sábado, 5 de junho de 2010

La Sève de L'homme



Márcia Moisés Ribeiro
Pós-Graduanda em História Social - FFLCH/USP

HERITIER, Jean. La Sève de L'homme. Paris, Denoel, 1987, 177p.

Inserido no recente movimento da historiografia francesa que visa reconstituir as mentalidades e o imaginário através de suas múltiplas faces, Jean Héritier em La Sève de L 'homme busca as origens e o desenvolvimento das complexas relações dos homens com o seu sangue.

Não se trata de uma obra convencional de história da medicina. Héritier, dotado de muito engenho e sensibilidade traz à luz um campo até então pouco conhecido dos historiadores. A noção que se tem do sangue ultrapassa o saber médico, o saber "científico" e acaba inserindo-se no campo do sagrado e do sobrenatural. É no movimento de junção, na imbricação do mundo natural com o sobrenatural, que o autor procura as bases para a compreensão do longo percurso da prática da sangria e a sua importância para a cultura ocidental.

Desde a antiguidade clássica até o século XVIII, a sangria foi o recurso universal da medicina. Ela põe em jogo uma história muito complexa na qual a velha teoria dos humores ocupava um lugar fundamental. La Sève de L'homme inicia-se com uma introdução onde são abordados os princípios que regiam emissões sangüíneas como meio terapêutico e se desenrola em três partes: "Porque sangrar", "As disputas em torno da sangria" e "Sangue e Melancolia".

Diante da ausência de um saber científico e de um conhecimento mais profundo acerca das doenças e das curas, característicos da arte médica até o século das Luzes, a sangria foi considerada como uma terapêutica extremamente eficaz. Usada como um recurso contra a doença ou como meio preventivo, ela fazia parte do cotidiano. Os defensores da arte flebotômica comparavam as veias a reservatórios de água, ou seja, quanto mais é renovado o seu líquido, melhor a sua qualidade.

A sangria não era apenas uma prática de charlatães ou de empíricos que exploravam a credulidade popular, mas também uma prática de médicos e cirurgiões saídos das principais universidades européias nutridos pela erudição dos grandes vultos da medicina antiga. A arte médica até o extremo fim do século XVIII é uma herança da ciência greco-romana, e é a partir dela, portanto, que o autor busca a compreensão da persistência da flebotomia ao longo dos séculos.

Os médicos do século XVII - época em que as emissões sangüíneas atingem seu auge - justificam os efeitos da sangria em função de suas idéias sobre as doenças e a sua relação com a patologia humoral. Modelo e resumo do universo o corpo humano contém os quatro elementos do mundo sob a forma de humores ou líquidos. Os quatro humores orgânicos (sangue, fleuma, bili e bili negra ou melancolia) tinham as mesmas qualidades dos quatro elementos da natureza (ar, terra, fogo e água). Acreditava-se que a influência de algum fator externo - como o clima e gênero de vida - ou interno - disposição patológica, podia causar um desequilíbrio humoral, o que por sua vez, originava a doença.

Dentre todos os recursos médicos, a sangria era aceita como o mais eficaz, pois através do sangue era possível expelir o humor corrompido e restabelecer a saúde dos indivíduos.

Elaborada por Galeno com base nas concepções hipocráticas, essa teoria dos humores se vê extremamente reforçada entre os séculos XVI e XVII. Em um dos momentos mais brilhantes da obra, Jean Héritier conduz o leitor ao entendimento de um dos grandes paradoxos da história da medicina. No momento de franco progresso científico - inclusive no campo médico com as descobertas de Vesálio e Harvey - os modelos deixados pelos empíricos helenistas encontram grande aceitação. Apesar da revolução da medicina não ocorre uma ruptura com a tradição. Os velhos sistemas influenciam fortemente as novas descobertas cientificas, a tal ponto que entre 1.500 e 1.800, as invenções da medicina tiveram pouca influência na prática cotidiana.

Dos quatro humores existentes, é na melancolia que o autor se baseia para explicar o revigoramento das emissões sangüíneas entre os séculos XVI e XVII. Na mentalidade coletiva, a bili negra ou melancolia - substância acre e espessa - tinha profunda ligação com as trevas e com a morte. Normalmente a corrupção do humor melancólico manifestava-se através da loucura ou demência. Se após o diagnóstico nenhuma causa natural pudesse explicar a corrupção deste humor, os médicos atribuíam o mal a uma causa sobrenatural e diabólica.

No comportamento coletivo, nota-se o clima de total mal estar no qual o ocidente venceu a peste e as guerras de religião. O desencanto associado ao olhar pessimista sobre o mundo caracteriza a vida européia. Entre 1.480 e 1.650, a tristeza prolongada e a melancolia, sobretudo, é o sentimento comum do mundo ocidental.

O diabo era o senhor todo poderoso do humor melancólico. Os médicos ampliando seu campo de ação, intervêm nos exames dos indivíduos sobre os quais pesavam suspeitas de feitiçaria e possessão, receitando sangrias abundantes visando extirpar a ação do demônio. Foi justamente na época da Reforma e Contra Reforma que a medicina e a Igreja se mostram mais próximas. Os médicos recorrendo às velhas autoridades médicas gregas contribuíram decisivamente para a caça de heréticos e feiticeiros que em última instância, seriam os culpados das grandes catástrofes que assolaram o mundo europeu.

Os caminhos percorridos por Héritier mostram, portanto, que a grande resistência da mitologia existente em torno do sangue persiste, principalmente, graças à necessidade que as civilizações têm de um bode expiatório, no caso aqueles que sofriam influência diabólica.

Somente o otimismo das Luzes foi capaz de convencer os médicos das infinitas possibilidades da medicina e de preencher com a razão e o progresso, a lacuna antes ocupada pelo sobrenatural. A mitologia alusiva ao sangue desapareceu, em parte, do discurso das elites mais esclarecidas, mas continuará presente no espírito popular durante muito tempo.

Revista de História - USP

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