MICELI, Sergio. 1996. Imagens Negociadas. Retratos da Elite Brasileira (1920-40). São Paulo: Companhia das Letras. 174 pp.
Gustavo Sorá
Doutorando, PPGAS-MN-UFRJ
Em seu último livro, Miceli estuda o processo de autonomização relativa dos campos artístico e literário em face do mundo da política e dos consumos culturais de diferentes frações constitutivas do campo de poder entre as décadas de 20 e 40. Para a análise de problemas teóricos clássicos, o autor cria uma forma concisa de abordagem empírica: um ponto de ataque que experimenta indefinidamente até o final do livro.
Ao propor uma interpretação sociológica da produção retratística de Cândido Portinari, enfoca uma classe de objetos que permitem uma leitura privilegiada da relação entre formas legítimas de produção plástica e consumos culturais distintivos, destinados a prover benefícios de afirmação social às elites. A forma final de cada um dos retratos deve tanto à competência estética do pintor, quanto à busca de solidificação de uma imagem de classe entre representantes de diversas frações dominantes: os retratos podem ser compreendidos como imagens negociadas.
Os retratos são interpretados como esforços do pintor, uma espécie de sociologia pré-reflexiva voltada para modelar em linguagem plástica os sinais da posição ocupada e as expectativas de ascensão social do retratado: "O que está em jogo é o sentido atribuído e perpetrado pelo artista ao expressar uma definição compacta aliando uma fisionomia, aquela modelada na tela, a uma significação simbólica, que tanto pode ser uma pretensão política, uma qualificação institucional, uma afirmação de prestígio, uma filiação doutrinária ou confessional, uma habilitação erótica ou mundana, ou quaisquer misturas desses investimentos sociais" (:64). Os retratos expõem um jogo de legitimidades em tensão: do artista em relação ao campo artístico; do retratado em relação ao campo literário e/ou político; um necessitando do outro como embasamento de projetos afins.
Essa passagem resume a idéia de que o livro trata da construção de uma forma específica de poder rentável para a época, não redutível ou determinável por outras; com seu código pictórico, simbólico, sutil: seus próprios termos de negociação. Com obstinação Miceli persegue uma interpretação densa dessa linguagem, recupera a especificidade sociológica dessa prática cultural e política.
O livro pode ser lido como uma interpretação sociológica negociada. Miceli constrói um quadro como filigrana que amplia as possibilidades de compreensão dos retratos de Portinari. Rompendo com os moldes clássicos da monografia, especialmente com a obrigação de explicitar cada idéia ou fonte de inspiração, a introdução mostra o método em ação, partindo dos indícios que é possível extrair dos retratos de Maria, a mulher de Portinari. Analisando virtualidades pictóricas à luz da ascendente posição do pintor no incipiente campo artístico brasileiro e do casal Portinari na estrutura do espaço social, Miceli enche de tempo e espaço as obras, ali onde as imagens representadas falam dos dilemas da trajetória e das expectativas de posicionamento.
Portinari consagrou-se como um autêntico modelo de artista modernista à medida que avançava o regime de Vargas e as empresas de descobrimento cultural das figuras de brasilidade, e sua carreira é exemplar para visualizar, por contraste, o sistema de produção artística circundante e suas possibilidades de expansão. Filho de imigrantes modestos do interior paulista e casado com uma uruguaia, o pintor só contou com sua competência artística para ocupar um lugar no mundo (a capital). Desse modo, representa ao mesmo tempo o tipo de personagem decisivo para a autonomização de um campo de produção cultural e de uma classe de agentes disponíveis para as empresas de relativa "cooptação" no campo de poder.
A introdução mostra a matéria-prima, arma o leitor de uma intenção interpretativa, mas já o encaminha a um molde gramatical que se repete quase sem interrupção até a última página. Miceli escolhe o retrato de uma personagem. Assinala as circunstâncias que aproximaram o pintor do retratado. Interpreta densamente o retrato como um arbitrário pictórico dentro de um arbitrário cultural-nacional. Dessa mecânica extrai indícios sobre os problemas sociológicos do livro, aludindo sempre a um plano geral implícito e a um outro específico detalhado.
Para cada quadro aplica-se uma mesma lente sistemática que enfoca, em primeiro lugar, a proximidade/distância entre Portinari e o retratado. Em diversos casos, percebe-se uma ênfase demasiado forte na interpretação estética (p. ex.: retratos de Jorge de Lima), para a qual o autor está dotado de uma percepção e linguagem de especialista. Às vezes insiste-se no sentido do retrato na trajetória política e/ou intelectual do retratado (p. ex.: retratos de Jorge Amado); em outros, trabalha-se o tempo todo em cima dos elementos de negociação (p. ex.: Patrícia Galvão).
O livro avança em mosaico, pelo estudo de séries que o autor reúne para pôr de manifesto gêneros de negociação ajustados a épocas particulares: relativas às competências do pintor e sua posição no sistema de relações que imprimia valor às suas obras; relativas às clientelas preferenciais (escritores; escritores-funcionários; pintores; presidentes da República; damas da elite tradicional; diplomatas; intelectuais feministas etc.) e às espécies de capital por elas mobilizados. Por outro lado, presta-se atenção às variantes dentro de cada série, de onde se extraem relações estruturais inéditas para compreender um modo de produção cultural dominante até 1945, período de forte subordinação ao mundo da política e de um estado difuso de interligação das variadas práticas legítimas, entre as quais transitavam fluidamente os produtores culturais: poesia, pintura, romance, crítica, jornalismo etc.
A forma de análise pode ser sintetizada como estrutural. Consiste na extração de indícios ao gerar contrastes sistemáticos que vão do particular ao geral. Primeiro, entre diferentes versões de retratos de uma mesma pessoa, feitos por Portinari e por outros artistas, com fotografias, caricaturas e outros suportes possíveis de transmissão de imagens. Depois, contrastando as variantes dentro de um mesmo conjunto ou subgênero. As oposições dominantes são pautadas em termos de "parecença"/figuração pictórica; distância/compromisso com o retratado; presença/ausência; figura/fundo; elite/paisagem popularesca.
No entanto, longe das armadilhas do estruturalismo, a análise enfoca a singularidade de Portinari e as suas fórmulas de sucesso. A individualidade do artista não é redutível a um modelo geral e seu êxito não se deve à aplicação racional de fórmulas-resultados. Miceli repisa as ambigüidades, os dilemas, as dificuldades, as pulsões, as energias sociais condensadas nas telas. Dá conta do estado difuso em que eram vividos os atos para fazer-se em uma profissão e das tentativas das elites na busca incessante da distinção social, para a qual um retrato de Portinari criava uma distância insuperável.
O trabalho prossegue diferenciando estilos mediante técnica de justaposição de problemas suscitados pelas telas a partir dos contrastes, como retomando indícios dos sinais pré-sociológicos que, em clave plástica, Portinari deixou à mercê do sociólogo. Embebido pelas virtudes do método, um trabalho similar deve realizar o leitor à medida que prossegue a leitura. Perto do final Miceli abre uma das poucas passagens de síntese explicativa. Em "Gênese de uma Fórmula Retratística" exterioriza o foco de construção sociológica, tematizando os fundamentos do sucesso cultural e comercial de Portinari: a configuração de propriedades únicas por ele reunidas e seu sentido de orientação no sistema de relações artísticas e sociais de sua época. Já nas últimas páginas o autor volta-se para o percurso interpretativo, para contabilizar as operações empregadas e avaliar o rendimento analítico de sua proposta.
Este livro se singulariza, entre outros aspectos, ao demonstrar como é possível estudar processos de diferenciação social e cultural, transmitindo como eram vividos a consagração e o fracasso, as inclusões e as exclusões. Mostra a autonomização de práticas e esferas de atividade, recuperando o estado difuso em que se travam as relações, se produzem os atos, os limites, seus poderes e as possibilidades de ultrapassá-los.
Por isso, sem mencionar uma só vez as palavras método e teoria, Imagens Negociadas é uma forte contribuição metodológica e teórica. O livro destaca a importância de pensar, antes de escrever, objetos e pontos de ataque estratégicos. Os retratos são espaços de cruzamento onde se condensam energias que unem o maior espectro possível de sentidos culturais e relações sociais. Quando esse ponto é "rentável", o livro se torna pura interpretação, flui. O leitor se sente negociando a intenção de conhecimento com o autor.
Revista Mana
Gustavo Sorá
Doutorando, PPGAS-MN-UFRJ
Em seu último livro, Miceli estuda o processo de autonomização relativa dos campos artístico e literário em face do mundo da política e dos consumos culturais de diferentes frações constitutivas do campo de poder entre as décadas de 20 e 40. Para a análise de problemas teóricos clássicos, o autor cria uma forma concisa de abordagem empírica: um ponto de ataque que experimenta indefinidamente até o final do livro.
Ao propor uma interpretação sociológica da produção retratística de Cândido Portinari, enfoca uma classe de objetos que permitem uma leitura privilegiada da relação entre formas legítimas de produção plástica e consumos culturais distintivos, destinados a prover benefícios de afirmação social às elites. A forma final de cada um dos retratos deve tanto à competência estética do pintor, quanto à busca de solidificação de uma imagem de classe entre representantes de diversas frações dominantes: os retratos podem ser compreendidos como imagens negociadas.
Os retratos são interpretados como esforços do pintor, uma espécie de sociologia pré-reflexiva voltada para modelar em linguagem plástica os sinais da posição ocupada e as expectativas de ascensão social do retratado: "O que está em jogo é o sentido atribuído e perpetrado pelo artista ao expressar uma definição compacta aliando uma fisionomia, aquela modelada na tela, a uma significação simbólica, que tanto pode ser uma pretensão política, uma qualificação institucional, uma afirmação de prestígio, uma filiação doutrinária ou confessional, uma habilitação erótica ou mundana, ou quaisquer misturas desses investimentos sociais" (:64). Os retratos expõem um jogo de legitimidades em tensão: do artista em relação ao campo artístico; do retratado em relação ao campo literário e/ou político; um necessitando do outro como embasamento de projetos afins.
Essa passagem resume a idéia de que o livro trata da construção de uma forma específica de poder rentável para a época, não redutível ou determinável por outras; com seu código pictórico, simbólico, sutil: seus próprios termos de negociação. Com obstinação Miceli persegue uma interpretação densa dessa linguagem, recupera a especificidade sociológica dessa prática cultural e política.
O livro pode ser lido como uma interpretação sociológica negociada. Miceli constrói um quadro como filigrana que amplia as possibilidades de compreensão dos retratos de Portinari. Rompendo com os moldes clássicos da monografia, especialmente com a obrigação de explicitar cada idéia ou fonte de inspiração, a introdução mostra o método em ação, partindo dos indícios que é possível extrair dos retratos de Maria, a mulher de Portinari. Analisando virtualidades pictóricas à luz da ascendente posição do pintor no incipiente campo artístico brasileiro e do casal Portinari na estrutura do espaço social, Miceli enche de tempo e espaço as obras, ali onde as imagens representadas falam dos dilemas da trajetória e das expectativas de posicionamento.
Portinari consagrou-se como um autêntico modelo de artista modernista à medida que avançava o regime de Vargas e as empresas de descobrimento cultural das figuras de brasilidade, e sua carreira é exemplar para visualizar, por contraste, o sistema de produção artística circundante e suas possibilidades de expansão. Filho de imigrantes modestos do interior paulista e casado com uma uruguaia, o pintor só contou com sua competência artística para ocupar um lugar no mundo (a capital). Desse modo, representa ao mesmo tempo o tipo de personagem decisivo para a autonomização de um campo de produção cultural e de uma classe de agentes disponíveis para as empresas de relativa "cooptação" no campo de poder.
A introdução mostra a matéria-prima, arma o leitor de uma intenção interpretativa, mas já o encaminha a um molde gramatical que se repete quase sem interrupção até a última página. Miceli escolhe o retrato de uma personagem. Assinala as circunstâncias que aproximaram o pintor do retratado. Interpreta densamente o retrato como um arbitrário pictórico dentro de um arbitrário cultural-nacional. Dessa mecânica extrai indícios sobre os problemas sociológicos do livro, aludindo sempre a um plano geral implícito e a um outro específico detalhado.
Para cada quadro aplica-se uma mesma lente sistemática que enfoca, em primeiro lugar, a proximidade/distância entre Portinari e o retratado. Em diversos casos, percebe-se uma ênfase demasiado forte na interpretação estética (p. ex.: retratos de Jorge de Lima), para a qual o autor está dotado de uma percepção e linguagem de especialista. Às vezes insiste-se no sentido do retrato na trajetória política e/ou intelectual do retratado (p. ex.: retratos de Jorge Amado); em outros, trabalha-se o tempo todo em cima dos elementos de negociação (p. ex.: Patrícia Galvão).
O livro avança em mosaico, pelo estudo de séries que o autor reúne para pôr de manifesto gêneros de negociação ajustados a épocas particulares: relativas às competências do pintor e sua posição no sistema de relações que imprimia valor às suas obras; relativas às clientelas preferenciais (escritores; escritores-funcionários; pintores; presidentes da República; damas da elite tradicional; diplomatas; intelectuais feministas etc.) e às espécies de capital por elas mobilizados. Por outro lado, presta-se atenção às variantes dentro de cada série, de onde se extraem relações estruturais inéditas para compreender um modo de produção cultural dominante até 1945, período de forte subordinação ao mundo da política e de um estado difuso de interligação das variadas práticas legítimas, entre as quais transitavam fluidamente os produtores culturais: poesia, pintura, romance, crítica, jornalismo etc.
A forma de análise pode ser sintetizada como estrutural. Consiste na extração de indícios ao gerar contrastes sistemáticos que vão do particular ao geral. Primeiro, entre diferentes versões de retratos de uma mesma pessoa, feitos por Portinari e por outros artistas, com fotografias, caricaturas e outros suportes possíveis de transmissão de imagens. Depois, contrastando as variantes dentro de um mesmo conjunto ou subgênero. As oposições dominantes são pautadas em termos de "parecença"/figuração pictórica; distância/compromisso com o retratado; presença/ausência; figura/fundo; elite/paisagem popularesca.
No entanto, longe das armadilhas do estruturalismo, a análise enfoca a singularidade de Portinari e as suas fórmulas de sucesso. A individualidade do artista não é redutível a um modelo geral e seu êxito não se deve à aplicação racional de fórmulas-resultados. Miceli repisa as ambigüidades, os dilemas, as dificuldades, as pulsões, as energias sociais condensadas nas telas. Dá conta do estado difuso em que eram vividos os atos para fazer-se em uma profissão e das tentativas das elites na busca incessante da distinção social, para a qual um retrato de Portinari criava uma distância insuperável.
O trabalho prossegue diferenciando estilos mediante técnica de justaposição de problemas suscitados pelas telas a partir dos contrastes, como retomando indícios dos sinais pré-sociológicos que, em clave plástica, Portinari deixou à mercê do sociólogo. Embebido pelas virtudes do método, um trabalho similar deve realizar o leitor à medida que prossegue a leitura. Perto do final Miceli abre uma das poucas passagens de síntese explicativa. Em "Gênese de uma Fórmula Retratística" exterioriza o foco de construção sociológica, tematizando os fundamentos do sucesso cultural e comercial de Portinari: a configuração de propriedades únicas por ele reunidas e seu sentido de orientação no sistema de relações artísticas e sociais de sua época. Já nas últimas páginas o autor volta-se para o percurso interpretativo, para contabilizar as operações empregadas e avaliar o rendimento analítico de sua proposta.
Este livro se singulariza, entre outros aspectos, ao demonstrar como é possível estudar processos de diferenciação social e cultural, transmitindo como eram vividos a consagração e o fracasso, as inclusões e as exclusões. Mostra a autonomização de práticas e esferas de atividade, recuperando o estado difuso em que se travam as relações, se produzem os atos, os limites, seus poderes e as possibilidades de ultrapassá-los.
Por isso, sem mencionar uma só vez as palavras método e teoria, Imagens Negociadas é uma forte contribuição metodológica e teórica. O livro destaca a importância de pensar, antes de escrever, objetos e pontos de ataque estratégicos. Os retratos são espaços de cruzamento onde se condensam energias que unem o maior espectro possível de sentidos culturais e relações sociais. Quando esse ponto é "rentável", o livro se torna pura interpretação, flui. O leitor se sente negociando a intenção de conhecimento com o autor.
Revista Mana
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