio Nobel de literatura em 2000. Sem contar os editores que venceram as barreiras da censura, como Pierre de Lescure, fundador das Editions de Minuit que, nos seus primórdios, caracterizou-se pela edição de opúsculos destinados à causa da resistência francesa, durante a Segunda Guerra. Nos anos de 1950-60, muitos outros editores franceses foram alvos da censura, ao publicar autores que se manifestavam abertamente contra o colonialismo francês e as atrocidades acometidas durante as guerras que resultaram no processo de independência de suas antigas colônias. Fato curioso, narrado no livro, diz respeito a uma edição de Carlos Marighela. Em 1970, vinte e quatro editores decidiram publicar em conjunto a edição de Pour la libération du Brésil, visto que a primeira, inicialmente publicada pela Seuil, fora censurada no país (p.205).

Uma terceira e última parte do presente volume se volta para "Os atores do livro". Trata-se de uma série de reflexões sobre o comportamento dos leitores franceses na atualidade (Christine Détrez), sobre as bibliotecas, suas formas de funcionamento e sua relação com o público leitor (Christophe Pavlidès). Além disso, estudos sobre a ligação entre as instituições de leitura e o Estado (Yves Surel), o estatuto do autor frente aos novos suportes de leitura (Antoine Compagnon) e a figura do leitor face "à terceira revolução do livro" (Roger Chartier), capítulo acima mencionado.

Ao termo do volume encontra-se uma atrativa ferramenta para o pesquisador: tem-se, aí, um amplo painel bibliográfico, organizado de forma temática, que cobre as muitas faces dos estudos sobre o livro e a leitura; e, ainda, um "index de editores e atores do livro", em outros termos, um recenseamento "das editoras, coleções (sob seus editores respectivos, marcados entre aspas), os grupos de edição, as livrarias, os clubes de venda, os difusores, os distribuidores, os organismos e as instituições do mundo do livro" (p.327).

Pela diversidade das análises propostas, a edição de Où va le livre? é representativa da perspectiva multidisciplinar que tem guiado os estudiosos do livro e das práticas de leitura. Ela desperta o leitor para temáticas e provocações aparentemente adormecidas em estudos que marcaram os anos de 196070, tais como o de Marshall McLuhan, A galáxia de Gutenberg e o de Robert Escarpit, A revolução do livro, ambos vertidos para o português.06 Não seria menos certo afirmar que um balanço da história do livro e da edição francesa nos conduz a uma reflexão sobre o campo editorial brasileiro, que parece caminhar para a concentração de grandes grupos transnacionais, sobretudo no setor de livros didáticos, paralelamente ao desenvolvimento de micros, pequenas e médias editoras que disputam diferentes frações de um tímido mercado de consumo. Nesse espaço intricado e de forte concorrência, quais os meios de ação de editores, autores e leitores?

Où va le livre?, ao conjugar passado e presente, sem deixar de vislumbrar caminhos possíveis para o universo livreiro, propõe um desafio: a dessacralização do livro e da leitura. Destarte, é possível abordar questões aparentemente descoladas do mundo das letras, como organização empresarial, custo de produção, preço final do produto, estratégias de venda, sem, contudo, macular a imagem do livro e do intelectual? Podemos, ainda, imaginar que "a leitura, atividade individual e em grande parte solitária, [seja] hoje uma prática cultural entre outras e não mais a única e a mais valorizada" (p.18)?

Ao se deslocar, conforme salientamos anteriormente, do tradicional campo de pesquisas dos séculos XVII e XVIII, definidos por Roger Chartier e Daniel Roche como "os séculos de conquista do livro",07 os estudiosos reunidos neste volume se apóiam em uma escala de tempo mais ampla e maleável, o que nos permite avaliar, de forma sintética, as relações entre mercado e produção cultural, de um lado e, de outro, entre cultura e técnica, para utilizar um termo benjaminiano enunciado no livro. Além disso, ao propor uma síntese histórica totalmente ancorada em problemas atuais do campo editorial francês, o presente livro se distancia de edições coletivas monumentais, como a dirigida por Roger Chartier e Henri-Jean Martin nos anos de 1980,08 cuja preocupação é mapear e firmar, do ponto de vista teórico-metodológico, as pesquisas em torno do livro, do mercado editorial e das práticas de leitura realizadas na França, até então. À análise eminentemente econômica do mundo livreiro, há sempre a exigência, por parte de seus estudiosos, de respostas políticas. Daí o espírito desta edição.

Mas não nos esqueçamos, enfim, da face subjetiva, senão nostálgica, evocada por Walter Benjamin, no início do presente texto. A história dos livros tem uma relação profunda com a questão das identidades. Ela revela e sempre revelou a relação delicada dos franceses com os livros. Relação que perpassa a identificação apaixonada de leitores com editores e autores que marcaram época. Afinal de contas, não se trata apenas de verificar o acometimento de grandes corporações transnacionais no sagrado mundo literário. A questão se torna mais dolorosa por se tratar de um mercado que primou pela sua identidade. Por nomes e formas que perpassaram os limites geográficos da França e ganharam mundo. E, neste mundo, a imaginação de tantos leitores que atravessaram várias gerações.

1 Walter Benjamin, "Paris, a cidade no espelho. Declaração de amor dos poetas e artistas à 'capital do mundo'". In: Obras Escolhidas II. 5ª edição. São Paulo: Brasiliense, 1995, p.195.
2 Jean-Yves Mollier, L'argent et les lettres. Histoire du capitalisme d'édition. Paris: Fayard, 1988.
3 Robert Darnton, "Os intermediários esquecidos da literatura". In: O Beijo de Lamourette. São Paulo:Companhia das Letras, 1999, pp. 132-145.
4 Pierre Bourdieu, "Le marché des biens symboliques", In : Les règles de l'art. Genène et structure du champs littéraire. Paris: Seuil, 1998, pp. 234-290.
5 Em correspondência a Marcel Proust, escreve André Gide: "A recusa desse livro permanecerá como o erro mais grave da N.R.F. &– e (como me cabe a vergonha de ser o principal responsável por ele), um dos pesares, um dos erros mais pungentes da minha vida". Correspondência escrita em janeiro de 1914. Com efeito, o primeiro volume de Em busca do tempo perdido, intitulado No caminho de Swann, sai em 1917, por Bernard Grasset, às expensas do autor. Só mais tarde a edição seria, enfim, publicada pela N.R.F. Sobre os caminhos e descaminhos da obra de Marcel Proust, cf. Marcel Proust, Gaston Gallimard: correspondências. Introdução de Pascal Fouché. Tradução de Helena B. Couto pereira. São Paulo: Ars Poética; Edusp, 1993, pp.12-13. [Agradeço ao professor Aníbal Bragança por ter chamado a atenção sobre estes detalhes da história editorial de La Recherche, na leitura desta resenha].
6 cf. Marshall McLuhan, A galáxia de Gutenberg &– A formação do homem tipográfico. São Paulo: Nacional, 1967; Robert Escarpit, A revolução do livro. Traduzido por Maria Inês Rolim. Rio de Janeiro: FGV; INL, 1976.
7 CHARTIER, Roger ; ROCHE, Daniel. "O livro, uma mudança de perspectiva". In: Jacques Le Goff; Pierre Nora. História : novos objetos. 1a. edição. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1976, p.100.
8 Roger Chartier; Henri-Jean Martin, (dir.), Histoire de l'édition française. Paris : Promodis-Cercle de la librairie, 1983-1986, 4 vol. (reedição aumentada, Paris : Fayard, 1990-1991). A reedição destes volumes no início dos anos de 1990 elucida o grau de recepção que os estudos sobre a temática do livro têm suscitado entre pesquisadores de diferentes áreas. O fato se torna mais evidente após a edição, em 2002, do igualmente monumental Dictionnaire encyclopédique du livre. Sous la direction de Pascal Fouché ; Daniel Péchoin ; Philippe Schuver. Paris : Editions du Cercle de la Librairie, 2002.

Revista de História - USP

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