terça-feira, 25 de outubro de 2022

A sociologia do corpo


Ana Maria Canesqui

Departamento de Medicina Preventiva e Social, Faculdade de Ciências Médicas, Universidade Estadual de Campinas. Rua Tessália Vieira de Camargo,126. Barão Geraldo, Campinas, SP, Brasil. 13083-887. anacanesqui@uol.com.br

Le Breton, D. A sociologia do corpo. 4.ed. Rio de Janeiro: Vozes, 2010.

A vasta obra de David Le Breton sobre a sociologia e antropologia do corpo, originalmente publicada em língua francesa, está pouco disponível em português e foi parcialmente divulgada em espanhol. O autor tem formação em sociologia, antropologia e psicologia, é professor de sociologia da Universidade Marck Block de Estrasburgo, França, e membro do laboratório Cultures et Sociétés en Europe. Desde a década de 1980, dedica-se à sociologia e antropologia do corpo, passando, também, sua produção científica pela dor; a paixão pelos riscos e aventura; as identidades e as marcas corporais; o silêncio; o uso de remédios e outros temas.

O assunto recebeu atenção de um clássico da antropologia no século XX, Marcel Mauss (1950), que deixou seguidores, e, posteriormente, de autores como: Merleau-Ponthy; Norbert Elias; Bernard Michel; Luc Boltanski; Michel Foucault, dentre outros. Feministas, na década de 1970, reclamaram o controle sobre o próprio corpo, concedendo-lhe status político na luta contra sua exploração.

A sociologia interessou-se, mais intensamente, pela corporeidade na década de 1980, sendo nítida sua importância para a sociologia da saúde e doença, à medida que "a enfermidade limita o funcionamento "normal" do corpo, com profundas conseqüências sociais, políticas, econômicas e psicológicas, assim como o corpo é objeto das intervenções médicas" (Nettleton, 2003).

Adeus ao corpo: antropologia e sociedade (2003) foi o primeiro livro de Le Breton editado em português e comentado por Gomes (2004), onde o autor reflete sobre o corpo moderno: acessório, modelado, fabricado, parceiro (alter ego); administrado, marcado, rascunho, transexualizado e body art. Chama a atenção para a forte intervenção das tecnociências nos rearranjos corporais, como a interferência do biopoder, que submete e aprisiona os sujeitos às ideologias dominadoras do aprimoramento corporal, que certamente ultrapassa a dimensão física, para inseri-la também em novas representações do corpo na ordem dos valores.

Objeto incerto e ambíguo, o fenômeno da corporeidade é complexo, conclama a interdisciplinaridade entre as ciências sociais e humanas (etnologia, psicologia, sociologia, psicanálise) e as ciências biomédicas. Isto porque o "corpo é a interface entre o social e o individual, a natureza e a cultura, o psicológico e o simbólico" (Le Breton, 2003, p.97). Esta ambiguidade complexa requer prudência e precisão do sociólogo ou do antropólogo na delimitação das fronteiras de seu objeto de investigação simultânea à manutenção do diálogo e interlocução interdisciplinar.

O pequeno livro comentado nesta resenha, A sociologia do corpo - editado originalmente na França, em 1992, e disponível em português, na sua quarta edição - é leitura obrigatória aos que querem investigar e compreender a corporeidade humana, como fenômeno cultural e social, repleto de simbolismo, representações e imaginários, inscrevendo-se o corpo nas moldagens social e cultural, tanto no plano do sentido e do valor, quanto no âmbito relacional, lugar e tempo do homem, imerso na singularidade de sua história.

Le Breton recusa a sociologia do corpo como disciplina autônoma da reflexão sociológica, uma vez tributária de sua epistemologia e metodologia. Antes de apontar uma agenda de investigações sobre o corpo, alguns capítulos reconstroem, detalhadamente, as diferentes epistemologias das reflexões sociológicas e etnológicas do corpo, introduzindo o leitor na síntese do estado da arte deste objeto.

O capítulo I dedica-se às etapas históricas da reflexão da corporeidade humana, nos primórdios das ciências sociais no século XIX, destacando três etapas: a primeira é a sociologia implícita ao corpo, ignorando-o e mostrando a miséria física e moral da classe trabalhadora na Revolução Industrial. A segunda etapa concentra-se na supremacia biológica do corpo, à qual se opuseram Hertz e Mauss e outros autores que desenvolveram pesquisas e inventários etnológicos sobre os usos sociais do corpo, enquadrados na terceira etapa, designada, pelo autor, de sociologia detalhista.

O capítulo II indaga, pertinentemente, sobre as ambiguidades dos discursos sociológicos sobre o corpo, perguntando-se: de que corpo se está falando? "Corpo não é fetiche, omitindo o homem", diz o autor (Le Breton, 2010, p.25), sendo imprescindível referir-se ao ator que o porta. Um conjunto de estudos etnográficos demonstra: as representações do corpo e da pessoa, inseridas na visão de mundo; a fisiologia simbólica da mulher e suas relações com o contexto; as concepções modernas do corpo, separadas do cosmos; as concepções anatômicas e fisiológicas do pensamento ocidental; o corpo enquanto imaginário social; a corporeidade humana e seus elos com a natureza; o corpo nas medicinas chinesa e indígena. O argumento central do capítulo reforça a imersão da corporeidade no imaginário, nas representações e condutas que variam segundo as diferentes sociedades.

Para definir o corpo de que se fala, dos pontos de vista sociológico e antropológico (capítulo III), distancia-se da ideia de ser ele atributo da pessoa, um pertencimento da identidade em recusa à ideologia individualista. O autor abraça a ideia da realidade construída do corpo, com múltiplas significações culturalmente operantes e associadas aos atores, vistos como corporeidade.

O corpo inexiste em estado natural, insere-se na trama dos sentidos, inclusive naquelas manifestações mais físicas, como na dor e na enfermidade, expressas nas percepções sensoriais e corporais dos atores. A análise sociológica distingue-se das intervenções corporais terapêuticas (médicas, xamânicas, religiosas, outras medicinas) que buscam reinserir o homem em sua comunidade. Nas palavras do autor, "a sociologia aplicada ao corpo distancia-se das asserções médicas que desconhecem as dimensões pessoal, social e cultural de suas percepções sobre o corpo" (Le Breton, 2010, p.36).

Ao detalhar as investigações das lógicas sociais e culturais do corpo (capítulo IV), o autor parte de Marcel Mauss (1950), sobre as técnicas corporais e as expressões dos sentimentos, das emoções e da dor. Acrescenta contemporâneos que estudaram assuntos como: os especialistas das técnicas corporais circenses, desportivas, artesanais; de ars amandi; a gestualidade; as etiquetas corporais e infrações às regras; as percepções sensoriais, as inscrições corporais e as traduções físicas da enfermidade (sintomas ou comportamentos).

O corpo, como universo das representações, dos valores e do imaginário social, ocupa o capítulo V, distinguindo esta abordagem dos enfoques biológicos e sociobiológicos, percorrendo-se estudos antropológicos clássicos e contemporâneos sobre: sexualidade; o uso do corpo; o corpo como suporte de valores e o corpo incapacitado. O capítulo VI enfoca os estudos sobre o corpo como reflexo do social-coletivo: suporte das relações de poder e do controle social; das apresentações das aparências corporais; da modernidade; do estigma; do gosto pelo risco e aventuras; o envelhecimento do corpo e o imaginário do descartável ou das mudanças imprimidas ao corpo pelas tecnologias médicas, que nem sempre suscitam reflexões éticas pertinentes.

Ao concluir sobre a situação da sociologia do corpo, no último capítulo, Le Breton reafirma a pertinência da corporeidade, a amplitude das pesquisas sociológicas e antropológicas no assunto, onde o pesquisador, como um verdadeiro artesão prudente e competente, é desafiado a entrecruzar saberes, diante de sua complexidade.

Enfim, a sociologia aplicada ao corpo, segundo o autor, deve produzir muitas investigações significativas, cuja agenda inclui, dentre os vários itens: o inventário e a comparação das diferentes modalidades corporais, significações, representações e valores nos distintos grupos sociais; as mudanças das atitudes frente ao corpo em certas enfermidades, assim como as intervenções das novas tecnologias médicas sobre o corpo. A sociologia do corpo refere-se ao "enraizamento físico do ator no universo social e cultural" (Le Breton, 2010, p.99), não naturalizando o corpo.

Recomenda-se a leitura deste pequeno e denso livro aos que pretendem iniciar-se nas abordagens sociológicas e etnológicas do assunto.



Referências

GOMES, R. Resenha: LE BRETON, D. Adeus ao corpo: antropologia e sociedade. Cienc. Saude Colet., v. 9, n.1, p.247, 2004.

LE BRETON, D. Adeus ao corpo: antropologia e sociedade. Campinas: Papirus, 2003.

______. A sociologia do corpo. 4.ed. Rio de Janeiro: Vozes, 2010.

MAUSS, M. Sociologie et Anthropologie. Paris: PUF, 1950.

NETTLETON, S. The Sociology of health & illness. Cambridge: Polity, 2003.

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