segunda-feira, 27 de outubro de 2008

MIL ANOS DE FELICIDADE - UMA HISTÓRIA DO PARAÍSO

JEAN DELUMEAU

A tradição do reino milenar
08/Ago/98
Maria Das Graças Nascimento


Seriam as teorias modernas do progresso frutos laicizados da tradição milenarista? Ou, então, poderíamos crer que os revolucionários do século 20 já estavam prefigurados em Joaquim de Fiore, Müntzer ou Savonarola? Por mais estranho que isto nos possa parecer, estas são duas teses fundamentais do livro de Delumeau sobre o milenarismo. A expectativa dos milenaristas de uma felicidade terrestre coletiva teria criado, nas mentalidades do Ocidente, a possibilidade da formulação das doutrinas do progresso. Além disso, nas palavras do próprio Delumeau, "Marx, Mao e Pol Pot são incompreensíveis se não os reintroduzirmos no interior da linhagem quiliasta em sua versão exacerbada: a que insistia sobre a ruptura brutal necessária para a entrada na era de felicidade".
Mas retomemos as coisas do começo. O milenarismo se apresenta como uma concepção muito particular da história, segundo a qual, num futuro próximo, o Cristo voltará ao mundo para inaugurar uma época de felicidade na Terra, que durará mil anos, ao fim dos quais haverá o juízo final e o início do reino celeste. A doutrina se inspira sobretudo nas profecias do Antigo Testamento e no Apocalipse de São João. Esta era feliz, sem dor nem sofrimento, será precedida de um período de catástrofes. Mas, uma vez inaugurada, os homens não mais sofrerão durante todo o reino milenar. Trata-se de uma visão escatológica distinta daquela de matriz agostiniana. Com se sabe, para Agostinho, que combateu severamente o milenarismo, é fundamental manter a distinção entre a cidade terrestre e a de Deus, que os milenaristas tendem a confundir, e a volta de Cristo dará início de modo imediato ao juízo final e ao reino dos céus. Para a tradição quiliasta, o milênio é uma época situada exatamente entre o tempo da história e a eternidade.
Apesar da crítica de Agostinho, a tradição milenarista sobreviveu mais ou menos marginalizada, mas difundida por uma certa literatura profética clandestina, até que, por volta do século 11, ressurge com toda força, desta vez, como mostra Delumeau, aliada a um discurso contestatário contra a Igreja e os poderes estabelecidos, e mesmo a ações concretas, como o caso de Eudes de l'Étoile, do oeste da França, que chegou a organizar grupos armados para atacar prédios religiosos e se apresentava como o filho de Deus, salvador dos últimos dias e antecipador do milênio.
Mas a figura mais marcante do período é certamente Joaquim de Fiore, sobretudo tendo em vista a quantidade de pensadores milenaristas que nos anos e séculos seguintes reivindicavam a herança joaquimista. De Fiore julgava que a história dos homens estava dividida em três grandes épocas: a primeira, anterior à graça, a segunda, da graça, e a última, que estaria por chegar, era a época sem dor e sofrimento. Estes últimos tempos teriam uma perfeição puramente espiritual. Deste modo, o joaquimismo influenciou os movimentos de pobreza dos séculos 13 e 14, assim como organizações milenaristas de homens e mulheres leigos na Itália e a chamada contestação flagelante no século 13 na Alemanha. A marca destes movimentos é a crítica da riqueza da Igreja e da hierarquia religiosa, o apelo à pobreza e à purificação espiritual.
A partir do século 14, várias movimentações sociais foram de inspiração milenarista. Wyclif pregava contra a propriedade privada e a nobreza; Huss concebeu a idéia das cinco cidades eleitas e liderou conflitos armados; Bohn anunciava uma sociedade igualitária. Estes movimentos tiveram o seu ponto alto no início do século 16, com o que Delumeau chama de o grande episódio milenarista da época: a guerra dos camponeses alemães e a ocupação da cidade de Münster pelos anabatistas. Mesmo a noite de São Bartolomeu, na opinião de Delumeau, deve ser interpretada pela ótica da escatologia milenarista daqueles tempos.
Deste modo, vê-se que a doutrina ultrapassou fronteira nacionais e confessionais. Delumeau reconstitui os traços desta tradição, desde os primórdios do cristianismo até o início da idade moderna, com a seriedade que caracteriza todos os seus trabalhos: recurso incansável às fontes, cuidado na análise, esforço de síntese. Procura então mostrar que, a partir do século 18, ocorreu um processo de laicização da expectativa milenarista, do qual resultarão as teorias iluministas do progresso.
Em ambas as concepções, entende-se que a história se dá numa trajetória linear, ao fim da qual a humanidade encontrará a felicidade. A prova disto é que, no século 19, a perspectiva cristã se associa perfeitamente à idéia de progresso, tal como acontece com Joseph de Maistre, Lessing e Herder. Mas a tese de Delumeau vai ainda além: referindo-se ao que denomina a dimensão messiânica do socialismo, cita uma passagem famosa da marcha "Internacional Socialista" e afirma que o marxismo apenas retirou do milenarismo clássico o desfecho final previsto pelas profecias, ou seja, o juízo final.
Assim, o milenarismo é tomado como uma espécie de parâmetro de leitura que permite interpretar as principais concepções da história elaboradas no Ocidente. O autor aponta, evidentemente, diferenças entre a doutrina do milênio e as teorias do progresso e o marxismo: a primeira, de matriz cristã, afirma que ao final do tempo feliz de mil anos ocorrerá o juízo final e o início do reino dos céus pela eternidade, enquanto que os partidários do progresso da humanidade ou os socialistas ficam só com a felicidade terrestre. Além disto, o milênio, como se acreditava, ia acontecer em breve. A idéia de uma espera ou de uma preparação prolongada é estranha aos milenaristas.
Ora, assim como Delumeau se refere às doutrinas do progresso e à doutrina marxista da história como resultado de uma laicização do milenarismo cristão, creio que poderíamos nós dizer que ele, o autor, opera uma espécie de cristianização das modernas teorias da história. Pois, para além da idéia de uma felicidade terrestre futura que seria o fundo comum destas teorias, traços fundamentais as distinguem, quanto à sua própria natureza. Tanto nas teorias do progresso quanto nas concepções socialistas, estão ausentes os elementos propriamente constitutivos da concepção cristã da história.
Em outras palavras: não há, para os iluministas do progresso, nem para os marxistas, idéia de uma queda originária. Se não há queda, a construção da sociedade feliz não pode ser considerada como regeneração nem como redenção. Do mesmo modo, não há, nestas mesmas concepções, profecia em sentido estrito. A sociedade do progresso ou a sociedade comunista não são fins inexoráveis. Elas serão o resultado de uma ação precisa dos homens, seja a ação pedagógico-política dos intelectuais, no primeiro caso, seja a ação revolucionária de uma classe, no segundo, enquanto que a instauração do milênio é obra da providência divina, prevista desde o início dos tempos e portanto é algo que ocorrerá independentemente da ação humana.
Em suma, o que dá sentido à história, para o cristianismo, numa vertente milenarista ou não, é que ela é marcada por um acontecimento originário, a queda, por um outro fundamental, que é a redenção, e por um termo inalterável, o juízo final. Estes elementos, constitutivos da teologia cristã da história, são eles mesmos extra-históricos. Transportá-los para o interior das doutrinas modernas da história pode nos dar a impressão confortadora de uma continuidade na história das idéias sobre o futuro da humanidade. Mas certamente pode nos levar a deixar de prestar atenção à diferença principal entre estas vertentes, do ponto de vista mesmo da causalidade histórica: pois é constitutivamente diferente dizer que o motor da história é a providência divina e dizer que são os homens mesmos que fazem a história, mesmo que não saibam que o fazem.
Maria das Graças S. Nascimento é professora do departamento de filosofia da USP e autora de "Voltaire - A Razão Militante" (Moderna).

Folha de São Paulo

O FIM DA CIÊNCIA

JOHN HORGAN
Busca sem fim
08/Ago/98
Henrique Fleming

Em 1957, os físicos chineses Chen Ning Yang e Tsung-Dao Lee ganharam o Prêmio Nobel de Física por uma descoberta que surpreendeu o mundo científico, relatada no artigo "Indagação Sobre a Conservação da Paridade nas Interações Fracas". Curiosamente, foi o Prêmio Nobel de Física que despertou maior interesse popular até hoje, ganhando as páginas da grande imprensa, suscitando muitos debates em todos os níveis, dando aos jovens autores da descoberta uma fama duradoura. Como explicar que assunto tão especializado, na época inteligível apenas para os físicos de partículas elementares, possa ter tido tal repercussão?
Em palavras do cotidiano, o trabalho de Lee e Yang respondia a seguinte questão. Suponhamos que exista uma civilização remota, de seres semelhantes a nós e com a qual podemos nos comunicar apenas pelo rádio. Seria possível explicar a eles qual de suas mãos (supostamente duas!) é a que chamamos de mão esquerda (nada sabemos sobre a posição de seus corações etc.)? Yang e Lee mostraram que sim: bastava, por exemplo, realizar algumas experiências com neutrinos. Ou seja, o neutrino é um "padrão de mão esquerda" que pode ser usado em qualquer lugar do mundo para estabelecer uma convenção universal de canhotismo. (Tecnicamente isso significa que o universo é orientável.)
Uma vez explicada assim, a descoberta encantou o mundo. Ora, exceto pelo foro privilegiado da física das partículas elementares, não possuía qualquer aplicação prática. Tratava-se de conhecimento novo em forma pura. A enorme repercussão da descoberta de Yang e Lee ensina tanto sobre o universo quanto sobre a natureza do espírito humano.
Recentemente, o jornalista americano John Horgan publicou o livro "O Fim da Ciência", em que prediz o fim desse tipo de descoberta realizada por Yang e Lee, de teorias e leis fundamentais. Segundo ele, resta à ciência dedicar-se "apenas" à descoberta das aplicações, mais ou menos práticas, das grandes teorias já descobertas.
Quem é esse cidadão? Com base em que, e por que, se arrisca a essa previsão? Horgan foi, por alguns anos, editor científico da revista "Scientific American", que se dedica a divulgar ao público as descobertas científicas por meio de artigos escritos pelos próprios descobridores. Como os cientistas não chegaram à fama pelos seus dotes literários, a revista dispunha dos tais editores científicos que modificavam, aqui e ali, o texto original, tornando-os, na opinião da revista, mais legíveis. Para os autores (há testemunhos escritos), eles estropiavam os textos, isto sim.
A verdade está no meio, como sempre. Horgan é apresentado, em uma página da Internet, como um ilustre jornalista americano, premiado, e que já publicou mais de 400 artigos, "alguns dos quais com mais de 4.000 palavras". Trata-se de um homem educado, de boas leituras, que dirigiu seus estudos superiores, inicialmente, à crítica literária, que veio a abandonar, desiludido, quando se convenceu de que todos os textos "são 'irônicos': eles têm múltiplos significados, nenhum dos quais definitivo". Esse significado da palavra irônico retirou-o de Northrop Frye, na obra "Anatomia da Crítica" (Cultrix). Horgan identificará, mais adiante, teorias científicas irônicas e dedicará a elas toda a sua indignação.
A inspiração para a sua escatologia da ciência vem também da sua origem literária, mais precisamente de sua admiração pelo conhecido livro de Harold Bloom, "A Angústia da Influência". Nesse livro Bloom analisa o pesado que é, para um poeta, ser forçado a se medir, todo o tempo, com luminares como Shakespeare, Dante e Milton. A tentativa de superá-los acaba por paralisá-lo. A poesia se torna impossível, acaba. O mesmo ocorreria com a ciência: a mecânica quântica, a relatividade geral, o modelo padrão das partículas elementares, na física, a teoria de Darwin, a estrutura do DNA, na biologia, são, segundo Horgan, teorias e descobertas tão extraordinárias e fundamentais que, como os grandes poetas, paralisariam a marcha da ciência ou permitiriam apenas a atividade de epígonos.
Finalmente, por que, sobre base tão frágil, escreveu um livro de mais de 350 páginas? Principalmente, creio, por estar sinceramente alarmado com a sua previsão. Horgan é um divulgador e sabe que, na sua profissão, a ciência que causa impacto é a ciência como a de Yang e Lee e a de Einstein, de resultados extremamente gerais e abstratos.
Vejam o espetacular sucesso do livro de Stephen Hawking, "Uma Breve História do Tempo", em que o autor impõe, em certo ponto, regras de funcionamento ao próprio Deus. A motivação secundária está, com todas as letras, no livro, nos agradecimentos. "Sou grato ao meu agente (...) por me ajudar a transformar uma idéia amorfa numa proposta vendável." Não me oponho a que seja vendável. Dostoievski escrevia para pagar as dívidas do jogo e Paulo Francis dizia que só um louco escreve sem ser por dinheiro. Porém, e esta é a chave de minha crítica, a idéia continua amorfa.
O crescimento da ciência se dá tanto pela expansão (criação de novas teorias, mais abrangentes) quanto pelo detalhamento (exploração das consequências das teorias vigentes). Que a expansão algum dia cesse em algumas das áreas da ciência é de se esperar, por várias razões. A dificuldade de financiar essa expansão é a primeira e já afeta algumas áreas, como a física das partículas elementares. A educação dos pesquisadores é a segunda. Novas teorias (a experiência mostra) não dispensam o estudo daquelas que as precederam. Logo, há cada vez mais coisas a estudar para se chegar à fronteira onde se dá, efetivamente, a pesquisa. A alternativa, a especialização, é um paliativo, não uma solução. Levando-se ainda em consideração que a pesquisa inovadora é predominantemente feita por jovens, vê-se a magnitude do problema.
No campo da física, porém, as descobertas mais bonitas e relevantes feitas recentemente não estão ligadas à expansão, mas ao detalhamento. Por exemplo, o estudo dos sistemas que estão na região em que a física clássica começa a falhar e a física quântica começa a ser indispensável. São os sistemas mesoscópicos, e o estudo deles está levando a resultados de enorme valor prático e conceitual.
Esses, porém, não são os problemas da ciência, para Horgan. Para ele a ciência carrega inevitavelmente a semente de sua morte, e essa semente é o seu sucesso: é a teoria de Bloom transportada à ciência. Como método para comprovar a sua tese, apresenta várias entrevistas com cientistas de renome, em sua maioria (segundo Horgan) apoiando a sua tese; alguns são contrários ou mesmo veementemente contrários. Sua idéia original, diz o autor, era deixar que o leitor tomasse sua própria decisão. No fim, resolveu deixar sempre bem clara a sua posição e o conseguiu, às vezes com alguma truculência.
Nas entrevistas acontece de se perceber que o autor não está à altura do entrevistado. Isso é claro, por exemplo, na entrevista com o grande físico estatístico Kadanoff. Diz este que a tarefa mais importante da ciência é demonstrar a existência de leis naturais e que, uma vez isto feito, está feito; fazê-lo de novo não constitui progresso nessa empreitada. Horgan considera então Kadanoff como um apoiador de sua tese. No entanto, são coisas inteiramente diferentes! Em nenhum momento diz Kadanoff que não haverá a descoberta de leis mais sofisticadas e abrangentes do que as que temos hoje. Apenas que a descoberta de que a natureza obedece a leis já foi feita. E possivelmente considere que essa descoberta foi feita por Isaac Newton!
O melhor exemplo dos abusos de Horgan está na entrevista com Edward Witten, um dos líderes da física teórica contemporânea. Witten é um físico de partículas elementares e o principal motor da teoria das supercordas. Esta propõe um progresso essencial para a física da microestrutura da matéria, para lá do famoso modelo padrão (que é o que temos de melhor hoje em dia). A teoria das supercordas padece do seguinte problema: as experiências cruciais para testá-la (e distingui-la do modelo padrão) não podem ser atualmente feitas, tal o porte do equipamento necessário para realizá-las. Ou seja, não sabemos se essa estrutura matemática é física. Vou usar o nome de "pré-teoria" para ela e suas congêneres. Antes de seu primeiro teste experimental, a teoria geral da relatividade, por exemplo, era também uma pré-teoria.
O que pode atrair um físico para uma pré-teoria? No caso de Einstein havia, pelo menos, dois fatores: era uma generalização mais ou menos inevitável da relatividade restrita e resolvia o problema da igualdade entre a massa inercial e a massa gravitacional. No caso de Witten, ele mesmo explica claramente a Horgan que o que o ligou inexoravelmente à teoria das cordas foi perceber que nela a interação gravitacional era uma consequência inevitável das outras interações. Esse é um dos temas centrais da física: a busca da unificação das várias interações. E aqui a gravitação aparecia sem mesmo ter sido convidada! O difícil é explicar como um físico poderia ficar indiferente a esse pequeno milagre.
A existência de uma pré-teoria é um sinal de vida, uma objeção clara à existência de uma paralisia da capacidade criativa no domínio do abstrato. Propõe idéias novas, novos caminhos. Pesquisas de Witten prévias às supercordas, mas igualmente pré-teóricas, levaram-no a resolver problemas tão importantes na matemática, que lhe foi concedida a medalha Fields, o maior dos prêmios a que um matemático pode aspirar, até então jamais outorgada a um físico. Uma riqueza em pré-teorias não invalida diretamente a tese de Horgan, mas mostra que o pilar no qual ela assenta está rachado: não há paralisia detectável em consequência do sucesso das teorias atuais.
Compreensivelmente Horgan investe contra as pré-teorias, que ele chama de "ciência irônica". São rotuladas de física irônica a teoria das supercordas, o modelo inflacionário do universo, a cosmologia quântica. Não concede a Witten o direito de se dedicar à teoria das supercordas. Usa argumentos perigosos: ninguém conseguiu me explicar o que é, efetivamente, uma supercorda... Pode-se entender a sua fúria: deixara a crítica literária por causa da ironia; tornara-se um empirista radical. Seus inimigos são, agora, as pré-teorias.
Seu relato da entrevista com Witten pode ser resumido assim: Witten é feio (tem um queixo enorme), arrogante e, o que Horgan imagina ser um insulto, aquilo que fez na matemática é mais importante do que o que fez na física. No final da entrevista, Witten, para lhe explicar o que considera a inevitabilidade das supercordas, imagina uma outra civilização e as diferentes maneiras pelas quais poderiam chegar às supercordas. É um recurso didático comum entre físicos. Eu mesmo o usei, nesta resenha, para explicar a descoberta de Yang e Lee. Pois bem, no sumário do livro encontra-se o item: "Edward Witten fala sobre supercordas e alienígenas"!
O leitor terá notado que eu não gostei do livro. No entanto, ele tem suas virtudes: apresenta os cientistas como gente normal, com os defeitos comuns, na proporção usual, salvo talvez a vaidade. Várias histórias são deliciosas, sobretudo a do cheque de Gell-Mann.
Murray Gell-Mann é um dos monstros sagrados da física das partículas elementares. Entre outras coisas, inventou os quarks, que julgamos ser os constituintes dos prótons e dos neutrons, ou seja, da matéria que pesa. Durante mais de uma década dominou a cena nessa área da física, quase como um oráculo (que difundia suas profecias, porém, em linguagem muito clara e precisa). Tornou-se um nome popular após a publicação de seu livro de divulgação "O Quark e o Jaguar" (Rocco), que versa sobre a área da ciência denominada "complexidade" (cujo fim também está incluído no "Diktat" horganiano). Após a entrevista, Horgan o acompanha ao aeroporto e aí Gell-Mann descobre que chegará ao seu destino sem dinheiro para o táxi. Horgan dá-lhe 50 dólares em troca de um cheque. Gell-Mann se afasta, retorna sobre seus passos e lhe diz: "Pense bem antes de descontar esse cheque: minha assinatura pode vir a valer bem mais do que 50 dólares". Nesse caso creio que a narrativa seja fiel. Gell-Mann é assim mesmo.
Há muita informação no livro e uns poucos erros que só irritarão os especialistas.
Embora eu tenha me atido à física, Horgan tem o mesmo a dizer sobre todas as ciências e até sobre a filosofia da ciência. Esta é outra objeção comumente feita à sua tese: como é possível que todas as ciências tenham chegado simultaneamente ao fim, se tiveram histórias e cronologias tão diferentes? Mas a opinião final deve ser a do leitor.
O volume é bonito, a tipografia é de qualidade. Ótima lista de referências, que estende a utilidade do texto. Quanto à tese de Horgan, ninguém sabe se é verdadeira. E não é nem mesmo muito relevante, pois o progresso da ciência provém de lugares inesperados, não necessariamente da chamada "big science".


Henrique Fleming é professor do Instituto de Física da USP.

Folha de São Paulo

A metafísica de Lukács


12/Set/98
Ricardo Musse


A nova edição brasileira do livro mais conhecido e difundido de Michael Löwy -publicado na França em 1976, traduzido nas principais línguas do Ocidente e citado na bibliografia da maior parte dos comentários às obras de Georg Lukács- traz apenas uma modificação, não inteiramente secundária, um novo título. A primeira edição, vertendo (quase) literalmente o título do original francês, chamava-se "Para uma Sociologia dos Intelectuais Revolucionários" (Ed. Ciências Humanas, 1979). No prefácio à nova edição, Löwy justifica tal metamorfose com uma simples frase, nem por isso menos peremptória: "Trata-se, na verdade, de um livro sobre Lukács e não de uma sociologia dos intelectuais revolucionários".
A questão do nome não é tão bizantina assim quanto parece. A oscilação do autor acerca do que seria mais importante em seu livro revela, além de uma mudança no "espírito do tempo", os problemas de estruturação da obra. Esta se compõe de três blocos bem delimitados: um esboço de uma sociologia dos intelectuais revolucionários (na metade inicial do primeiro capítulo e na conclusão), uma breve história das idéias anticapitalistas na Alemanha e na Hungria no início do século e um acompanhamento da trajetória intelectual de Lukács entre 1909 e 1929, a partir dos seus textos mais importantes.
A descontinuidade, evidente na mera enumeração dos assuntos ali tratados, não se deve apenas à tenuidade do fio que articula as diversas partes: a suposição que o exame de um caso particular daria aval a algumas generalizações acerca das causas sociais e ideológicas da passagem dos intelectuais tradicionais às fileiras do movimento operário. A heterogeneidade entre os blocos deriva basicamente da variação do método de acordo com o assunto (em última instância, por uma adequação convencional ao gênero) em cada um dos três movimentos.
A tentativa de compreensão da conversão dos intelectuais à política revolucionária, examinada em dois momentos chave, após 1917 e em torno de 1968, como o título original indica, é feita no registro sociológico, mais precisamente como um caso particular de um possível alinhamento de setores da "pequena-burguesia" com o proletariado (em situações em que a burguesia nacional desistiu de seu papel revolucionário). A análise marxista das classes, no entanto, insere-se, desde a determinação inicial do objetivo da investigação, num diálogo com a sociologia do conhecimento de Karl Mannheim e com a versão francesa dessa disciplina, capitaneada por Lucien Goldmann. Deriva daí talvez a subordinação da explicação histórica do fenômeno à busca de generalizações sociológicas, o que acarretou um envelhecimento precoce da pesquisa (admitida, no prefácio, pelo próprio Löwy), num momento em que a compreensão da trajetória dos intelectuais (agora, no movimento inverso, aderindo à grande burguesia financeira) tornou-se um ponto decisivo para a compreensão da atualidade (e não só no Brasil).
No segundo bloco -um estudo da "intelligentsia" radical na Alemanha e na Hungria nas duas primeiras décadas desse século-, a sociologia cede lugar à história das idéias. Acompanham-se aí, em breves exposições, as críticas ao capitalismo (em geral, apenas culturais) dos membros dos círculos pelos quais passou Lukács (uma lista que quase se confunde com a enumeração dos intelectuais burgueses mais importantes da época): Ferdinand Tönnies, Theodor Storm, Max Weber, Georg Simmel, Paul Ernst, Robert Michels, Ernst Toller, Ernst Bloch (na Alemanha), Esdre Ady, Ervin Szabo e Karl Mannheim (na Hungria).
Aqui já se manifesta a preocupação de Löwy com a recorrência romântica, tema que se tornará uma das preocupações centrais da sua obra subsequente (veja, por exemplo, "Revolta e Melancolia - O Romantismo na Contramão da Modernidade", Vozes, 1995). Por romantismo, ele entende não a escola literária do século 19, mas "o grande movimento de protesto contra a civilização capitalista/industrial moderna", geralmente feito em nome de valores do passado, numa linhagem que se estende de Jean-Jacques Rousseau ao surrealismo, denunciando as "desolações da modernidade burguesa: desencantamento do mundo, mecanização, reificação, quantificação, dissolução da comunidade humana". Em "A Evolução Política de Lukács", Löwy ainda tomava a trajetória do pensador húngaro e, de certo modo, do próprio Marx como uma passagem do anticapitalismo romântico para a tradição oposta, iluminista e democrática. Posteriormente tendeu a relativizar cada vez mais (e até mesmo a inverter) esse juízo, como deixa claro em "Romantismo e Messianismo" (Perspetiva/Edusp, 1990).
Ao renomear seu livro privilegiando a descrição do itinerário de Lukács, Michael Löwy não deixa de fazer justiça à superioridade do terceiro bloco, já reconhecida aliás pela recepção internacional do livro. Trata-se de uma apresentação, bem amarrada e executada, da obra de Lukács desde "A História da Evolução do Drama Moderno" (1909) até as "Teses de Blum" (1928), passando pelos consagrados "A Alma e as Formas" (1910), "A Teoria do Romance" (1916) e "História e Consciência de Classe" (1923). Nessa parte, o modelo já não é mais a sociologia do conhecimento, nem a história das idéias, mas a tradicional exposição da trajetória intelectual de um pensador importante. O mérito do livro, aqui, reside na riqueza de informações, no domínio e no manejo de conhecimentos de diversas áreas e também na clareza, isto é, na facilidade de Löwy em destacar e explicar o que há de mais importante e decisivo em obras geralmente pouco acessíveis (para não dizer quase herméticas) ao leitor não especializado. Trata-se, em suma, de uma aplicação bem realizada dos valores próprios da visão educacional do iluminismo.
Para o leitor que busque mais que uma exposição sintética da obra do pensador húngaro, o livro, apesar de instigante, não deixa de ser decepcionante. A trajetória de Lukács é reconstituída, em grande medida, tomando por base o caminho traçado por ele próprio em uma série de esboços autobiográficos, recapitulações, revisões da sua evolução, "autocríticas", depoimentos e entrevistas. O problemático aqui não é só a ingenuidade de Löwy em se fiar numa reconstrução geralmente orientada por objetivos políticos imediatos (e feita, em larga medida, sob a pressão do stalinismo), mas principalmente a recusa do preceito materialista de que cabe antes investigar a motivação histórica do agente do que tentar compreendê-lo pela justificativa da ação (em geral, fruto de uma "ilusão").
A desconsideração pela história econômica do capitalismo e também, de certo modo, pela história das lutas de classes (num período em que o embate entre burguesia e proletariado ainda ditava os rumos da humanidade), conduziu Löwy ao paradoxo de tentar explicar a evolução política de um ativista e intelectual marxista exclusivamente pelos seus textos. Isso, além de configurar uma rendição metodológica ao idealismo (em grande medida, matriz de histórias das idéias convencionais), significa uma recaída na suposição metafísica (rejeitada por Marx, Nietzsche e Freud) que a ação e a orientação de Lukács esteve impulsionada apenas por adesões intelectuais. Essa deficiência do método de Löwy fica patente, por exemplo, na sua análise política de "História e Consciência de Classe". A tese de que se trata de um livro "leninista" ignora tanto os artigos que reivindicam explicitamente o legado de Rosa Luxemburg quanto o teor das críticas a Bernstein e a Kautsky (mas também a Engels), manifestações inequívocas de que nesse momento Lukács preferia pensar por conta própria.
Mas nem sempre Löwy se equivoca. Sua análise da trajetória de Lukács após 1929 (eis aí outra deficiência do título atual), ao deixar de lado a análise pormenorizada de textos e concentrar-se nas linhas mestras do debate político é, no mínimo, brilhante.

Ricardo Musse é professor de filosofia na Unesp.

Folha de São Paulo

TEXTOS ESCOLHIDOS - ACADÊMICOS E MODERNOS (VOL.3)

A utopia de Mário Pedrosa
12/Set/98
Carlos Zilio

Condenados? A pergunta talvez ilustre a trajetória intelectual de Mário Pedrosa, desde sua afirmação de que o Brasil é um país condenado ao moderno à sua crescente inquietação ao pronunciar a condenação da arte pelo moderno, que havia se desdobrado no que, na década de 1960, ele já denominava de pós-moderno.
A obra de Mário vem sendo objeto de um sistemático estudo realizado por Otília Arantes, que resgata com apuro e rigor a importância de uma obra cuja originalidade intelectual influiu decisivamente sobre sua época e que persiste no presente como uma das mais significativas contribuições a propósito da cultura brasileira e da arte. Daí a relevância desta iniciativa, que, além de oportuna, contém nos prefácios escritos por Otília uma reflexão precisa, capaz de situar o pensamento de Mário em toda a sua dimensão. Atualmente, está sendo lançado o terceiro volume da coleção intitulado "Acadêmicos e Modernos". Essa coleção vem se reunir aos dois livros organizados por Aracy Amaral e ao catálogo e exposições produzidas por Franklin Pedroso.
Assim como seu irmão, estudioso das passagens de Américo Vespúcio por Cabo Frio, Mário possuía um sentimento de Brasil marcado por imensidão e encantamento. Vivências acumuladas de suas peripécias da infância nordestina e da vida adulta pelo país afora, levado pela militância política, sem esquecermos o seu primeiro "exílio", quando jovem foi estudar na Suíça e onde, talvez, precocemente o sentimento de alteridade tenha se manifestado devido ao apelido de "sauvage" que recebe de seus colegas. Seu dilema e sua lucidez buscaram conjugar o encantamento por um país e uma cultura com uma visão atemporal e atopográfica que historicamente tem um nome: utopia. Mário foi sua encarnação.
Ao longo da vida, Pedrosa procura constituir uma equação original para esta proposição cultural já distante dos parâmetros mais esquemáticos do modernismo. Situado num registro universal, o fato de privilegiar o Brasil como terreno do moderno, cria uma tensão produtiva sem gerar fórmulas ou sínteses.
Navegando um tanto ao largo da crítica de arte, à qual só se dedicaria com regularidade a partir de 1946 e voltado principalmente para a militância política, Mário elabora por linhas tortas uma concepção crítica de extremo requinte intelectual. Linhas tortas? Ouso apontar. Em seu ensaio sobre a Missão Francesa, apesar da minuciosa investigação histórica, Pedrosa favorece uma visão organicista em detrimento da importância da ruptura proposta pelos franceses. Nega, com razão, a relevância atribuída pelo modernismo a Almeida Júnior, mas prefere o impressionismo tardio de Visconti, sem atentar para a modernidade de Castagneto e finalmente, só em 1954, assinala as limitações de Portinari.
Contudo, apesar destas contradições, Mário vai se habilitando a ser, por excelência, o crítico da arte moderna brasileira, e o sinal mais evidente deste processo surge na sua tese de 1949, para a Faculdade Nacional de Arquitetura, na qual analisa problemas plásticos por meio de uma ótica gestaltista (seu pioneirismo, aliás, custou-lhe o primeiro lugar). Apesar do empirismo da Gestalt, é evidente a sua importância na formação da arte abstrata e na elaboração de uma sintaxe moderna. Aí estão situados os primeiros fundamentos de Pedrosa; sua crítica, no entanto, nunca é normativa. Baseada em referências amplas, como o respeito pelo conhecimento autônomo da arte e a relação entre modernidade e transgressão social, sua leitura parte da obra de arte e propõe uma apreensão interna do processo constitutivo. Compreendendo a arte "como exercício experimental da liberdade", Mário procura dimensionar e participar dessa experiência.
A questão política é central no seu pensamento e nos envia ao debate dentro da esquerda e à sua opção pelo trotskismo. Em 1938, Mário vai para os Estados Unidos, sede da Quarta Internacional, e consegue um trabalho no Museu da Arte Moderna de Nova York. Neste mesmo ano, a "Partisan Review" publica, com o título de "Arte e Política", uma carta de Trótski contra a concepção stalinista de arte, defendendo uma arte independente e ressaltando sua capacidade subversiva e crítica.
Seria importante apontar, mesmo que genericamente, um paralelo entre a repercussão das proposições de Trótski na crítica norte-americana, particularmente em Greenberg (que publica em 1939 "Avant-Garde e Kitsch") e as concepções de Mário. Ilhado no seu formalismo, Greenberg se coloca como defensor da vanguarda e do progresso e, em nome de uma "qualidade", acaba por colocar a arte num campo neutro e ideal. Já a inspiração trotskista politiza a relação entre arte e exercício da liberdade, bases da proposta de Mário. Não se tratava apenas de uma defesa da instrumentalização ideológica da arte, mas de considerar, segundo ele, os mecanismos que atuam no capitalismo com o propósito de retirar da arte "suas aspirações libertárias" que estavam nas "origens anticapitalistas da arte moderna".
Os artistas brasileiros que mais marcaram a crítica de Pedrosa foram Volpi, Hélio Oiticica e Lygia Clark. Volpi seria o patriarca que teria apontado a possibilidade de inter-relação na arte moderna do nacional e o internacional. Como bem aponta Otília Arantes, referindo-se às posições de Mário nos anos 1950, o que se poderia definir como brasileiro seria a redescoberta de nossa natureza, mas vista "enquanto um constructo-resultado de uma mediação formal, uma experiência a um tempo afetiva e intelectual, filtrada pela organização".
Essa concepção nos permite abordar Volpi e Hélio, mas dificilmente abrangeria Lygia Clark. Neste momento, nota-se nas críticas de Mário um deslocamento que o aproxima a Husserl, movimento que era o apoio necessário para que o grupo neoconcreto se afastasse do gestaltismo em direção a um suporte teórico fenomenológico. Em 1963, Pedrosa faz uma leitura do processo da obra de Lygia Clark que impressiona pela simplicidade e lucidez com as quais acompanha as mudanças do quadro de "cavalete" para as obras relacionais, onde afirma que teria a artista alcançado uma "dimensão primordial", capaz de unir ser e consciência.
A década de 1960 assinala para Mário a evidência da condenação do moderno sob forma de pós-moderno (que identifica com uma certa banalização da arte iniciada pela pop norte-americana). De fato, suas dúvidas aparecem no final dos anos 50, quando já se percebiam sinais de transformação de Brasília -a utopia brasileira- numa espécie de bunker. No plano internacional, Mário acompanhava a tendência da arte à escatologia (lembro-me de sua perplexidade com algumas performances nas quais os artistas se mutilavam ) ou para a convergência da arte com o mercado, o que transformava a transgressão em espetáculo.
Impressiona pensar como, após uma vida de lutas, Mário Pedrosa foi capaz de rearticular seu projeto, ao buscar repotencializar o moderno por meio de novas alianças com as culturas marginalizadas e com as forças sociais emergentes. Evidentemente, ainda se faz presente sua identificação com a utopia, mas há uma inegável tentativa de realizar um projeto político com bases concretas. Seria viável? Para Mário, se o moderno havia se condenado, isso não significava deixar de perseguir uma solução diferente da proposição dominante, comprometida com a inviabilidade da arte e com a impossibilidade de transformação social.

Carlos Zilio é artista plástico.

Folha de São Paulo

O QUE É POLÍTICA? FRAGMENTOS DAS OBRAS PÓSTUMAS

Elogio da política
12/Set/98
Eliana Maria De Melo Souza


A reflexão política de Hannah Arendt já deveria ser bastante conhecida do público brasileiro, quando tomamos em consideração o bom número de traduções de sua obra que circula entre nós. Se isso é verdade, como então este novo livro da pensadora, cujo título parece antes indicar uma abordagem didática, pode contribuir para um melhor conhecimento de sua original compreensão do conflituoso estar-juntos no mundo?
Os textos inéditos da autora, que ora vêm à luz, são manuscritos inacabados. Fazem parte das notas pessoais, em grande parte datilografadas e acrescidas de frases com caneta-tinteiro, que foram depositadas postumamente na seção de documentos raros da Biblioteca do Congresso, em Washington, sob a rubrica "Arendt's Papers". Quem tem a oportunidade de consultar esse material, no local em que estão classificados, passará por certo encantamento ao penetrar de modo muito direto na maneira de trabalhar de uma grande intelectual. E certamente terá vontade de partilhar esse encantamento com outros, sendo assim fiel ao desejo de sempre compartilhar da autora.
Aliás, Elisabeth Young-Bruehl demonstra muita sensibilidade ao desígnio da autora ao intitular sua excelente biografia de Arendt "For The Love of the World". Esse pertencer ao mundo, que singulariza a comunicação direta entre vida e obra em Hannah Arendt, foi um dos motivos que também levou Ursula Ludz a compilar e comentar parte dos fragmentos da obra póstuma da pensadora e divulgá-los -a edição alemã é de 1993- sob este título que pode produzir enganos.
São textos de difícil leitura, porque conservados "numa espécie de estado bruto", como diz a compiladora alemã e que a tradução não desmente. Em contrapartida, são textos luminosos, porque se apresentam de modo a enriquecer o que há de essencial em formulações que já sondamos em outros trabalhos da pensadora. Em especial, abreviam o conhecimento do longo caminho de sua reflexão que vai de "A Condição Humana" até "A Vida do Espírito", também livro póstumo.
Os comentários e notas de Ursula Ludz, que ocupam quase metade do livro, são esclarecedores, mesmo para quem não aborda o pensamento da autora pela primeira vez. Esclarecem como os manuscritos ora editados eram parte de um projeto que fracassou e que havia sido proposto a Hannah Arendt, em 1955, pelo editor alemão Piper. Este lhe havia sugerido escrever uma "Introdução à Política". As razões desse fracasso poderiam nos levar a constatar o quanto Arendt estaria distante de uma escrita com visada didática? Talvez. De todo modo, essa observação pode servir para avaliar a maneira pela qual se lê sua obra no Brasil.
Para tanto é bom lembrar, com a comentadora alemã, que Arendt "não pretende educar, mas sim convencer, sendo consciente de que o caminho que trilha pode estar equivocado, que os julgamentos e as proposições que torna públicos podem igualmente ser refutados". Desse ponto de vista, quem quiser ler aqui uma introdução científica à política ou então um programa político para a expansão da cidadania estará bem longe do propósito arendtiano.
Tanto a objetividade da ciência política quanto a prescrição da ação adaptam-se, para ela, à vida no deserto: a desertificação do mundo significa a perda da possibilidade da convivência humana no plural, perda da possibilidade de começar juntos um novo sentido de liberdade. Por isso, o constante recurso de Arendt à pólis ateniense não pode ser interpretado como um modelo, teórico ou pragmático; é antes uma experiência única, sem volta, uma referência para se pensar a coisa política como a esfera da experiência humana da pluralidade. Acrescente-se, de passagem, que a noção de "isonomia", para ela, não é igualdade perante a lei, mas a condição igual de aparição no espaço público, que é sempre plural.
Isso dito, não se pode esquecer que também são textos que guardam certa marca do tempo em que foram escritos e revelam o percurso do pensamento de Hannah Arendt ao longo dos anos 50. Em primeiro lugar, estão presentes a possibilidade de uma terceira guerra mundial e o uso da bomba atômica, mas também a virulência do anticomunismo americano, as novidades no projeto socialista com a revolução húngara e o relatório Krutchev. Período único em que ela se preocupou com o legado de Marx, aliando-o à tradição da filosofia política.
Esse pano de fundo histórico, ora implícito ora explícito, pode dar ao livro um tom datado e assegurar munição para aqueles que preferem acentuar a contiguidade liberal de um pensamento que se apóia na prudência ou na pluralidade dos pontos de vista. A afirmação, lida à certa altura, de que "o ideal socialista de um estágio final da humanidade sem Estado, o que quer dizer, para Marx, sem política, não é de modo algum utópico, é simplesmente aterrorizador" pode levar a desconsiderar seu deliberado afastamento de qualquer concepção finalista da história.
Tanto na França quanto no Brasil, foram os homens de inserção política liberal que se empenharam em divulgar a obra de Hannah Arendt. Raymond Aron e Celso Lafer tentaram dialogar com uma das mais importantes pensadoras do século 20. Se o significado do liberalismo para a história política francesa não tem motivos para confusões ou ambiguidades -até o 1848 francês não seria nada sem a intervenção liberal emergente-, no Brasil parece sempre difícil levar a sério o liberalismo que aqui se adaptou. Aqui, quando se fala de liberalismo só se considera seu aspecto econômico, a chamada liberdade de mercado da iniciativa privada, esquecem-se dos direitos do indivíduo. Tudo se passa como se, com nossos melhores liberais ou com nossos melhores marxistas, não fosse possível conviver no mesmo espaço. Uma barricada se ergueu e círculos fechados se instalaram.
Este livro, diga-se, pode servir para se aprofundar num pensamento que está muito interessado em elogiar a política, em contribuir para que se desfaçam os preconceitos com relação à ação e à fala políticas, para se pensar a apatia e a desertificação do mundo. Aliás, o que há de "novo" neste livro de Hannah Arendt é o primoroso emprego metafórico -lembremos que, como ela já afirmou, "as metáforas constituem o pão de cada dia de todo pensamento conceitual"- da relação assimétrica entre deserto e oásis. O deserto, ou a ausência de mundo, portanto, ausência desse espaço intermediário em que vivem os homens no plural, e o oásis, esse espaço em que cada um de nós pode respirar em meio ao deserto, sem se reconciliar com o "ressecamento" do mundo, permanecem sempre intactos.
Para ela, um mundo sem política é sinônimo de vida adaptada às condições do deserto. Daí que o elogio da política como espaço da pluralidade é sem dúvida precioso nesta época em que reina o consenso, um pensamento homogêneo, uniforme e unânime.
Apreciaremos com toda justeza o pensamento de Hannah Arendt se, ao lê-la, guiarmo-nos ao que ela mesmo disse a respeito de Lessing. Este "não pretendia comunicar conhecimentos, mas estimular outras pessoas ao pensamento independente, e isso sem nenhum outro propósito senão o de suscitar um diálogo entre pensadores. O pensamento de Lessing não é um falar consigo mesmo, mas sim a antecipação de um falar com outros, eis por que ele é essencialmente polêmico".

Eliana Maria de Melo Souza é professora no departamento de sociologia da Universidade Estadual Paulista (UNESP/Araraquara).

Folha de São Paulo

TRABALHO, CULTURA E CIDADANIA: UM BALANÇO DA HISTÓRIA SOCIAL

O trabalho da memória


HELOISA DE SOUZA MARTINS
este volume reúne os textos apresentados no seminário comemorativo dos 20 anos do Arquivo Edgard Leuenroth, realizado em 1994 na Universidade de Campinas. Expressando a diversidade temática do acervo, o livro aborda as questões mais atuais e centrais dos debates sobre a esquerda brasileira, o movimento operário, industrialização e processo de trabalho, direitos humanos e cidadania, relação entre cultura e política. Como se vê, uma ampla gama de temas, tratados de forma rigorosa e sugestiva, comprovando a importância do arquivo para a pesquisa histórica e das ciências sociais.
O eixo do livro é a avaliação da produção em cada campo temático, com um balanço crítico da bibliografia, apontando os avanços ocorridos e as lacunas existentes e, o que me parece fundamental, discutindo o uso das fontes disponíveis. Esse esforço teórico e metodológico representa uma importante contribuição, especialmente porque feito com interdisciplinaridade. Os historiadores aparecem ao lado de sociólogos, antropólogos, cientistas políticos, rompendo os limites estreitos das especializações e enfatizando a pluralidade de enfoques.
Dois pontos parecem-me relevantes nas abordagens: a ênfase na pesquisa empírica e a reiterada afirmação da necessidade do pensamento crítico, da não aceitação das explicações fáceis e apressadas. Autores como Margareth Rago, Silvia Regina Petersen e Adalberto Marson alertam-nos para os riscos de modelos explicativos que ignoram as experiências particulares, as especificidades históricas no tempo e no espaço. A pesquisa empírica rigorosa é então enfatizada, especialmente com o recurso metodológico do estudo de caso. É a recomendação feita principalmente por Daniel James, visando o desenvolvimento da história do trabalho na América Latina.
Em uma outra parte do livro, que trata das relações entre cultura e política, Francisco Foot Hardman confessa sua "dificuldade em fazer apreciação de caráter analítico ou científico" sobre a história do arquivo, pois se trata, também, de sua própria história. A afirmação da dificuldade do afastamento/estranhamento, portanto, da objetividade na reconstrução histórica, leva-o a preferir o "tom confessional, evocativo", a deixar a memória falar. Essa é uma questão que perpassa vários textos sem, contudo, uma discussão mais aprofundada. Apesar da diversidade de abordagens, tem aumentado a valorização dos depoimentos pessoais para a compreensão dos acontecimentos, principalmente no campo da "nova história". Sabe-se que a memória consiste de fragmentos, que cada indivíduo lembra aquilo que pode e quer, mas o "trabalho da memória" é importante, por exemplo para o questionamento das versões oficiais da história que, ideologicamente, tanto quanto a memória, omitem e mistificam.
Mesmo reconhecendo que o relato de Hardman consiste em fragmentos da história, estranho a frase "a Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências (sic) da Universidade de São Paulo estava, naquelas alturas (início dos anos 70), inteiramente desestruturada". Essa colocação expressa a versão que justificava e dava sentido até mesmo à própria criação da Unicamp (Universidade de Campinas) e que, como se nota, foi interiorizada por todos aqueles que a ela se ligavam na época. Num texto que se propõe mais como memória do que história, isso é até compreensível e aceitável.
Mas, se retomarmos a crítica às generalizações apressadas feita por outros autores da coletânea, vemos sob uma nova ótica essa questão. Como o trabalho do cientista social é buscar entender o porquê das versões, situando-as historicamente, superando, portanto, as explicações que consagram uma versão oficial e generalizadora da história, levanto algumas questões no sentido de alargar a análise. A versão mistificadora da Unicamp como a única fonte de resistência político-cultural mais obscurece que contribui para a compreensão da história. Não se trata aqui de outra coisa senão de lembrar a necessidade de recuperar o contexto político e ideológico que cercava a vida universitária no período do regime militar. O próprio Hardman refere-se ao clima de repressão política existente na Unicamp, responsável pelas ambiguidades, ou pela "apologia das metáforas", como define Marco Antonio Guerra em seus comentários.
Assim, o mesmo discurso com que Hardman critica "uma certa historiografia oficial das esquerdas", que levou ao ocultamento do movimento operário pré-30, talvez possa ser utilizado para relativizar a taxativa afirmação sobre a Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da USP. Havia, sim, uma tentativa de desmantelamento da Faculdade desde as aposentadorias compulsórias de importantes cientistas, das prisões e perseguições de alunos e professores, do seu desmembramento em 14 unidades. Um processo iniciado em 1969 (talvez já em 1964) e que se prolongou por longos anos, apesar e contra a resistência daqueles que, assim como seus colegas da Unicamp, continuavam lutando e trabalhando. Principalmente lutando para desmascarar uma "certa história canônica", como diz Hardman, da direita e da esquerda, que procura legitimar a versão da desestruturação completa da Faculdade de Filosofia da USP.
Essa mesma preocupação com o confronto entre a versão oficial e a memória nacional aparece nos comentários de Marco Antonio Guerra. Ele destaca o interesse de "resgatar, rever, estudar e redescobrir a própria história que foi tão escamoteada, tão editada, tão cortada, tão desvirtuada por vias oficiais ou por outras interpretações" e a necessidade da "busca dos porquês, daquilo que foi, do que aconteceu". Apesar desse discurso, entretanto, Guerra não deixa de se alinhar à versão mistificadora da Unicamp. Visto que não era possível criar um espaço como o AEL na USP, "da forma como ela se encontrava", e "uma vez que a USP ficou como ficou", aquela instituição universitária surgiu como uma alternativa de reconstrução. É evidente que este é um dos aspectos envolvidos na criação da Unicamp, mas há outros que precisam ser explicitados se quisermos, efetivamente, entender a política universitária da época.
Em todas essas colocações há um conjunto de aspectos que desafiam, sem dúvida, o interesse de um bom pesquisador, aquele que valoriza a pesquisa empírica e não se contenta com afirmações apressadas. Mas fico apenas com a questão de como os fragmentos da memória só fazem sentido quando relacionados com o lugar de onde se fala. Será que podemos generalizar o que pode ser característica do espaço em que nos situamos e a partir do qual lançamos o nosso olhar para o passado e até mesmo para o presente? Creio que a resposta está dada em vários dos textos da coletânea, na medida em que afirmam buscar o sentido da história, superando as deformações das diferentes versões da história, a mistificação, a fantasia da memória.
Concluindo, tomo outro ponto importante tratado por vários autores. Trata-se do que Marcia de Paula Leite chama de "ciência com consciência", ou seja, o questionamento da neutralidade da ciência e a afirmação de que "o sujeito do conhecimento não se coloca de fora do objeto como um observador neutro". Nesse sentido, ela se aproxima da proposta de Daniel James, feita na sessão sobre o movimento operário, de uma ciência feita a partir do compromisso ético e político, da solidariedade para com os trabalhadores, que define não só a história do movimento operário que se pretende construir, como também o reconhecimento da necessidade de preservação da memória e da tradição da classe trabalhadora.
Isso não significa, entretanto, como entende Claudio Batalha, que Daniel James proponha um pesquisador militante, mas sim um pesquisador que, além do compromisso com a razão científica, não se descomprometa com os dominados e excluídos sociais. Trata-se de uma afirmação ética das mais significativas neste tempo marcado pelo individualismo e pela crença absoluta na razão e na técnica. O compromisso e a ética na pesquisa, reafirmados do primeiro ao último texto da coletânea, parecem-me perfeitamente adequados à celebração dos 20 anos do arquivo e uma justa homenagem ao seu patrono Edgard Leuenroth.


Heloisa Helena T. de Souza Martins é professora no departamento de sociologia da USP e autora de "Igreja e Movimento Operário no ABC- 1954-1975" (Hucitec).

Folha de São Paulo

Inúteis para o mundo

Vera Da Silva Telles


Essa é a condição em que vivem parcelas crescentes de trabalhadores, que não encontram um lugar estável e reconhecido na sociedade, que transitam à margem do trabalho e das formas de troca socialmente reconhecidas. São os desempregados de longa duração, jovens à procura de emprego, empregados de modo precário e intermitente, gente que se tornou não-empregável e supérflua na convergência entre o encolhimento dos empregos e as novas competências e qualificações exigidas no ciclo atual de reorganização do capitalismo mundial. Esse é o núcleo da nova questão social, segundo Robert Castel. Publicado na França em 1995, seu livro tornou-se referência obrigatória no debate contemporâneo sobre o futuro da "sociedade do trabalho" e do Estado social. A importância desse livro está numa abordagem que desloca os termos como o problema da exclusão social é usualmente percebido, pondo em foco o sentido histórico e político do desmanche dos direitos sociais que vem ocorrendo nos tempos atuais.
O cenário descrito por Castel é conhecido por qualquer leitor medianamente informado sobre os efeitos sociais perversos das mudanças em curso no mundo contemporâneo. Mas a questão que o autor nos propõe nada tem de trivial. É a condição salarial que vem sendo desestabilizada e isso exige um esforço de deciframento. O que mostra a fecundidade de uma análise estruturada a partir do trabalho, "não como relação técnica de produção, mas como um suporte privilegiado de inscrição na estrutura social". O eixo de seu empreendimento são as relações entre trabalho, redes de sociabilidade e sistemas de proteção que "cobrem" o indivíduo diante dos acasos da existência. O trabalho, portanto, é mais do que trabalho, pois em torno dele estruturaram-se redes de relações que configuram formas de sociabilidade, referências de identidade e modos de reconhecimento público.
É esse feixe de relações que define modernamente a condição salarial. Tem como suposto a mediação dos direitos e garantias sociais, mediação construída histórica e politicamente por mais de 50 anos, entre as décadas finais do século 19 e os anos do pós-guerra desse século -ao menos no exemplo francês, que é o foco da análise de Castel. É essa articulação entre trabalho, direitos e proteção social que vem sendo desfeita. E é nessa desmontagem que se configura a questão que Castel procura desvendar, ou seja, uma situação de vulnerabilidade de massa, que evoca situações que se imaginavam definitivamente superadas e que se instalam nos núcleos dinâmicos da modernidade capitalista. O que hoje se designa sob o termo de exclusão, diz Castel, corresponde a processos de "desfiliação", que desconectam indivíduos e grupos sociais das redes de sociabilidade e integração social articuladas em torno do trabalho.
Essa noção, desfiliação, é o que permite apreender a dinâmica que desestabiliza relações sociais estruturadas e que afeta a todos, aí incluindo os que estão integrados nas formas regulares e estáveis de trabalho por conta do desemprego, da invalidação de suas competências diante das novas formas de gestão do trabalho ou da precarização de suas condições de trabalho engendrada por formas diversas no que hoje se convencionou chamar flexibilização dos direitos e normas contratuais, configurando situações que mais se parecem com antigas formas de contratação, "contratos de aluguel" feitos e desfeitos conforme as circunstâncias do mercado, quando "então o status do trabalhador se diluía diante das pressões do mercado". "Flexibilização" significa na verdade uma reciclagem da utopia liberal de um mundo inteiramente ordenado pela contratualização das relações sociais, mas que no mesmo passo reativa o sentido dilemático de uma situação na qual a condição salarial, privada de proteções e garantias sociais, não só é vulnerável, mas é impossível de ser vivida. É do centro, diz Castel, de onde parte a "onda de choque que atravessa a estrutura social". E se a questão social se apresenta explicitamente nas margens da vida social, coloca em questão o conjunto da sociedade na medida em que abala o núcleo das relações sociais.
Mas é por isso também que a atual situação de vulnerabilidade social reabre a aporia fundadora de nossa modernidade. A questão social, diz Castel, "é a aporia fundamental sobre a qual uma sociedade experimenta o enigma de sua coesão e tenta conjurar o risco de sua fratura". Os modos pelos quais essa aporia se realizou no correr da história e os dispositivos mobilizados e inventados para resolvê-la, as figuras historicamente construídas da questão social, são na verdade o que permite colocar a situação atual em diálogo com a história passada, não simplesmente como seus antecedentes, mas como forma de elucidação do próprio presente. É com essa perspectiva que Castel remonta aos primórdios da aventura moderna, quando a questão social se armava em torno das figuras dos indigentes, mendicantes e dos vagabundos que povoavam a paisagem social, sob o signo do infortúnio daqueles que não encontravam lugar nas formas tradicionais de organização do trabalho, tampouco nos critérios estabelecidos de proteção. Essa história é contada para assinalar os vínculos do presente com o passado, a partir de uma mesma problematização, feixe de questões que se reformulam e se redefinem, mas que permanecem vivas ainda hoje. Mas é também contada para conferir inteligibilidade à novidade da moderna questão social, quando esta se reorganiza a partir do trabalho, instalando-se no núcleo mesmo da modernidade liberal, colocando em evidência a impotência do contrato para fundar uma ordem estável e pondo em xeque, por isso mesmo, a utopia liberal de uma sociedade bem-ordenada entre as regulações econômicas do mercado e as regulações morais por via de formas diversas de tutela e patronagem.
É essa história que fornece uma medida para avaliar a novidade que representou a montagem do Estado social por via de um conjunto de regulações não-mercantis, pelas quais se tentará um equilíbrio sempre difícil, sempre conflitivo e sempre negociado entre forças sociais em conflito, entre mercado e trabalho, entre a lógica do lucro e as exigências de solidariedade. A partir daí, a condição salarial se redefine por inteiro, na medida em que é inscrita numa ordem de direito que reconhece o trabalhador como membro de um coletivo dotado de status social para além da dimensão individual do contrato de trabalho, de tal modo que o salário deixa de ser retribuição pontual de uma tarefa, pois a ele estão indexadas garantias contra os azares da vida e as prerrogativas para uma participação ampliada na vida social. É essa história que fornece um critério para avaliar, hoje, o sentido da erosão desse conjunto de mediações construídas entre sociedade, economia e Estado -a rigor é o estatuto da condição salarial que está sendo posto em xeque por essa espécie de captura do social pelo econômico e que se expressa na adaptação dos direitos às exigências de eficácia e competitividade do mercado, adaptação que a rigor significa a sua erosão, por conta da multiplicação de situações de trabalho e de vida que escapam aos procedimentos estabelecidos de regulação pública.
A questão social não se reduz à constatação da tragédia social dos excluídos, tampouco se confunde com formas de "gestão de problemas sociais" por meio de políticas focalizadas, seletivas e localizadas e vai além do apelo a uma vaga solidariedade moral. Pois o que está em pauta nos tempos atuais é a exigência de renegociar o difícil equilíbrio entre mercado e trabalho e construir uma figura do Estado social à altura dos desafios atuais. A não ser que se aceite como inelutável que parcelas ponderáveis da população sejam colocadas fora do jogo social em nome das exigências da competitividade econômica, isso supõe, de partida, uma aposta quanto à possibilidade de se "viver em conjunto". A questão social, diz Castel, "é um desafio que interroga, põe em questão a capacidade de uma sociedade para existir como um conjunto ligado por relações de interdependência". É esse o desafio que está recolocado nos tempos atuais.

Vera da Silva Telles é professora do departamento de sociologia da USP e pesquisadora do Nedic-USP.

Folha de São Paulo

SONHOS AFRICANOS, VIVÊNCIAS LADINAS - ESCRAVOS E FORROS EM SÃO PAULO (1850-1888)

Uma visão polêmica da escravidão
12/Set/98
Hebe Maria Mattos


A série "Teses" do programa de história social da USP finalmente transforma em livro um dos textos pioneiros para a renovação da história social da escravidão no Brasil. "Sonhos Africanos, Vivências Ladinas" foi originalmente dissertação de mestrado defendida na USP, em 1989, desenvolvida ao lado de outras tantas pesquisas que, no interior dos programas de pós-graduação em história do país, começavam a virar de cabeça para baixo as abordagens históricas sobre a sociedade escravista no Brasil e, em especial, sobre o papel ali desempenhado por escravos e forros. Influenciados por E.P. Thompson, Eugene Genevose e Herbert Gutman, esses trabalhos propunham pensar os homens e mulheres que viveram a terrível experiência da escravidão, não apenas como vítimas de uma sociedade injusta, mas como agentes ativos na produção e transformação da sociedade em que viviam.
Naquele momento, muito dessa produção se fez polemizando com a chamada Escola Sociológica Paulista, que, do ponto de vista teórico, percebia a violência do sistema, bem como a coisificação legal do escravo, como geradoras de uma condição de patologia social para o conjunto dos escravizados, que os tornava social e culturalmente desestruturados. Diferenciando-se dessa orientação geral, a abordagem de Maria Cristina recusa a polarização teórica, desenvolvendo um diálogo, antes empírico e interpretativo do que conceitual, sobre o papel de escravos e forros na São Paulo oitocentista, com os vários representantes da escola paulista, especialmente com o trabalho pioneiro de Florestan Fernandes e Roger Bastide sobre as relações raciais na cidade.
Na segunda metade do século passado, São Paulo ainda era uma cidade pequena e acanhada, onde os limites entre o rural e o urbano se misturavam. Os escravos escasseavam, levados pelo tráfico interno para as zonas cafeeiras do interior. Às vésperas da abolição, em 1886, eram apenas 493 escravos, numa população de pardos e negros de 10.275 habitantes, que formavam cerca de 1/5 da população urbana total. Em meados do século, entretanto, as freguesias centrais e mais urbanizadas do município tinham suas ruas tomadas por ganhadores e ambulantes, preferencialmente escravos e forros, que faziam todo tipo de serviço. Ao longo das décadas subsequentes, enquanto escasseavam os escravos e cresciam as alforrias, escravos e livres pobres cada vez mais se confundiam nas ruas da cidade. Em torno desse núcleo urbano, uma região de transição, tomada por chácaras e casebres, levava a freguesias ainda amplamente rurais, formadas por sítios e roças de mantimentos.
Em cada um desses espaços da São Paulo oitocentista, Maria Cristina vai reconstituir as vivências de escravos e forros nas últimas décadas da escravidão, a partir da documentação judicial envolvendo escravos no município, especialmente os processos criminais. Nessa época, a criminalidade em São Paulo seguia um padrão típico de antigo regime, com predomínio dos crimes contra a pessoa (homicídios, lesões corporais) e de pequenos roubos e furtos diretamente ligados à complementação da sobrevivência. Desse modo, a leitura dos processos e dos depoimentos neles contidos possibilitou à autora a reconstituição de flagrantes do cotidiano das populações envolvidas em cada caso, permitindo deslindar as teias de relações sociais, verticais e horizontais, nas quais escravos e forros estiveram envolvidos.
Acompanhando a diferenciação social do espaço no município, Maria Cristina nos brinda com quatro capítulos primorosos sobre a especificidade das vivências de escravos e forros em cada uma das sub-regiões. O primeiro deles, capítulo três na ordem do livro, surpreende os africanos escravizados e seus descendentes imersos na cultura caipira típica das zonas rurais paulistas tradicionais. Roceiros e pequenos sitiantes que produziam para o abastecimento da cidade eram também pequenos senhores de escravos, a quem buscavam sujeitar, sem o recurso de feitores e de outros intermediários. De origem étnica incerta, sobre a qual se silencia via de regra, esses pequenos senhores repartiam seu teto com seus poucos escravos, muitas vezes trabalhando com eles lado a lado, numa convivência hierarquicamente íntima e perigosa. Seus escravos cultivavam roças próprias, participavam de mutirões aos domingos e mantinham estreitos laços familiares com escravos de outros senhores do mesmo bairro rural. Nesse cenário, os códigos culturais e os espaços de sociabilidade de livres e de escravos frequentemente se misturavam, permitindo perceber uma cultura caipira muito mais influenciada pela presença africana do que tradicionalmente se imagina, ao mesmo tempo em que diluía, neste compartilhar de espaços sociais, as manifestações mais típicas de uma cultura especificamente escrava.
No capítulo seguinte, a autora caminha para a periferia semi-urbanizada da cidade, onde o espaço sem maiores registros de identificação étnica do mundo caipira é substituído por espaços sociais etnizados, isto é, fortemente marcados por uma identidade negra ou africana. No bairro rural, mais que a cor da pele, eram as relações pessoais que determinavam quem era livre ou escravo. Na periferia semi-urbanizada, lugar de passagem e de entrada na cidade, a cor tornava-se novamente marca de suspeição. Como resposta a esse movimento, negros e africanos livres construíram ali espaços sociais próprios, em que uma cultura especificamente africana ou negra pôde se desenvolver. Esconderijo para escravos fugidos durante o longo desmanchar da sociedade escravista, os espaços negros da periferia da São Paulo oitocentista acentuavam a crescente e cada vez mais difícil diferenciação entre negros livres e escravos no espaço urbano.
Por fim, os dois últimos capítulos mergulham no dia-a-dia das ruas da São Paulo urbana, onde a visibilidade da "rapaziada" negra era desproporcionalmente maior do que sua participação efetiva na população da cidade.
Não há como terminar a leitura deste livro, sem concluir que tais sonhos e vivências foram essenciais na construção da dinâmica social da cidade de São Paulo, no século passado. Se essa conclusão hoje causa menos impacto do que já causou, o livro mantém contribuições de peso para polêmicas ainda hoje candentes nos estudos históricos sobre a escravidão. Destaco, especialmente, a proposição de que a etnização da experiência cultural da população livre formada por libertos e seus descendentes foi um processo histórico que se fez de forma diferenciada nas zonas urbanas e rurais da cidade de São Paulo, bem como os elementos novos que o livro oferece para pensar a herança africana no contexto das relações familiares e de gênero, ao analisar as comunidades de africanos livres da periferia da cidade.
O livro ainda contém um encarte iconográfico com fotos comentadas de negros escravos, forros e livres em São Paulo pela lente de Militão Augusto de Azevedo. Registros da diversidade das vivências negras na São Paulo oitocentista, desde os fotografados por Militão, para identificação criminal, àqueles que voluntária e onerosamente procuraram o fotógrafo em seu estúdio em busca da marca de respeitabilidade e de eternização trazida pelo retrato, diversidade registrada também na paisagem urbana capturada nas fotos de exteriores. Também merecedora de destaque é a reprodução, num anexo, das cartas da escrava Teodora a seu marido, a seu filho e a seu senhor, registros de seus esforços para se reencontrar com o marido de quem havia sido separada por força do tráfico interno, conseguir comprar sua alforria e voltar para a África. Em cada uma das faces fotografadas por Militão, nas cartas de Teodora, a cada novo caso narrado por Maria Cristina, os sonhos a as vivências analisados reapresentaram a busca da alforria como aspiração maior dos escravos paulistas do século passado, aspiração que perigosamente se tornava reivindicação no contexto do desmanchar da ordem escravista que caracterizou as décadas analisadas.

Hebe Maria Mattos é professora do departamento de história da Universidade Federal Fluminense (UFF).

Folha de São Paulo

CIÊNCIA E IDEOLOGIA

ALBERTO OLIVA
O tribunal dos fatos
12/Set/98


CLAUDIO VOUGA
estranha ironia. Florestan Fernandes lutou grande parte de sua vida para estabelecer um padrão científico para os estudos sociais no Brasil e, no entanto, passaria a ser conhecido por suas posições de militante político: homem de partido em vez de analista. É necessário esclarecer o equívoco, tarefa tanto mais difícil quanto se trata de mistificação deliberada. O professor de avental branco não é o militante e deputado constituinte. Como sociólogo, Florestan foi sem par, como constituinte, um entre vários. Assim como Tocqueville, Max Weber ou Eric Williams, o sociólogo, e não o político Florestan Fernandes, passará às gerações futuras e contribuirá, talvez, para moldá-las. Não é a ciência que leva à militância, e Florestan só chega a esta porque as portas da universidade lhe são fechadas pelo regime militar. Outra tivesse sido a história, outros teriam sido os caminhos do mestre, levado pelo turbilhão.
Ao contrário dos elogios dos literatos de plantão ou de homenagens póstumas, às vezes por parte de quem sempre nutriu por ele inveja e desprezo, não há melhor tributo à memória de Florestan do que um estudo sério de suas idéias, mostrando, ao lado de seu vigor intelectual e perspicácia analítica, também suas contradições, lacunas e preconceitos. É alvissareiro o fato de começar a surgir livros como o de Alberto Oliva, no qual se estuda a sua obra em profundidade, obra, como sua biografia, cheia de oscilações que apenas a linha reta da hagiografia ideológica faz desaparecer. O livro é resultado de pesquisa sobre a formação das ciências sociais no Brasil e, como diz o autor no prefácio, "Florestan ocupa o centro de nossas atenções críticas por ter, em nosso país, encarnado de forma ímpar a preocupação com a cientificidade da sociologia".
Na obra do sociólogo, sabidamente, os textos metodológicos não são o que de melhor existe. Quando escreve sobre os tupinambás, sobre as relações entre negros e brancos ou sobre a análise sociológica do subdesenvolvimento, aí temos Florestan em sua plenitude. Mas Alberto Oliva descarta explicitamente a parte substantiva da obra de Florestan para centrar sua análise nas questões epistemológicas e, como filósofo, vai justamente procurar o fundamento que embasa a sociologia do mestre: "(...) nosso principal objetivo será o de identificar a 'filosofia da ciência' subjacente à concepção de Florestan de 'sociologia científica'". Sua análise vai centrar-se especialmente em "Fundamentos Empíricos da Explicação Sociológica, Ensaios de Sociologia Geral e Aplicada" e "A Sociologia numa Era de Revolução Social" e, socorrendo-se ao mesmo tempo de Popper e dos frankfurtianos, entre outros, mostra-nos que essa filosofia subjacente é, na verdade, nada mais nada menos que o empirismo clássico.
Duas são então as tarefas a que se dedica Alberto Oliva. Por um lado, aponta as limitações dessa orientação metodológica na análise dos assim chamados fatos sociais, por outro, mostra que não se pode pretender que autores que partem de pressupostos epistemológicos tão diferentes como Durkheim, Weber e Marx possam ser classificados como defensores do empirismo indutivo. Em sua critica ao ecletismo metodológico em que Florestan se enreda , Oliva cita a obra pioneira de Octavio Ianni, "Sociologia da Sociologia Latino-Americana", que, já nos idos de 1971, chamava a atenção para o fato.
Ao ressaltar o indutivismo por vezes ingênuo de Florestan, o autor mostra como o mesmo pode ser compreendido: "Num ambiente cultural muitas vezes dominado por uma verborragia pedante (...), foi mais que oportuno o surgimento de uma postura metodológica como a de Florestan, que conclamava os discursos com pretensões científicas a enfrentarem o tribunal dos fatos". Justamente é nesse contexto que deve ser encarada a redução da sociologia ao método empírico indutivo, contra o bacharelismo e o impressionismo nem sempre tão inocente -afinal Florestan está escrevendo no Brasil de meados dos anos 50 e primeira metade dos 60. O mais incrível é que, 40 anos depois, ainda haja quem acredite estar fazendo ciência com a manipulação primária de dados empíricos que, graças à disponibilidade dos recursos da microinformática, facilmente se transformam em tabelas e gráficos que sempre permitirão dizer como o genial Gerson, autor da lei que leva o seu nome, que "uma coisa é uma coisa, outra coisa é outra coisa".
Reparos formais são necessários. O primeiro diz respeito às notas ao fim de cada capítulo -o que já é incômodo para o leitor-, as quais nem sempre se encontram no local referido. O segundo é talvez uma idiossincrasia para facilitar a consulta dos leitores, sobretudo os estudiosos, das fontes citadas. Sempre que houver uma tradução em língua portuguesa, esta deva ser priorizada, caso contrário a citação deve ser a da obra original, a não ser excepcionalmente. Não é o caso, entre outros, do livro clássico de Dahrendorf sobre as classes na sociedade contemporânea, cujo original é em inglês, traduzido pela editora da Universidade de Brasília, e que é citado por nosso autor em uma tradução italiana.
Uma palavra de elogio para a coleção "Filosofia" da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, da qual o livro de Oliva é o numero 55 dentre títulos de autores brasileiros de filosofia antiga, medieval, moderna e contemporânea, alguns conhecidos, outros menos. É pena que a divulgação da editora, como de resto a de tantas outras editoras universitárias, seja tão deficiente.

Claudio Vouga é professor do departamento de ciência política da USP.

Folha de São Paulo

FRANÇOIS TRUFFAUT - UMA BIOGRAFIA

O homem que amava o cinema
12/Set/98
Lúcia Nagib

O tão discutível método de se estudar uma obra pela biografia de seu autor ganha, no caso do cineasta François Truffaut, justificativa plena. Com relação ao cinema, campo em que a "autoria" é sempre passível de questionamento, Truffaut foi praticamente o inventor do "autor", lançando mão de um recurso que nada mais era senão biografar seus ídolos.
Quanto à sua obra cinematográfica, tudo leva a crer que Truffaut a utilizou para retratar sua vida, a começar pelo primeiro longa-metragem, "Os Incompreendidos" (1959), reconhecido como a história da infância do diretor. Truffaut tinha ainda o projeto de redigir uma autobiografia e, por isso, colecionou ao longo dos anos, com obsessiva minúcia, vasta correspondência amorosa, profissional e de amizade, recortes da imprensa, notas e até receitas médicas. Antoine de Baecque e Serge Toubiana, dois veteranos dos "Cahiers du Cinema" devassaram seus arquivos, instalados no escritório dos Films du Carrosse, a produtora ou, no dizer dos autores, "o castelo de barba-azul" de Truffaut, e compuseram a mais cuidadosa biografia que se poderia ter do cineasta, confiável pela fidelidade da informação e por princípio correta, já que autorizada pelo próprio método truffautiano do biografismo.
A chave encontrada para a originalidade -visto que a vida de Truffaut já foi amplamente divulgada- consistiu, justamente, em contrariar o método de Truffaut num ponto essencial, distinguindo o homem dos filmes. Conhecendo cada detalhe da vida cotidiana, privada e profissional do biografado, ao longo das quase 600 páginas do livro, o leitor, porém, pouco aprende de seu cinema, a não ser por trás, ou seja, pelos caminhos e descaminhos dos roteiros, pelos acertos e complicações do "casting", pelas impressões do próprio cineasta e pelas reações da crítica e de amigos. A reflexão sobre os filmes em si fica por conta do leitor, já que os autores se abstêm de julgamento.
Isso faz com que o livro possa ser lido como um romance, no qual Truffaut é muito menos um cineasta do que um herói. Trata-se da epopéia de um solitário, que venceu as adversidades da vida instituindo o cinema independente como retrato de sua própria solidão. "O Filho Secreto" chama-se o primeiro capítulo, indicando significativamente o começo da história do menino enjeitado, fruto de uma gravidez indesejada. Entregue ao nascer a uma ama, que o negligencia e quase o deixa morrer, é tomado pela avó, que no entanto morre quando ele tem dez anos. Só então é devolvido à mãe, que reluta em aceitá-lo, e o menino acaba por descobrir sozinho que o marido dela não é seu verdadeiro pai...
Desenrola-se então, com riqueza de detalhes, a história do garoto malcomportado, dado à mentira e à cleptomania, que acaba internado numa prisão de menores. O desprezo da mãe, a fragilidade do padrasto, a incógnita do pai biológico serão a eterna inquietação desse solitário, que jamais se ligou a grupos (políticos ou artísticos) e jamais conseguiu viver em paz com nenhuma de suas tantas mulheres. O que o livro habilmente alinhava, junto a essa personalidade de marginal, é o lado compulsivo do colecionador, daquele que quer sempre o múltiplo como compensação de sua exclusão.
A literatura é a primeira paixão. Desde a infância, Truffaut se cerca de livros, ao centro dos quais reina a figura não por acaso copiosa de Balzac. Também muito cedo descobre o cinema, um vício para cujo sustento tudo -até o roubo- é válido. Depois, mas ainda precocemente, vêm as mulheres, objeto de igual adoração -o que, aliás, ocorria também com os amigos.
Em todos esses campos, Truffaut desenvolvia algo como uma devoção religiosa diante da qual se encontravam, não obras, mas pessoas. O altar erguido a Balzac, em "Os Incompreendidos", não é mera invenção, mas reprodução de fato real ocorrido com o menino Truffaut que, crescido, irá compor, junto a outros críticos dos "Cahiers du Cinema", o famoso "panteão" dos autores de cinema. Truffaut tinha apenas 14 anos quando deu início a seu culto por diretores cinematográficos. Sacha Guitry, Jean Renoir, Robert Bresson, Orson Welles foram os primeiros da lista que daria origem à "política dos autores", método destinado a revolucionar a crítica de cinema nos anos 50.
Mas sofreu muito, antes que a glória de crítico e, mais tarde, de cineasta lhe tornasse a vida mais confortável. Aos 16 anos, depois de endividar o padrasto numa aventura cineclubista desastrosa, é enviado a uma casa de correção. Sai daí para ser internado num colégio de padres. Livre deste, um amor malogrado o leva ao alistamento voluntário e, a seguir, à deserção. Preso novamente, é salvo por André Bazin, o consagrado crítico fundador dos "Cahiers du Cinema", que o abrigou em sua casa, oferecendo-lhe o amor familiar que ele nunca tivera.
Bazin não era, porém, o único intelectual de prestígio de quem Truffaut se aproximara. Sua paixão pelo "homem por trás da obra" já o levara a contatar Jean Genet, escritor maldito, autor de "Diário do Ladrão", com quem Truffaut logo trava amizade e que o inicia na literatura "noire". "Meu caro François", escreve-lhe Genet após o primeiro encontro, "quando o vi entrar em meu quarto achei que estava me vendo -quase como numa alucinação- quando tinha 19 anos". Era assim que Truffaut se relacionava com seus ídolos, não pela simples fruição da obra, mas pela identificação pessoal, por amor.
E pela recusa intransigente do que considerasse falso ou que simplesmente não o agradasse. Vivendo com os Bazin, passa a escrever regularmente para os "Cahiers" aos 20 anos, ou seja, a partir de 1952. Serão dois anos calmos, em que o jovem gesta pacientemente um texto bombástico, destinado a alterar o cenário cinematográfico francês e fomentar um novo cinema na França e no mundo. No número de janeiro de 1954 dos "Cahiers", é publicado o ensaio "Uma Certa Tendência do Cinema Francês", que arrasa com o "cinema de qualidade" francês e com mitos como Claude Autant-Lara e Henri-Georges Clouzot. Paralelamente, Truffaut faz o elogio dos filmes "B" americanos (como os de Samuel Fuller e Nicholas Ray), nos quais exalta a modéstia e a rapidez de execução, comparadas ao peso dos filmes franceses de roteiristas.
Alvo de reações iradas, Truffaut, por outro lado, imediatamente arrebanha a seu redor um grupo de críticos que seria batizado de "jovens turcos": Éric Rohmer, Jacques Rivette, Jean-Luc Godard, Claude Chabrol, Charles Bitsch. Ou seja, os jovens que logo se tornariam os célebres cineastas da "nouvelle vague". Com eles, põe em prática o método -inédito até então- das entrevistas de diretores, os quais visita munido de gravadores de rolo que, na época, pesavam cerca de quatro quilos! Na mira estão Jean Renoir, Luis Buñuel, Max Ophüls, Abel Gance, Roberto Rossellini, Fritz Lang... Quase todos reagem com agradável surpresa ao assédio do jovem crítico. Ophüls se arrisca mesmo a uma profecia certeira:"Tenho a sensação de que o senhor se tornará um personagem importante na arte cinematográfica".
Essa atividade de líder, porém, não abala a qualidade primeira de independência de Truffaut. Embora ligado à nova geração de cineastas, dispostos a inovar a forma e a desconstruir a narrativa, de modo algum compartilha com eles essas idéias, o que lhe valem críticas e um áspero rompimento com Godard. Trabalhando com produtores americanos e dedicando-se a filmes narrativos, acessíveis a um público médio, Truffaut afirma no auge das revoltas de 68: "De minha parte, já escolhi, tenho idéias perfeitamente claras: quero fazer filmes normais, é esta a minha vida".
Do mesmo modo, a luta pela renovação cinematográfica não o impede de aceitar o cargo de crítico de cinema do periódico direitista "Arts", que lhe paga cinco vezes mais que os "Cahiers". Aliás, a independência política de Truffaut irá causar-lhe problemas ao longo da vida, e eis uma das questões que o livro encara de frente, focalizando os vários momentos em que, diante de questões políticas importantes, ele não toma posição. Se se destaca na campanha contra a demissão de Henri Langlois da direção da Cinemateca Francesa, é por sua ligação pessoal com ele.
Ligação pessoal: eis a tônica da vida de Truffaut. Dedicará anos à redação de seu melhor livro, "Hitchcock/Truffaut", a longa série de entrevistas com o diretor que tanto admirou e cujo gênio revelou ao mundo. Seus atores e atrizes serão igualmente casos de amor. Jean-Pierre Léaud, o menino que descobriu e transformou no herói Antoine Doinel de "Os Incompreendidos", tornou-se quase um filho adotivo e cresceu interpretando o próprio crescimento de Doinel, ao longo de outros quatro filmes de seu protetor: "Antoine e Colette" (episódio do filme "O Amor aos 20 Anos"), "Beijos Proibidos" (1968), "Domicílio Conjugal" (1970) e "O Amor em Fuga" (1979).
As atrizes foram outras ligações ardentes e tempestuosas. Tendo se casado apenas uma vez, com Madeleine Morgenstern (filha de seu primeiro produtor), que lhe deu duas filhas, manteve um rumoroso caso com Jeanne Moreau, estrela de "Jules e Jim", em 1961. Depois, com Françoise Dorléac, que morreu tragicamente num acidente de automóvel após o magnífico desempenho em "Um só Pecado" (1964). Mais tarde, a irmã desta, Cathérine Deneuve, intérprete de "A Sereia do Mississipi" (1969), será uma paixão devastadora, cujo fim levará Truffaut a meses de internamento numa clínica de repouso.
Seus últimos anos, passou com Fanny Ardant, que convidara para protagonizar "A Mulher do Lado", em 1981. Ela será a mãe de sua terceira filha e ainda a atriz de "De Repente, num Domingo", de 1983. Teria certamente participado dos futuros projetos do companheiro, trabalhador compulsivo que escrevia vários roteiros ao mesmo tempo e rodava filmes sem parar. Mas a morte por câncer cerebral, em 1984, encerrou, aos 52 anos, a carreira do homem que amava as mulheres, o cinema e, sobretudo, seus autores.

Lúcia Nagib é professora de cinema na Pontifícia Universidade Católica (SP) e na Universidade de Campinas. É autora, entre outros, de "Nascido das Cinzas - Autor e Sujeito nos Filmes de Oshima" (Edusp).

Folha de São Paulo

ENSAIO SOBRE A ORIGEM DAS LÍNGUAS

JEAN-JACQUES ROUSSEAU
A melodia dos signos
12/Set/98
Franklin De Matos

Música e linguagem sempre estiveram associadas no pensamento de J.J. Rousseau. Um bom exemplo é a "Carta sobre a Música Francesa", publicada em 1753, durante a famosa Querela dos Bufões, que dividiu Paris entre os partidários da ópera italiana e da francesa. Neste texto, cujo alvo principal é o compositor Jean-Philipe Rameau, Rousseau afirma que, se a música italiana é mais capaz de exprimir as paixões que a francesa, é porque privilegia a melodia, e não a harmonia e o contraponto. Tal diferença, aliás, se deve àquilo que distingue os próprios idiomas desses dois povos: enquanto o francês contém poucas vogais sonoras e está cheio de consoantes, articulações e sílabas mudas, o italiano é doce, sonoro, harmonioso e acentuado. (Não custa lembrar que, para os contemporâneos de Rousseau, a música é uma imitação da palavra, sendo portanto essencialmente vocal.)
No ano seguinte, o filósofo redigiu o "Discurso sobre a Desigualdade" e voltou às questões linguísticas, associando-as agora a outro tema fundamental: a sociedade. Na primeira parte do "Discurso", quando mergulha no estado de natureza, Rousseau escreve uma digressão sobre a origem e o desenvolvimento da língua, do grito da natureza aos idiomas elaborados, cuja finalidade é mostrar que a razão, a sociabilidade e a linguagem são aquisições tardias da humanidade, que há um abismo quase intransponível entre a natureza e a história. A versão primitiva desta digressão, mais extensa, acabou se tornando o "Ensaio sobre a Origem das Línguas", publicado três anos após a morte de Rousseau.
Conforme disse certa vez Jean Starobinski, se o "Discurso" insere uma história da linguagem no interior de uma história da sociedade, a perspectiva do "Ensaio" é exatamente inversa (1). Pode-se dizer que o "Discurso" vai mais fundo historicamente, remontando ao primeiro estado de natureza (o grau zero da história), quando o homem é solitário e, por isso, silencioso (segundo outra fórmula de Starobinski, não é então um animal que fala, mas "escuta" a voz da natureza). Quanto ao "Ensaio", ao tratar dos "primeiros tempos", refere-se a um momento bem posterior, quando os homens já estão associados em hordas e falam uma linguagem ditada pela necessidade física, que junta o grito da natureza, a gesticulação e a onomatopéia.
Mas, se a carência material dita nossos primeiros gestos, outra coisa nos leva às primeiras palavras. Contrariamente àqueles que afirmam que os homens inventaram a língua para expressar suas necessidades, Rousseau escreve: "Não foi a fome nem a sede mas o amor, o ódio, a piedade, a cólera que lhes arrancaram as primeiras vozes". A exemplo do "Discurso", o "Ensaio" proclama que não começamos por raciocinar, mas por sentir. Na origem da palavra estão nossas necessidades morais, nossas paixões.
Em suma, a primeira língua é dotada de vogais que saem naturalmente da garganta, de pouquíssimas articulações -apenas algumas consoantes para evitar os hiatos- e de acentos diversos que multiplicam as vogais. No princípio, língua e música se confundem: "Cantar-se-ia em lugar de falar" (é bom lembrar que o subtítulo do livro é: "Em que se Fala da Melodia e da Imitação Musical"). Com o tempo, quanto mais monótonas se tornam as vogais, mais se multiplicam as consoantes e, à medida que os acentos vão desaparecendo, as quantidades que se igualam vão sendo substituídas por combinações gramaticais e novas articulações. A língua separa-se da música, vai se tornando um instrumento claro e eficaz, mais própria a veicular idéias do que sentimentos. Ela passa a significar o objeto e deixa de exprimir o sujeito.
Para Rousseau, este progresso é na verdade uma perda, correndo paralelamente à história da degradação moral e política da humanidade. Enquanto a língua perde veemência e energia, os homens se tornam incapazes de experimentar verdadeiras paixões. Conforme notam os estudiosos, não é por acaso que o "Discurso" e o "Ensaio" desembocam no mesmo lugar, no estado da civilização em que predomina o absolutismo político.
Ao exame sistemático segue um estudo da gênese das línguas, no qual Rousseau trata dos fatores geográficos, econômicos e sociais que explicam sua diversificação, chegando assim à oposição entre as línguas do Sul e do Norte. Estas páginas permitem a passagem do tema da origem das línguas para o da imitação musical. Rousseau retoma assim suas velhas divergências com Rameau: sustenta o primado da melodia -tão essencial para a música quanto o desenho para a pintura- e o caráter bastardo da música polifônica, consequência da invasão dos bárbaros e da substituição da doçura e sonoridade das línguas meridionais pela dureza e aspereza das setentrionais.
A tradução de Fulvia Moretto vem juntar-se a outra, de Lourdes Gomes Machado, publicada na década de 50 pela Editora Globo e retomada posteriormente nos "Pensadores" da Abril. Mas o que torna especial esta nova edição é um texto inédito de Bento Prado Jr. -"A Força da Voz e a Violência das Coisas"-, que faz as vezes de introdução ao "Ensaio" e que, a exemplo dele, passou muitos anos no fundo de uma gaveta.
O texto contém o nervo do estudo que o autor consagrou a Rousseau nos anos 60 e 70 e do qual publicou, aqui e ali, alguns capítulos dispersos. Sua interpretação é nova por várias razões. Em geral, se não apontam as contradições ou descontinuidades de Rousseau, os comentadores buscam a unidade de seu pensamento partindo do "Discurso sobre as Ciências e as Artes" -aliás segundo recomendação do próprio filósofo. Para Bento, o coração da obra não está no primeiro "Discurso", e sim na teoria "retórica" da linguagem sustentada no "Ensaio", texto póstumo tido como secundário. Não tenho meios de reconstruir aqui todo o refinamento da leitura e vou me limitar a suas linhas mais gerais.
No século 18 há quem diga que as línguas têm um "gênio gramatical", voltado para a universalidade da razão e da natureza humana, e um "gênio retórico", que remete às contingências históricas e geográficas dos povos. A linguística cartesiana, quer na versão racionalista, quer empirista, privilegia o primeiro aspecto: segundo ela, a língua é um espelho da razão, as palavras são instrumentos do conhecimento e, por isso, a função primordial da linguagem é a representação.
Rousseau contesta todos os itens deste esquema tradicional e inverte os dados do problema. A chave para a explicação da linguagem não é a razão, aquisição tardia da humanidade, mas as paixões -antes de "geômetras", fomos "poetas", diz o "Ensaio". Assim, a música, e não a gramática, deve ser o paradigma da língua, cuja função primeira não é comunicar nossas idéias, mas agir sobre o coração de outrem. A exemplo da música, a linguagem não representa as coisas -imita-as. Conforme mostra Bento Prado Jr., Rousseau tem uma concepção não-figurativa da imitação: se a pintura só pode representar o visível, a música imita tanto o visível quanto o invisível, ou seja, as representações e os sentimentos que essas representações despertam.
Como se vê, voltar-se para o "gênio retórico" da língua, que aponta para a história, significa colocar em primeiro plano o tema da relação com o outro. Daí a importância que Rousseau atribui ao social a fim de explicar a própria estrutura da linguagem. Não custa insistir neste ponto: não que a linguagem seja para ele um fenômeno derivado da sociedade. É mais que isso: a linguagem é a primeira instituição social, e as demais instituições não passam de formas de linguagem. Por isso, Bento escreve: "À utopia da gramática -quer dizer, a uma concepção da linguagem que ignora todo lugar, geográfico ou histórico, norte e sul, antiguidade e modernidade, em sua vontade de universalidade-, a linguística de Rousseau opõe uma topologia que procura sobretudo as diferenças de lugar, no espaço e no tempo, mas também no interior de uma mesma sociedade".
Esse procedimento é tão decisivo no pensamento de Rousseau que estaria até mesmo ligado a uma transformação no próprio sentido da idéia de verdade. Já não tenho espaço para seguir Bento Prado em suas minuciosas análises de texto e vou logo ao resultado delas. Ao contrário do que diz o logocentrismo das Luzes, o amor da verdade não é para Rousseau um princípio espontâneo da natureza humana -é algo derivado, a "emanação" de uma vontade mais profunda. Quem comanda esta outra vontade é a justiça, e a verdade só terá valor se subordinar-se à justiça. Deste modo, não só a linguagem, mas a própria verdade se subordina "à trama da intersubjetividade".
Em outra parte, Bento já havia identificado algumas ramificações do mesmo procedimento. Na famosa "Carta a d'Alembert" (Unicamp, 1993), em que explica as razões pelas quais é contrário à introdução do teatro em Genebra, Rousseau não retoma, como pretendem as leituras tradicionais, a crítica metafísica da representação e tampouco os argumentos teológico-morais contra o teatro. Segundo Bento, este livro inquietante -que inauguraria, assim, a crítica social e política do teatro- denuncia a postura universalista (e etnocentrista) dos filósofos, que examinam o espetáculo sem passar pelo inventário de suas diferenças ao longo da história (2). Para retomar os termos acima, pode-se dizer que a "Carta" recusa uma "gramática do espetáculo", fundada na razão e na natureza humana, e nos apresenta uma "topologia dos espetáculos", voltada para a pluralidade da história.
O mesmo combate reaparece mais tarde no "Segundo Prefácio" do romance "A Nova Heloísa" (Hucitec, 1995), no qual Rousseau rejeita agora as idéias clássicas de imitação e leitor universais, e as substitui por uma visão etnológica baseada na "multiplicidade das humanidades locais". A imitação romanesca não deve dissolver o contingente no universal, mas sim "musicalizar" o quadro da natureza humana, visando-o de modo oblíquo, por meio de uma história particular (3).
O autor da "Nova Heloísa" se orienta, assim, pela teoria do "Ensaio". A esta altura, talvez se possa apreciar em parte a originalidade da leitura de Bento Prado Jr. Contrariamente a vários exegetas contemporâneos, ele aposta na existência de uma continuidade entre a "teoria" da linguagem formulada pelo filósofo e o "uso" que o escritor pretendia dela fazer. Com efeito, a teoria não se limita a denunciar a linguagem, mas afirma que ela é, segundo as palavras de Bento Prado, "o mais perigoso dos bens e o mais inocente dos jogos". Quer dizer: a linguagem tem duas faces -uma positiva, outra negativa-, que permitem a hierarquização da qualidade dos discursos e escritos. Alguns "representam" e têm como modelo a gramática, ao passo que outros "imitam", tomando a música como paradigma. Os primeiros se distinguem pelo "fausto", provocando "uma admiração fria e estéril", os outros têm "força", "elevam a alma e incendeiam o coração". É a estes que se pretende filiar a linguagem "pura e inocente" dos escritos de Jean-Jacques.
Com maestria incomparável, Bento conduz seu leitor do exame das proposições metafísicas do "Emílio" à análise de uma sutileza psicológica dos "Devaneios de um Caminhante Solitário". A unidade perseguida por ele não é, assim, apenas de ordem filosófica, compreendendo "Teoria, Política, Belas-Letras". O clássico de Starobinski citado há pouco fizera a seu modo algo parecido, mas de um ponto de vista psicanalítico-existencial -segundo seus próprios termos, tomara a obra de Rousseau como se fosse "uma ação imaginária", e fizera do comportamento de Jean-Jacques "uma ficção vivida". A perspectiva de Bento é, por assim dizer, rigorosamente interna, restringindo-se ao plano estrito da obra e recompondo, deste modo, a unidade entre filosofia e literatura em J.-J. Rousseau.
Agora é torcer para que Bento Prado Jr. vença tanto a timidez da filosofia no Brasil quanto a sua própria (4), e publique enfim estes ensaios em livro.
Notas:
1. Jean Starobinski, "Rousseau et l'Origine des Langues", in: "J.J. Rousseau - La Transparence et l'Obstacle", Paris, Gallimard, 1971, pág. 356.
2. Ver Bento Prado Jr., "Gênese e Estrutura dos Espetáculos", in: "Estudos Cebrap", nº 14, São Paulo, Brasiliense, 1975.
3. Idem. "Romance, Moral e Política no Século das Luzes", in: "Discurso", nº 17, São Paulo, Polis, 1988. Este deslocamento do lugar da universalidade acaba mexendo com a própria identidade do leitor visado por Rousseau, que já não terá o perfil universal das poéticas clássicas e será, assim, o "solitário", preservado dos males do mundo e da "opinião".
4. Ver Paulo Eduardo Arantes, "Timidez da Filosofia - Publicando um Inédito de Bento Prado Jr. 20 Anos Depois", in: "Um Departamento Francês de Ultramar", São Paulo, Paz e Terra, 1994, págs. 157ss.

Franklin de Matos é professor no departamento de filosofia da USP

Folha de São Paulo

O ESTABELECIMENTO DOS PORTUGUESES NO BRASIL

ABADE RAYNAL

O abade ilustrado e o Brasil
10/Out/98
Maria Das Graças S. Nascimento


Imenso sucesso de venda desde a sua primeira edição, em 1770, a "História Filosófica e Política das Possessões e do Comércio dos Europeus nas Duas Índias", do Abade Raynal, tinha sido pensada, de início, como um balanço da colonização européia, encomendada aliás por Choiseul, ministro do exterior, que pensava em reparar faltas cometidas na colônia, tentando, por exemplo, desenvolver a Guiana. Contudo seu destino foi inteiramente diferente. Entre o início da redação e a publicação, Choiseul tinha sido demitido, a política oficial havia mudado e a própria obra tomara um perspectiva hostil ao governo francês e às outras monarquias colonizadoras, de tal modo que Raynal resolveu publicar anonimamente as duas primeiras edições. Quando apareceu a terceira edição, o Parlamento de Paris condenou a "História" a ser queimada, e seu autor à prisão (prudentemente, Raynal já estava no estrangeiro). O documento da condenação afirma que a obra é "ímpia, blasfematória, sediciosa, tendendo a sublevar os povos contra a autoridade soberana e a derrubar os princípios fundamentais da ordem civil".
Para dar corpo ao imenso plano (que no fim resultará em vários volumes), Raynal recorre a documentos fornecidos por amigos, aos relatos de viagens que são numerosos na época e sobretudo à colaboração de alguns escritores que poderiam, na sua opinião, dar "um tom filosófico" ao texto, o que ele considerava uma fórmula infalível de sucesso. Assim se explica a participação de Diderot, que fornece várias passagens e mesmo capítulos inteiros para o livro, desde a primeira edição. Feita a várias mãos, a obra tem visões diversificadas e às vezes contraditórias. Nela associam-se mais ou menos arbitrariamente relatos sobre a situação das colônias e dos países da Europa, interrompidos constantemente para dar lugar a polêmicas em torno dos grandes temas do pensamento da época das luzes, o que transforma o conjunto num lugar de debate onde se defrontam as principais tendências do pensamento político e filosófico da segunda metade do século.
Como pano de fundo do texto, temos o relato das conquistas coloniais, seguido de um balanço comercial e político desta colonização, acompanhado de recomendações e propostas de melhorias. Ao mesmo tempo, são feitas descrições geográficas e observações sobre a vegetação e a fauna das regiões. Num segundo plano, aparecem reflexões filosóficas, morais e políticas, que fazem apelo à razão e manifestam uma posição humanitária em relação aos povos colonizados. Por último, de modo às vezes inusitado, surgem discursos políticos dirigidos a estes mesmos povos, que frequentemente terminam com apelos à rebelião.
No capítulo 12 do livro terceiro, por exemplo, após comentar a renovação dos privilégios concedidos à Companhia Inglesa das Índias, assinalando o caráter opressor do monopólio, o autor exclama: "Povos, cujos rugidos tantas vezes fizeram os senhores tremerem, o que estais esperando? Para quando estais reservando vossas tochas, e as pedras que calçam as ruas?". Num tom semelhante, no capítulo 29 do livro 12º, sobre a história da Dinamarca, o escritor parece perder a paciência com o conformismo dos povos explorados e, dirigindo-se a eles, diz: "Povos covardes! Povos estúpidos! Já que a continuidade da opressão não vos devolve a energia... então, obedecei, sem nos importunar com vossas queixas...". Passagens deste teor, muito comuns nos diversos volumes da "História", é que levaram a censura a condenar a obra e explicam a presença da obra de Raynal entre os livros apreendidos pelos poderes coloniais nas bibliotecas de participantes de rebeliões no Brasil, como mostram os estudos sobre a presença das idéias francesas nos movimentos libertários do Brasil colônia.
O livro nono da "História" de Raynal, que relata as conquistas portuguesas no Brasil, segue o esquema geral adotado por Raynal: relato da descoberta, descrição da população local, da fauna e da flora, das atividades de produção, tudo isto entremeado de reflexões morais e políticas. De vez em quando, críticas aos colonizadores, que, quando ultrapassam o Equador, "conservam, de seus princípios, apenas aquilo que puder justificar sua conduta". O europeu que chega às colônias torna-se "rastejante, quando fraco; violento quando forte; apressado em adquirir, apressado em desfrutar; e capaz de todos os crimes que o conduzam mais rapidamente a seus fins".
Por oposição a este retrato do colonizador violento, desenha-se o perfil idealizado dos povos nativos do Brasil, um pouco à moda da noção do "bom selvagem": amantes da dança e do canto, pacíficos, generosos e sobretudo livres, diz o autor, seu espírito era em tudo contrário à dominação que os europeus queriam lhes impor. Mas o que podiam povos serenos e tranquilos contra as armas da Europa? Entretanto o texto não chega a esconder um preconceito comum na época, a respeito da "indolência natural" dos índios, que nem mesmo a miscigenação com os europeus teria conseguido superar. Além disto, não deixa de ser espantoso que, após mais de dois séculos de colonização portuguesa, Raynal tenha dedicado tão pouco espaço à questão da escravidão negra e que as poucas passagens nas quais é questão o trabalho escravo sejam marcadas por uma ingenuidade suspeita: segundo o autor, os escravos no Brasil podiam facilmente comprar a sua liberdade, que podia ser até exigida do senhor quando havia maus tratos, o que explicaria o fato de que "quase não há negros fugitivos neste vasto país".
Ingenuidades ou preconceitos à parte, o texto de Raynal manifesta de qualquer modo a ideologia humanitária e anticolonialista que já estava presente em outros pensadores das luzes, tais como Montesquieu e Voltaire, que também protestaram contra as práticas dos colonizadores. Contudo sua crítica não chega a contestar o direito de colonização. As razões são compreensíveis: de um lado, comerciantes e armadores falavam mais alto que filósofos e escritores inspirados em sentimentos humanitários. De outro, a própria ideologia das luzes, que valorizava o progresso da razão, das ciências e das técnicas, contribuía para que se pensasse que a Europa poderia levar aos nativos da América um bem, a civilização. O problema é que, ao invés de homens imbuídos destes valores, ela enviou, como diz Raynal, sobretudo no caso de Portugal, "alguns proscritos sem costumes". Por isso, nas palavras do autor, "o Brasil, esta grande colônia, (...) não foi jamais o que deveria ser. Os nobres que, nessa época, lá obtiveram províncias, fizeram delas um teatro de massacres e destruições". O ideal teria sido "nada de armas, nada de soldados; muitas jovens para os homens, muitos jovens para as mulheres", mas os portugueses entregaram-se exatamente às inclinações contrárias. O mal, portanto, não foi a colonização enquanto tal, mas o colonizador rapace e violento.
Estas limitações da "História" (que na verdade só são limitações aos nossos olhos de hoje) não impediram contudo que Diderot, que havia participado ativamente de sua elaboração, a considerasse uma obra capaz de fazer com que os tiranos dos povos se tornassem pelo menos mais detestados e que, assim, os povos, por sua vez, se tornassem menos pacientes em relação à sua própria submissão aos poderes despóticos.

Maria das Graças Nascimento é professora no departamento de filosofia da USP.

Folha de São Paulo