quinta-feira, 24 de junho de 2010

A técnica e os riscos da modernidade

Paulo Coutinho
Economista, mestre em Ciência Ambiental (PROCAM-USP), doutorando em Ciências Sociais - Unicamp

A técnica e os riscos da modernidade
Franz Josef Brüseke.
Florianópolis, Ed. UFSC, 2001.

Risco ou perigo? Franz Josef Brüseke, no livro "A Técnica e os Riscos da Modernidade", constrói seus argumentos em torno dos dois termos. E não são equivalentes: o risco traz a possibilidade do cálculo, da antecipação aos seus estragos e está inscrito, disciplinarmente, no campo da Sociologia; já do perigo, derivado da sociedade moderna e de sua afinidade com o cálculo e a técnica, ocupa-se com mais propriedade a filosofia. Em posições centrais nessa discussão, Ulrich Beck, em A Sociedade de Risco, que trata da modernização reflexiva - "A modernização não entrou no seu próprio Pós mas voltou-se contra si mesma." - (p. 36), e Martin Heidegger, com sua crítica ao perigo que ronda a sociedade dominada pela técnica, momento em que "Nós não refletimos que, com os meios da técnica, está-se preparando um ataque à vida e à essência do homem que, comparado com a explosão da bomba de hidrogênio, significa pouco." (p. 66)

O livro de Franz Brüseke não está limitado a discutir esses dois autores, mas seu desenvolvimento pode ser resumido na oposição que ali encontra. Boa parte do último capítulo, por exemplo, discute o conceito de sagrado como foi apresentado por Rudolf Otto, mas pode ser visto como um prolongamento da apreciação da obra de Heidegger. Assim também Anthony Giddens e sua noção de desencaixe, separação de espaço e tempo na modernidade, "... precondição da dinâmica extrema da modernidade..." (p. 20) está presente, mas de certa forma subsidiário no conflito explorado pelo livro. Que conflito?

Risco ou perigo? Apesar do risco estar no título, é do perigo que o autor procura dar conta. E aqui está presente, de saída, uma discussão que atravessa muitos debates em torno da questão da sustentabilidade. Entre catastrofistas e otimistas, para nomear os pólos extremos que geralmente são assim nomeados pelos adversários. Para os primeiros, a dinâmica da sociedade moderna traz necessariamente a destruição da própria vida na Terra; resta-nos a denúncia, ainda que intimamente duvidemos de seus resultados. Para os otimistas a tudo dá-se um jeito: não há problema colocado pela humanidade que ela mesma não consiga resolver. São posições um tanto idealizadas essas e, por isso, limitadas. Mas servem aqui para elaborar uma preocupação presente no livro de Franz Brüseke. As críticas de Heidegger à sociedade da técnica muitas vezes é apontada como niilista, assim como as iniciativas de controle do poder da técnica, por vezes destruidor, através de instituições oficiais são não raro tomadas por demasiadamente otimistas, ou mesmo ingênuas. O autor rejeita para seu livro os adjetivos de apocalíptico, pessimista ou realista, deixando para o leitor a última versão. (p.10)

A análise do risco é demandada por uma sociedade que perdeu a confiança, ou fé, no progresso e na sua evolução necessária; neste mundo marcado pela contingência, as coisas são o que são mas poderiam ser diferentes. Abre-se a possibilidade de uma renovação da liberdade, perdida na sociedade progressista e industrial do século XIX, aceita como necessária. Mas, embutida na avaliação dos riscos da sociedade atual está a possibilidade de sua superação, pelo cálculo. Cálculo presente na modernização reflexiva, quando os ambientalistas podem discutir com os Estados e as grandes corporações mesmo, e às vezes principalmente, no campo da técnica e da ciência. Franz Brüseke rejeita a análise exclusivamente sociológica do risco. "A confusão entre os aspectos ontológicos e sociológicos do risco, ou melhor, a ausência completa de uma reflexão ontológica de Beck tem um efeito desastroso. Em vez de assumir o inevitável - que é a simples ocorrência de que a vida individual, per si, é um percurso finito sob a estrela do risco -, projeta o temível na sociedade." (p.39)

Sociologia territorializada, a obra de Beck vem da análise da Alemanha dos anos 80 e pode estender-se a países em situação semelhante que vivem no Estado do bem-estar social. Para Franz Brüseke, "... uma teoria adequada da sociedade moderna contemporânea tem que se abrir além do horizonte das regiões racionalizadas e suas auto-explicações racionalizantes." (p.52)

Para escapar da racionalização, o percurso tentado vai pelas trilhas da filosofia de Martin Heidegger. Aqui está o perigo, também de fazer uma síntese que descaracterize tanto o esforço de Franz Brüseke quanto do polêmico filósofo, para muitos crítico maior da sociedade dominada pela técnica, pelo poder encarnado na técnica e em sua falta de objetivo (niilista, portanto). Melhor aqui não reproduzir, em resumo, a argumentação. Vale mais arriscar uma síntese: a sociedade moderna, através da técnica, desoculta as coisas (os entes, nos termos de Heidegger), assim como a mineração desoculta o minério de ferro para a produção do aço, de uma maneira em que o Ser (ou o Divino) permanece inatingível à humanidade, que passa a ver as coisas, produtos da técnica, como a única realidade. Perdem-se assim os "rastros dos deuses" e, portanto, a possibilidade de um pertencimento que transcenda as limitações do mundo dominado pela técnica, mundo trazido à existência, para Heidegger, no fim do século XVII pelo pensamento de Leibniz que, em 1671, formula o princípio do fundamento: nada é sem razão. Naquele momento, após uma incubação de 2.300 anos na filosofia ocidental, o princípio do fundamento torna as coisas (entes) manipuláveis pela ciência e pela técnica. E isto é uma subtração, quando perde-se o essencial; aqui Heidegger encontra eco em críticos da sociedade industrial, ainda que involuntariamente, como nos representantes da Escola de Frankfurt. O que fazer? Se está rejeitada, como suficiente, uma ação "por dentro" da modernidade reflexiva, ou seja, uma denúncia dos riscos globais em "termos técnicos", voltamos então ao fundamento. Não ao de Leibniz, mas o que ele ocultou.

Franz Brüseke segue Heidegger no retorno ao sagrado. Não a uma religião determinada nem a uma perspectiva necessariamente teológica, mas como uma via imposta ao enfrentarmos o niilismo e sua expressão: a sociedade dominada pela técnica. Apesar de ausentes no texto, é caminho semelhante tomado por representantes da Ecologia Profunda (Arne Naess à frente) e alguns pensadores e ambientalistas próximos dessa perspectiva como, por exemplo, Fritjof Capra e Gary Snyder.

Para Heidegger, nosso tempo viu a deserção dos deuses, que não deixaram vestígios, e ficamos sem mesmo sentir a nossa ausência de fundamento. "Estando sem fundamento, o nosso tempo fica pendurado sobre o abismo, sobre o sem-fundamento (Abgrund). Uma mudança, uma virada radical, só pode acontecer quando este abismo for percebido e vivido." (p.186) Contra a razão calculadora, resta-nos alguns poetas, que ainda procuram "... cantar os vestígios dos deuses afugentados." (p. 187) E "...Onde os rastros [dos deuses] se perdem está à espera o perigo." (p. 187)

Ao tomar por referência a obra de Rudolf Otto, posteriormente, Franz Brüseke apresenta a idéia do Numinoso, algo como a essência, ainda que um conceito composto, da experiência do sagrado. O Numinoso, momento irracional do sagrado por ser inalcançável pela reflexão científica, tem suas imensas energias liberadas pelo mundo da técnica, onde nada é sem razão. Em "...suas formas cruas e irracionais [o Numinoso] torna-se um tema exatamente no momento em que a técnica moderna consegue libertar, com meios racionais, energias capazes de reduzir a complexidade da vida às suas cinzas radioativas." (p. 206) Para nós, hoje, o retorno ao sagrado é uma exigência para o fundamento de uma "ética forte". Uma ética fundada no discurso é "fraca" e não dá conta dos estilhaços do sagrado, decomposto na sociedade moderna. (p. 205)

Franz Brüseke enfrenta o perigo. Chama nossa atenção para algo "além da técnica", da necessidade mesmo de fugirmos ao controle do discurso, inclusive por vezes o ambientalista, que muitas vezes está acuado em uma posição reativa, também e principalmente quando aceita, a princípio, a validade exclusiva dos argumentos técnicos. E isto não é são. Até porque, lembramos aqui, neste ano de 2001, o presidente dos Estados Unidos repudia os termos do Protocolo de Quioto, acordo que procura controlar o aquecimento do planeta, alegando não ser iniciativa suficientemente alicerçada em pesquisa científica. Claro que vale colocar todos os argumentos possíveis, técnicos e científicos inclusive, na resposta ao presidente originário do Texas, sede de importantes empresas petrolíferas. Mas, seria só isso? O embate no campo da técnica e da ciência? Outros pertencimentos são chamados, e aqui está o valor maior do livro de Franz Brüseke, ao convidar-nos a uma outra perspectiva.

Fica, no entanto, uma pergunta incômoda, e não só ao autor. Não estamos nós tão acostumados a respostas "no domínio do cálculo" que restamos mudos, ou quase isto, quando devemos pensar um "outro modelo de desenvolvimento" que não escamoteie para um cômodo "direito de liberdade religiosa" a questão do sagrado? Como pode ser realizada a vivência de um pertencimento para-além da história ou, ao menos, dos valores da sociedade moderna? E como isto pode inscrever-se na prática ambientalista, já que teria que ser necessariamente uma expressão que superaria as possibilidades do discurso, da linguagem? A expressão "... o debate e a prática de um desenvolvimento sustentável que busca soluções economicamente eficazes, socialmente equilibradas e ecologicamente prudentes." (p. 171) não revela uma postura herdada da sociedade da técnica e do cálculo? Se a resposta é sim, o que fazer?

O livro, composto por três capítulos (de cinco) antes publicados como artigos, tem uma evolução não truncada. Uma padronização na citação bibliográfica poderia ajudar os leitores a saber o ano da primeira edição e a página citada das obras referidas e, algumas vezes, também da existência de traduções disponíveis em português. De Mircea Eliade, por exemplo, O Sagrado e o Profano (p. 215) foi e traduzido. Ainda na bibliografia, algumas obras comentadas não estão relacionadas, como a da nota 49, página 170. As dificuldades na tradução e interpretação de Heidegger não precisariam ser aumentadas com o formato de apresentação e discussão do texto do filósofo tal como acontece nas páginas 74 e 75. A nota de número 50, página 105, o comentário sobre a relação de Heidegger com o nazismo ser mais "um escândalo francês do que um escândalo alemão" pede uma referência, ausente, ao professor Zelkjo Loparic, que dedicou o livro Heidegger Réu - Um Ensaio sobre a Periculosidade da Filosofia (Campinas: Papirus, 1990) em parte a essa questão, opondo-se ao seu ex-colega, Victor Farias, com quem frequentou curso oferecido pelo filósofo alemão. Por fim: a orelha humana nas costas de um rato, foto que correu o mundo, foi criada com genes humanos ou era uma orelha "normal" que, decepada, foi ali costurada para não perder sua irrigação sangüínea e assim manter condições de posterior reimplante? (p. 66)

Revista Ambiente e Sociedade

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