"Vigilância Sanitária: proteção e defesa da saúde"
Ediná Alves Costa
HUCITEC/SOBRAVIME, São Paulo
Este livro, lançado em 1999, com 460 páginas, é leitura essencial para quem trabalha na área da saúde e do direito sanitário. Ele se preocupa com a reorientação do modelo de saúde para mais além da focalização nas demandas clinico-assistenciais para abarcar a qualidade dos serviços de saúde e a qualidade de vida. Fruto da tese de doutorado defendida na Escola de Saúde Pública da Universidade de São Paulo, em 1998, este livro, pioneiro na abordagem do tema, é fonte de referências conceituais e empíricas que congregam estudos e a experiência profissional da autora (médica veterinária, há muitos anos professora na área da saúde pública na Universidade Federal da Bahia).
A face mais complexa da Saúde Pública, cujas origens remontam as mais remotas épocas, as ações do campo da Vigilância Sanitária, configuram o próprio nascedouro da Saúde Pública. Com a complexidade da organização social e o avanço das forças produtivas, a Vigilância Sanitária se configura como um subsetor específico. Ele é, porém, indissociável do conjunto das ações de saúde, situado no espaço mediador entre a produção de bens e serviços e a saúde da coletividade. É a compreensão de tal origem e de suas implicações que fundamenta a caracterização da natureza técnico-sanitária e jurídica da Vigilância Sanitária; o delineamento do processo de constituição do campo e a conseqüente sistematização do corpo doutrinário estruturador dessas práticas sanitárias e jurídicas; a identificação dos conceitos básicos nos quais se baseiam as propostas de ação, as concepções e os instrumentos de ação que vão emergindo com o avanço do conhecimento técnico-científico e que são definidos no processo social como constitutivos das normas sanitárias do país. As normas sanitárias são objeto privilegiado para o exercício hermenêutico sobre um componente do direito, resultado de um processo social e de um processo de acúmulo de conhecimentos, que, sob múltiplas determinações, se expressa em linguagem e, no estado atual, ainda não articula, de forma consistente, os saberes do campo da saúde e do direito.
Na primeira parte, a autora atravessa o longo tempo histórico que recobre desde as mais longínquas épocas até o começo do século atual. Nessa viagem ela recolhe os elementos constitutivos do processo de conformação da Vigilância para caracterizá-la — na atualidade — como ação de natureza eminentemente preventiva. De fato, o périplo se encerra com o reconhecimento da proteção e defesa da saúde como função do Estado brasileiro, abrigada na Constituição Federal de 1988, integrando, portanto, o conteúdo jurídico do conceito de saúde.
A segunda parte apresenta um referencial teórico para o estudo, que se estrutura a partir da compreensão das relações sociais produção-circulação-consumo como elementos da totalidade social. As ações de Vigilância Sanitária estão, então, situadas no espaço mediador das contradições desse circuito que repercutem na saúde. No caso da Vigilância Sanitária, a regulação das relações produção-consumo é sempre mais complexa, pois além da qualidade, eficácia e segurança esperada de produtos e serviços, há outros componentes cruciais, como disponibilidade e preço que não podem ficar completamente sob o jugo do mercado. A autora caracteriza a natureza jurídica das ações de Vigilância Sanitária e os conflitos dela decorrentes, provavelmente existentes em qualquer formação social capitalista. É conferido especial destaque à discussão do poder de polícia — que marca a especificidade da área —, evidenciando-se o caráter essencial e a insuficiência de seu tratamento no que se refere às ações de Vigilância Sanitária. Com efeito, a autora enfatiza que aqui não se trata exatamente de um poder, mas sim do dever-poder do Estado para assegurar os interesses sanitários da coletividade.
A terceira parte do livro apresenta, em seis períodos, a conformação da Vigilância Sanitária no Brasil. Após a exposição dos elementos do processo considerados mais relevantes até os anos 30 da República Velha, a autora mergulha na sistematização e análise das normas a partir da edição da legislação moderna de vigilância sanitária no Brasil, que tem início em 1931. Ao longo dos distintos períodos, demarcados a partir da edição de normas inovadoras, há uma densa contribuição que levanta questões instigantes a respeito de medicamentos, alimentos, serviços de saúde, entre outros. Questões, muitas vezes polêmicas, não faltam sequer nos dias atuais. Tome-se como exemplo o processo social de tentativas de intervenção na questão dos medicamentos, particularmente, a legislação que estabelece o medicamento genérico e a criação da nova estrutura organizacional — a Agência Nacional de Vigilância Sanitária. O exercício hermenêutico, um esforço para articular os conceitos do campo da saúde e do campo jurídico, dá-se a partir da caracterização dos distintos contextos em que emergiram aquelas normas, nos seus aspectos mais gerais de ordem socioeconômica, político-jurídica e sanitária, visando compreender a dinâmica das relações sociais produção-consumo que determina a produção normativa e condiciona os seus enunciados.
A apreciação de um conjunto de termos que se destacam nas normas sanitárias é o foco da quarta parte do livro. Esses termos — como controle, nocividade, risco, segurança, defesa e proteção, qualidade, vigilância sanitária, entre outros — vão aparecendo nas normas em determinado contexto e se reportam a noções que vão aproximando os discursos jurídico e sanitário. Eles foram considerados relevantes para a compreensão dos conceitos do campo da Vigilância Sanitária, cujos termos nem sempre são precisos.
Na quinta parte do livro, à guisa de considerações finais, a autora faz uma apreciação dos achados mais marcantes do tratamento conferido pela Estado aos objetos do campo da Vigilância Sanitária. Ediná A. Costa analisa, então, — com maestria — a construção do "imenso edifício normativo" e a organização dos serviços de Vigilância Sanitária, aspectos perceptíveis do grande descaso pela questão saúde no país das iniquidades. Embora o estudo acentue a negação do direito à saúde, a postura final da autora é otimista. Sem arredar pé de uma interpretação crítica das normas jurídicas como instrumento de dominação, Ediná admite, também, a função de organização social contida nessas normas, reconhecendo-lhes as potencialidades transformadoras da realidade sanitária. A mudança do modelo tradicional de Vigilância Sanitária — de base cartorial-burocrática e até mesmo policial — é, para a autora, tanto urgente quanto factível, um campo estratégico. Tal superação implica uma revisão da crença cega nos aspectos benéficos das tecnologias médicas e de outros produtos e serviços colocados no mercado de consumo — papel a ser desempenhado pela própria Saúde Pública. Ela implica, igualmente, a incorporação das ações de vigilância no conjunto das ações de saúde, mediante o uso articulado de vários instrumentos ou meios de controle; além da legislação e fiscalização sanitária; da vigilância epidemiológica de agravos relacionados aos objetos da ação de vigilância sanitária; do monitoramento da qualidade e do uso das tecnologias e serviços de saúde; da informação, comunicação e educação para a saúde; da pesquisa epidemiológica e de laboratório — que dão consistência técnico-científica às ações e à respectiva avaliação. Enfim, para adequar a Vigilância Sanitária às exigências postas, é necessária a efetiva implementação do Sistema Único de Saúde, com a descentralização das ações e a participação plena dos profissionais de saúde e dos cidadãos. É indispensável que todos percebam a importância da responsabilidade ética no desempenho das ações de vigilância sanitária, que — mesmo reconhecendo sua função na organização econômica — devem primar pela afirmação da vida humana como um valor inalienável.
Enfim, a leitura de Vigilância Sanitária: proteção e defesa da saúde é imprescindível para quem pretenda conhecer a evolução da regulamentação dos comportamentos de interesse sanitário no contexto em que as normas foram editadas.
Sueli Gandolfi Dallari
Professor Titular, Faculdade de Saúde Pública/USP
Livre-Docente em Direito Sanitário, Universidade São Paulo
Centro de Estudos e Pesquisas de Direito Sanitário - CEPEDISA e Núcleo de Pesquisas em Direito Sanitário da Universidade de São Paulo - NAP-DISA/USP
Revista de Direito Sanitário
Ediná Alves Costa
HUCITEC/SOBRAVIME, São Paulo
Este livro, lançado em 1999, com 460 páginas, é leitura essencial para quem trabalha na área da saúde e do direito sanitário. Ele se preocupa com a reorientação do modelo de saúde para mais além da focalização nas demandas clinico-assistenciais para abarcar a qualidade dos serviços de saúde e a qualidade de vida. Fruto da tese de doutorado defendida na Escola de Saúde Pública da Universidade de São Paulo, em 1998, este livro, pioneiro na abordagem do tema, é fonte de referências conceituais e empíricas que congregam estudos e a experiência profissional da autora (médica veterinária, há muitos anos professora na área da saúde pública na Universidade Federal da Bahia).
A face mais complexa da Saúde Pública, cujas origens remontam as mais remotas épocas, as ações do campo da Vigilância Sanitária, configuram o próprio nascedouro da Saúde Pública. Com a complexidade da organização social e o avanço das forças produtivas, a Vigilância Sanitária se configura como um subsetor específico. Ele é, porém, indissociável do conjunto das ações de saúde, situado no espaço mediador entre a produção de bens e serviços e a saúde da coletividade. É a compreensão de tal origem e de suas implicações que fundamenta a caracterização da natureza técnico-sanitária e jurídica da Vigilância Sanitária; o delineamento do processo de constituição do campo e a conseqüente sistematização do corpo doutrinário estruturador dessas práticas sanitárias e jurídicas; a identificação dos conceitos básicos nos quais se baseiam as propostas de ação, as concepções e os instrumentos de ação que vão emergindo com o avanço do conhecimento técnico-científico e que são definidos no processo social como constitutivos das normas sanitárias do país. As normas sanitárias são objeto privilegiado para o exercício hermenêutico sobre um componente do direito, resultado de um processo social e de um processo de acúmulo de conhecimentos, que, sob múltiplas determinações, se expressa em linguagem e, no estado atual, ainda não articula, de forma consistente, os saberes do campo da saúde e do direito.
Na primeira parte, a autora atravessa o longo tempo histórico que recobre desde as mais longínquas épocas até o começo do século atual. Nessa viagem ela recolhe os elementos constitutivos do processo de conformação da Vigilância para caracterizá-la — na atualidade — como ação de natureza eminentemente preventiva. De fato, o périplo se encerra com o reconhecimento da proteção e defesa da saúde como função do Estado brasileiro, abrigada na Constituição Federal de 1988, integrando, portanto, o conteúdo jurídico do conceito de saúde.
A segunda parte apresenta um referencial teórico para o estudo, que se estrutura a partir da compreensão das relações sociais produção-circulação-consumo como elementos da totalidade social. As ações de Vigilância Sanitária estão, então, situadas no espaço mediador das contradições desse circuito que repercutem na saúde. No caso da Vigilância Sanitária, a regulação das relações produção-consumo é sempre mais complexa, pois além da qualidade, eficácia e segurança esperada de produtos e serviços, há outros componentes cruciais, como disponibilidade e preço que não podem ficar completamente sob o jugo do mercado. A autora caracteriza a natureza jurídica das ações de Vigilância Sanitária e os conflitos dela decorrentes, provavelmente existentes em qualquer formação social capitalista. É conferido especial destaque à discussão do poder de polícia — que marca a especificidade da área —, evidenciando-se o caráter essencial e a insuficiência de seu tratamento no que se refere às ações de Vigilância Sanitária. Com efeito, a autora enfatiza que aqui não se trata exatamente de um poder, mas sim do dever-poder do Estado para assegurar os interesses sanitários da coletividade.
A terceira parte do livro apresenta, em seis períodos, a conformação da Vigilância Sanitária no Brasil. Após a exposição dos elementos do processo considerados mais relevantes até os anos 30 da República Velha, a autora mergulha na sistematização e análise das normas a partir da edição da legislação moderna de vigilância sanitária no Brasil, que tem início em 1931. Ao longo dos distintos períodos, demarcados a partir da edição de normas inovadoras, há uma densa contribuição que levanta questões instigantes a respeito de medicamentos, alimentos, serviços de saúde, entre outros. Questões, muitas vezes polêmicas, não faltam sequer nos dias atuais. Tome-se como exemplo o processo social de tentativas de intervenção na questão dos medicamentos, particularmente, a legislação que estabelece o medicamento genérico e a criação da nova estrutura organizacional — a Agência Nacional de Vigilância Sanitária. O exercício hermenêutico, um esforço para articular os conceitos do campo da saúde e do campo jurídico, dá-se a partir da caracterização dos distintos contextos em que emergiram aquelas normas, nos seus aspectos mais gerais de ordem socioeconômica, político-jurídica e sanitária, visando compreender a dinâmica das relações sociais produção-consumo que determina a produção normativa e condiciona os seus enunciados.
A apreciação de um conjunto de termos que se destacam nas normas sanitárias é o foco da quarta parte do livro. Esses termos — como controle, nocividade, risco, segurança, defesa e proteção, qualidade, vigilância sanitária, entre outros — vão aparecendo nas normas em determinado contexto e se reportam a noções que vão aproximando os discursos jurídico e sanitário. Eles foram considerados relevantes para a compreensão dos conceitos do campo da Vigilância Sanitária, cujos termos nem sempre são precisos.
Na quinta parte do livro, à guisa de considerações finais, a autora faz uma apreciação dos achados mais marcantes do tratamento conferido pela Estado aos objetos do campo da Vigilância Sanitária. Ediná A. Costa analisa, então, — com maestria — a construção do "imenso edifício normativo" e a organização dos serviços de Vigilância Sanitária, aspectos perceptíveis do grande descaso pela questão saúde no país das iniquidades. Embora o estudo acentue a negação do direito à saúde, a postura final da autora é otimista. Sem arredar pé de uma interpretação crítica das normas jurídicas como instrumento de dominação, Ediná admite, também, a função de organização social contida nessas normas, reconhecendo-lhes as potencialidades transformadoras da realidade sanitária. A mudança do modelo tradicional de Vigilância Sanitária — de base cartorial-burocrática e até mesmo policial — é, para a autora, tanto urgente quanto factível, um campo estratégico. Tal superação implica uma revisão da crença cega nos aspectos benéficos das tecnologias médicas e de outros produtos e serviços colocados no mercado de consumo — papel a ser desempenhado pela própria Saúde Pública. Ela implica, igualmente, a incorporação das ações de vigilância no conjunto das ações de saúde, mediante o uso articulado de vários instrumentos ou meios de controle; além da legislação e fiscalização sanitária; da vigilância epidemiológica de agravos relacionados aos objetos da ação de vigilância sanitária; do monitoramento da qualidade e do uso das tecnologias e serviços de saúde; da informação, comunicação e educação para a saúde; da pesquisa epidemiológica e de laboratório — que dão consistência técnico-científica às ações e à respectiva avaliação. Enfim, para adequar a Vigilância Sanitária às exigências postas, é necessária a efetiva implementação do Sistema Único de Saúde, com a descentralização das ações e a participação plena dos profissionais de saúde e dos cidadãos. É indispensável que todos percebam a importância da responsabilidade ética no desempenho das ações de vigilância sanitária, que — mesmo reconhecendo sua função na organização econômica — devem primar pela afirmação da vida humana como um valor inalienável.
Enfim, a leitura de Vigilância Sanitária: proteção e defesa da saúde é imprescindível para quem pretenda conhecer a evolução da regulamentação dos comportamentos de interesse sanitário no contexto em que as normas foram editadas.
Sueli Gandolfi Dallari
Professor Titular, Faculdade de Saúde Pública/USP
Livre-Docente em Direito Sanitário, Universidade São Paulo
Centro de Estudos e Pesquisas de Direito Sanitário - CEPEDISA e Núcleo de Pesquisas em Direito Sanitário da Universidade de São Paulo - NAP-DISA/USP
Revista de Direito Sanitário
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