domingo, 20 de junho de 2010

Fronteiras: paisagens, personagens, identidades


Márcio Santos
Doutorando em História Social - FFLCH/USP


GUTIÉRREZ, Horacio; NAXARA, Marcia R. C. e LOPES, Maria Aparecida de S. (orgs.). Fronteiras: paisagens, personagens, identidades. Franca: UNESP; São Paulo: Olho D'Agua, 2003.

O tema da fronteira, que ocupou parte da historiografia norte-americana ao longo do século XX, não é freqüente entre os historiadores latino-americanos. A palavra fronteira ainda hoje parece ecoar o viés triunfalista, expansionista e hegemônico que lhe deu Frederick Jackson Turner1 há mais de cem anos, ainda que, no seu próprio país, o historiador norte-americano tenha sido superado por sucessivas revisões, realizadas ao longo do último século. Sem dúvida terá contribuído para esse viés, entre nós, a gestação e difusão do mito do herói bandeirante, por meio do qual toda uma linhagem de estudiosos brasileiros buscou explicar a conquista luso-americana de terras e populações indígenas do interior do espaço colonial. A palavra fronteira aparece, assim, associada a um modelo analítico que via na dilatação do território ocupado por luso-americanos a vitória da civilização sobre a barbárie, da mentalidade européia ilustrada sobre o sertão inculto, do Leste integrado ao circuito mercantil transatlântico sobre o Oeste isolado e hostil.

Sérgio Buarque de Holanda foi um dos primeiros a tentar se desvencilhar das amarras e dos equívocos impostos por essa abordagem. Caminhando em direção a uma abordagem cultural do fenômeno, o autor propôs que se pensasse a fronteira

entre paisagens, populações, hábitos, instituições, técnicas, até idiomas heterogêneos que aqui se defrontavam, ora a esbater-se para deixar lugar à formação de produtos mistos ou simbióticos, ora a afirmar-se, ao menos enquanto não a superasse a vitória final dos elementos que se tivessem revelado mais ativos, mais robustos ou melhor equipados. Nessa acepção a palavra "fronteira" já surge nos textos contemporâneos da primeira fase da colonização do Brasil e bem poderia ser utilizada aqui independentemente de quaisquer relações com o significado que adquiriu na moderna historiografia, em particular na historiografia norte-americana desde os trabalhos já clássicos de Frederick Jackson Turner.2

Autores contemporâneos, como Janaína Amado, Lúcia Lippi Oliveira, Nísia Trindade Lima e Robert Wegner têm aprofundado as reflexões sobre o tema, quer seja abordando-o diretamente, quer seja tratando-o por via indireta, no bojo de estudos sobre a dicotomia entre litoral e interior - ou entre costa e sertão, para manter a expressiva nomenclatura utilizada no período colonial -no pensamento social brasileiro.

A coletânea de textos organizada por Horacio Gutiérrez, Márcia Naxara e Maria Aparecida Lopes vem, nesse sentido, trazer contribuição decisiva para o tratamento histórico, sociológico e antropológico do problema da fronteira. As onze análises publicadas possibilitam ao leitor trafegar entre distintos aspectos do tema, que vão da teoria e da história do próprio conceito de fronteira à sua aplicação, enquanto ferramenta analítica, ao tratamento de questões historiográficas latino-americanas e caribenhas. A reunião de especialistas de diferentes nacionalidades e origens acadêmicas permitiu apresentar, numa mesma obra, estudos de espaços sociais tão diferentes entre si quanto o Pampa e a fronteira entre México e Estados Unidos, o Chile e o Nordeste brasileiro, a região platina e o Mato Grosso.

Em que pese a divisão, realizada pelos organizadores, dos textos em dois grandes blocos - Fronteiras e identidades e Personagens, paisagens e sentimentos em fronteiras -, é possível se perceberem outras clivagens no conjunto dos estudos publicados. Cabe ressaltar, de início, o estudo que abre a coletânea, seguramente um dos seus pontos mais altos, no qual a autora retraça as transformações do conceito de fronteira na historiografia norte-americana, desde a abordagem inaugural de Turner, de 1892, até a última década. Pode-se dizer que se trata do único texto da obra no qual se ensaia uma perspectiva teórica do problema da fronteira, buscando-se aproveitar a experiência da historiografia norte-americana sobre o tema para se operar uma rápida reconstituição do conceito no espaço no qual ele surgiu e se desenvolveu.

A partir do texto de Maria Aparecida Lopes é possível acompanhar os embates teóricos e ideológicos que marcaram o problema da fronteira nos Estados Unidos, o que já se pode identificar na própria proposta turneriana, uma "resposta aos intelectuais do Leste, que enfatizavam a predominância das instituições políticas inglesas sobre as estadunidenses".3 Lopes mostra como os estudos de Turner foram colocados em xeque por pelo menos duas vias de análise: (1) a dos chamados new western historians - Patricia N. Limerick, Brian W. Dippie e Richard White -, que questionaram o mito do oeste norte-americano como terra prometida e ressaltaram as experiências de indivíduos que não se beneficiaram do avanço da fronteira, rompendo com o "modelo idílico de expansão"4e (2) a dos historiadores dedicados ao que se denominou spanish borderlands, que, a partir dos trabalhos de Herbert E. Bolton, já da década de 20 do século XX, recuperaram as formas de expansão espanhola na América, introduzindo o que Lopes qualifica de "uma visão mais inclusiva da fronteira".5

Um segundo subconjunto de artigos seria composto por aqueles nos quais se analisam as chamadas regiões-fronteiras, espaços geográficos nos quais se expressam relações de contato material e simbólico entre populações ou grupos sociais diferentes e, por vezes, antagônicos. Nesse caso está o texto de Laura Muñoz, no qual a autora engenhosamente aborda as viagens entre a Europa e o Caribe para, a partir da percepção dos participantes dessas jornadas, analisar os sucessivos tipos de fronteira que se apresentavam aos sentidos europeus na chegada ao continente americano. No final da análise, Muñoz introduz a noção dos homens-fronteira, pessoas que se colocavam no limite entre dois mundos culturais, para articular uma reflexão sobre a fronteira como área de contato "viva, mutable, porosa, una zona de interacción donde se vivió un proceso sostenido de transculturación, de intercambios".6 Nesse sentido, o próprio espaço caribenho se colocaria também como fronteira, ou região-fronteira, um conjunto insular que permitiu o contato secular entre o continente americano e o oceano.

As sociedades indígenas da região-fronteira do Pampa são analisadas por Raúl Mandrini e Sara Ortelli do ponto de vista dos seus contatos materiais e culturais com a sociedade hispanocriolla. A abundância, intensidade e multiplicidade desses contatos, revelada pelos autores com base na documentação, permite-lhes negar o "prejuicio ideológico e historiográfico que insiste en ver a las sociedades indígena y colonial como aisladas y separadas". Ao contrário, concluem, pode-se falar, no caso dos contatos entre os povos pampeano-patagônicos e os colonizadores, em uma fronteira permeável, "un espacio social que se deja atravesar por hombres y mujeres, por bienes y productos, por influencias culturales e intercambios de información".7

Casey Walsh examina a economia política do algodão como atividade que definiu o desenvolvimento da região-fronteira entre o México e os Estados Unidos e, nesse processo, formou as vidas das pessoas - sujeitos fronteiriços ou homens-fronteira - que a habitam. Heloísa Jochims Reichel estuda a fronteira da região platina, mostrando que, mesmo em situações-limite, como a guerra de 1811 a 1820, uma região-fronteira pode funcionar como zona de contato e de intercâmbio entre populações.

Quatro outros textos formariam o terceiro subconjunto de artigos. Eles se relacionam à experiência da fronteira e dos homens fronteiriços em situações de produção de imaginários formadores de identidades nacionais. Leandro Mendes Rocha investiga projetos indigenistas implantados na Amazônia brasileira como expressão de interesses geopolíticos patrocinados por militares, que se articularam em função do trinômio índio-Deus-pátria. Jacy Alves de Souza aborda as figuras-limite do Jeca Tatu e de Macunaíma para explicá-los enquanto "faces de uma mesma figura nacional, de um só rosto identitário, de uma única estética nacional".8 Durval Muniz de Albuquerque Júnior trata as imagens da cultura regional no discurso tropicalista.

Márcia Naxara parte, na sua análise do mito da "conquista do oeste brasileiro", dos relatos de três viajantes, que percorreram a região dos rios Araguaia e Tocantins em diferentes períodos da segunda metade do século XIX e primeira do seguinte. A autora situa essas narrativas no contexto das representações de um Brasil desconhecido, que se quer desvendar, para se construir, a partir dos diferentes espaços regionais, a unidade nacional. O desbravamento das fronteiras ocidentais do país é, assim, um ato de construção de um lugar político, de afirmação da nacionalidade e de projeção de um futuro de coesão nacional e harmonia social.

Horacio Gutiérrez explora habilmente duas representações opostas dos mapuches, habitantes das regiões centrais do Chile: os mapuches como inventores da nação e os mapuches como emblema da barbárie. Situa, ao dividi-las, uma transição fundamental na história chilena, por meio da qual os fundadores da nação deixaram de ser representados como os índios "puros", passando a ser os mestiços, resultantes da hibridização entre índios e espanhóis. Utilizando fontes literárias e jornalísticas dos séculos XVI e XIX, o autor mostra como seu deu o processo de desconstrução da imagem dos mapuches como referência heróica de formação do povo chileno, para dar lugar à sua desqualificação como bárbaros ferozes e incultos. Para Gutiérrez, esse processo está intimamente relacionado à construção de uma unidade simbólica chilena que excluísse os mapuches do panteão das referências identitárias nacionais.

O estudo de Maria de Fátima Costa poderia figurar à parte, na tentativa de estabelecer uma segunda tipologia dos textos da obra, pois situa-se numa posição intermediária entre, por um lado, os estudos de regiões-fronteira e de seus habitantes fronteiriços e, por outro, os estudos das representações de alteridades. Utilizando imagens dos guaikurús, que passaram a habitar o Pantanal a partir do século XVII, produzidas por artistas brasileiros e europeus no final do século XVIII e início do seguinte, a autora buscou tanto estudar as representações pictóricas calcadas num ideal civilizador dos povos "selvagens", quanto pensar as relações concretamente estabelecidas entre exploradores brasileiros e povos de fronteira. O estudo de Costa constitui um exercício inteligente de desmontagem de imagens visuais, para revelar, por trás dos seus elementos estéticos, as razões político-ideológicas que informaram a sua produção.

Um esforço teórico de maior envergadura, que não esteve entre os objetivos dos organizadores da obra, teria, talvez, dado cabo de algumas das dificuldades que se põem para a análise do tema da fronteira. É nesse sentido que sugiro a seguir, tendo com base as reflexões trazidas pelos autores dos artigos, quatro eixos preliminares de articulação da problemática da fronteira:

(1) a perda do conteúdo exclusivamente geográfico do conceito, típica da abordagem turneriana, e sua transição para uma categoria que mescla elementos da geografia e da cultura. A fronteira deixa, assim, de ser entendi da simplesmente enquanto linha de avanço geográfico - ou geopolítico , para ser compreendida como um complexo de relações culturais estabelecidas num espaço dinâmico;

(2) a substituição da abordagem da fronteira enquanto conquista e controle hegemônico de territórios e populações, também marcante nos estudos de Turner, por um tratamento da fronteira como lugar de trocas materiais e simbólicas, de intercâmbios culturais. A fronteira perde a rigidez de um limite quase militar entre territórios e culturas e passa a ser compreendida como porosidade e permeabilidade cultural e simbólica;

(3) a compreensão da fronteira enquanto experiência humana, com o que o conceito se despe de certa objetividade artificializada que tinha em Turner e seus seguidores. Nesse sentido, ganham relevo central na análise os homens fronteiriços, pois é a sua atividade que faz da fronteira um lugar rico de relações intensas entre populações humanas;

(4) o destaque da fronteira - e esse é, mais uma vez, um aspecto que Turner não percebeu - como laboratório de experiências históricas. O discurso da supremacia colonizadora, saneadora da barbárie da wilderness, escondeu o fato de que, talvez mais instigante do que o estudo das regiões "do lado de cá" ou "do lado de lá" da fronteira, seja a análise da própria região fronteiriça. É nela, de fato, que se estabelecem as relações sociais dinâmicas e instáveis que tornam as regiões-fronteira e as populações que as habitam objetos singulares de pesquisa.

A coletânea organizada por Gutiérrez, Naxara e Lopes fornece elementos teóricos, historiográficos e sociológicos para o aprofundamento do debate acadêmico sobre a experiência histórica da fronteira, lançando luz sobre um tema tão importante quanto pouco freqüente na historiografia latino-americana.


1 F. J. Turner. The Frontier In American History. University of Virginia, Department of English. Charlottesville. Disponível em http://www.xroads.virginia.edu/~HYPER/ TURNER/tpic.html. Acesso em: 18 dez 2004.
2 HOLANDA, Sérgio Buarque de. Caminhos e fronteiras (1957). São Paulo: Companhia das Letras, 1994, p. 12-13.
3 LOPES, Maria Aparecida de S. Frederick Jackson Turner e o lugar da fronteira na América. In: GUTIÉRREZ, Horacio; NAXARA, Marcia R. C.; e LOPES, Maria Aparecida de S. (orgs.). Fronteiras: paisagens, personagens, identidades. Franca: UNESP; São Paulo: Olho D'Água, 2003. p. 14.
4 LOPES, Maria Aparecida de S. op. cit. p. 24.
5 LOPES, Maria Aparecida de S. op. cit. p. 24.
6 MUÑOZ, Laura. Bajo el cielo ardiente de los trópicos: las fronteras del Caribe en el siglo XIX. In: GUTIÉRREZ, Horacio; NAXARA, Marcia R. C.; e LOPES, Maria Aparecida de S. (orgs.). op. cit. p. 56.
7 MANDRINI, Raúl J. & ORTELLI, Sara. Uma frontera permeable: los indígenas pampeanos y el mundo rioplatense em el siglo XVIII. In: GUTIÉRREZ, Horacio; NAXARA, Marcia R. C.; e LOPES, Maria Aparecida de S. (orgs.). op. cit. p. 88.
8 SEIXAS, Jacy Alves de. Tênues fronteiras de memórias e esquecimentos: a imagem do brasileiro jeca macunaímico. In: GUTIÉRREZ, Horacio; NAXARA, Marcia R. C.; e LOPES, Maria Aparecida de S. (orgs.). op. cit. p. 180.

Revista de História - USP

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