segunda-feira, 8 de junho de 2009

Convite à Filosofia


Para que serve a filosofia?
Maria Das Graças De Souza Nascimento

Convite à Filosofia
Marilena Chauí.
Ática 440 págs.

Concebido originalmente como um livro para estudantes de segundo grau, o Convite à Filosofia, de Marilena Chauí, recentemente publicado pela Editora Ática, é muito mais do que um simples texto didático. É uma introdução ao universo filosófico que deverá interessar a todos aqueles leitores que tenham o gosto pelo exercício do pensamento.
São várias as dificuldades que devem ser enfrentadas pelo autor de uma introdução à filosofia. Uma delas diz respeito à exigência de manter a clareza e a simplicidade, sem contudo abandonar o rigor. Neste aspecto, o livro de Marilena Chauí é notável. Sem recorrer a procedimentos facilitadores, trata questões por natureza difíceis de modo claro e perfeitamente compreensível para um leitor não iniciado, mantendo sempre a exatidão exigida pela linguagem filosófica.
Costuma acontecer que os autores deste gênero de livros, temendo que a aridez dos conceitos afaste o leitor, cedam à tentação de resvalar para temas que lhes pareçam mais atraentes, e acabem introduzindo no texto questões não filosóficas. O Convite à Filosofia, distanciando-se desta tendência, permanece estritamente no campo filosófico, e trata dos temas mais árduos, sem se furtar a apresentá-los ao leitor iniciante.
Tendo optado por uma organização temática, não perde de vista a história da filosofia. Abrangente e bem ordenada, a divisão dos temas estabelece a contextualização dos problemas, de tal modo que se possa acompanhar as suas retomadas no decorrer da tradição, assim como as transformações que possam ter ocorrido tanto na maneira de formular as questões quanto na natureza de suas respostas, segundo os diversos autores e as diversas épocas.
Émile Brehier, na introdução de sua clássica História da Filosofia, considera que aquele que quiser empreeender um estudo histórico da filosofia deve antes tomar posição a respeito de três questões fundamentais. Em primeiro lugar, é preciso enfrentar a questão das origens da filosofia e de suas fronteiras. Em seguida, trata-se de estabelecer se a filosofia tem ou não um desenvolvimento autônomo em relação a outras disciplinas, como as ciências, as artes ou a literatura. Por último, o historiador da filosofia deve mostrar se há ou não na filosofia uma evolução regular, ou se as soluções dos problemas colocados já foram dadas definitivamente pela tradição. O Convite à filosofia, embora não se apresente sob a forma de uma história da filosofia, mas de uma introdução temática a questões filosóficas, parece ter resolvido estas questões de forma extremamente feliz.
A análise da natureza do saber filosófico, no capítulo inicial, chega a resultados importantes tanto para a iniciação filosófica propriamente dita quanto para o conhecimento de nossa cultura. Ao estabelecer o legado da filosofia grega para o ocidente em geral, a autora assinala uma distinção fundamental entre a filosofia e as chamadas sabedorias orientais. Estas, embora constituam um saber a respeito do mundo e dos homens, não podem ser consideradas como filosofias. O saber filosófico, como mostra Marilena Chauí, não é apenas um modo de pensar inaugurado pelos gregos da Antiguidade, mas uma "aspiração ao conhecimento racional, lógico e sistemático da realidade natural e humana", que enquanto tal marcou definitivamente nossas próprias formas de apreender o mundo e as ações dos homens, independentemente de possuirmos ou não informação sobre o conteúdo dos sistemas filosóficos.
Acreditamos, por exemplo, que a natureza obedece a leis regulares, que nosso próprio pensamento também obedece a certas regras lógicas, e que tanto as leis naturais quanto as leis do pensamento podem ser conhecidas. Aceitamos que as ações humanas são resultado de nossas decisões e costumam ser realizadas a partir de certos valores. Enfim, concordamos que o mundo e a realidade dos homens não são governados por poderes desconhecidos, mas, ao contrário, são compreensíveis para qualquer um que se proponha a buscar a verdade. Fazemos isto porque somos herdeiros de um modo específico de pensar que é o da filosofia cuja origem é grega. Ao desvendarmos as características da filosofia, acabamos descobrindo a natureza de nossas próprias formas de pensar atuais.
Em relação à autonomia do saber filosófico diante dos outros domínios do saber, Marilena Chauí mostra não apenas que por sua natureza a indagação filosófica se distingue das questões a que se propõem a literatura, as ciências e a teologia, como também assinala que estes mesmos saberes não filosóficos se tornam objeto de investigação do filósofo. Assim , por exemplo, a arte se torna objeto da estética, disciplina filosófica que investiga a natureza da obra de arte e o conceito de beleza artística. A própria ciência tem seus fundamentos investigados pela filosofia da ciência, assim como ocorre com a teologia e a ciência política.
No que diz respeito à justaposição dos sistemas filosóficos elaborados pela tradição, o livro não deixa de apresentar a sua diversidade e mesmo a impermeabilidade de uns em relação aos outros, mas ao mesmo tempo procura assinalar a contribuição específica destes sistemas para a cultura. Na visão da autora, o "conflito das filosofias" não é razão para nos levar ao ceticismo. Ao contrário, a tradição filosófica é, tal como se apresenta no livro, um patrimônio cultural de cujo reconhecimento depende a compreensão de nosso mundo contemporâneo, dos impasses com os quais ele se defronta e da descoberta de soluções satisfatórias para estes impasses.
Mas não é apenas na perspectiva geral de herança cultural que a filosofia nos remete à nossa própria cultura. Os instrumentos oferecidos pela reflexão filosófica possibilitam a problematização das experiências da vida cotidiana, criando condições para a sua melhor compreensão. É assim que, por exemplo, o estudo do problema filosófico da verdade, além de nos colocar em contato com as diversas doutrinas desenvolvidas pela tradição, nos leva a refletir sobre certos aspectos de nossas sociedades contemporâneas. Tomemos, por exemplo, o fenômeno da propaganda pelos meios de comunicação de massa. A filosofia nos ensina que uma das exigências que constituem o campo da busca do verdadeiro consiste em compreender as causas da diferença entre o ser e o parecer. Assim, ela nos permite tomar distâncias em relação a estes meios de persuasão coletiva e assumir diante deles a atitude crítica que nos põe a salvo do domínio desta técnica contemporânea, que como sabemos, não se limita a oferecer produtos de consumo, mas também idéias, concepções políticas e morais e mesmo religiosas. Do mesmo modo, é a distinção entre o ser e o parecer que nos permite desvendar, por trás da pretensa verdade dos discursos políticos, as ideologias, que, enquanto representações da sociedade comprometidas com interesses de grupos, mascaram as verdadeiras relações de dominação.
É por ter assumido esta perspectiva que Marilena Chauí enfrenta uma questão que não costuma ser levada a sério: para que serve a filosofia? A autora, ousadamente, afirma que a filosofia "proclama o direito de ser inútil", se entendermos como útil algo que proporciona riquezas, fama ou vantagens desta natureza. Mas se considerarmos útil aquilo que nos liberta da ignorância e do preconceito, o que nos permite criticar os poderes estabelecidos de qualquer natureza, o que possibilita compreender o sentido das ações e da história dos homens, então a filosofia, diz a autora, "é o mais útil de todos os saberes".
MARIA DAS GRAÇAS DE SOUZA NASCIMENTO é professora do departamento de filosofia da USP

Folha de São Paulo

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