sábado, 5 de junho de 2010

O estilo na história



Alexandra Fuchs de Araújo
Pós-Graduanda em História Social/USP


GAY, Peter - O estilo na história. São Paulo: Companhia das Letras, 1990.

Entre a arte e a ciência, a definição de história oscila, e apesar das opções pessoais, o debate teórico está sempre em aberto. Em O estilo na história Peter Gay dá uma contribuição ao tema. O historiador inovador de Freud: uma vida para nosso tempo utiliza-se da psicanálise e de técnicas de análise literária para defender, em quatro ensaios sobre quatro historiadores diferentes, a tese de que a dicotomia entre ciência e arte, no caso da história, é insustentável, e que estilo e verdade histórica são não apenas compatíveis mas ainda interdependentes.

Peter Gay introduz o tema com um comentário à famosa máxima de Buffon, o estilo é o próprio homem. Nem sempre verdadeira, no entanto homem e estilo estão intimamente ligados, o segundo fornecendo pistas não apenas para o homem, como também para a cultura. O estilo em sua acepção escrita permite algumas formas correlatas de expressão, como o estilo emocional do historiador, espelhado na pontuação, nos adjetivos preferidos, na escolha dos episódios ilustrativos, nas tônicas e epigramas. Há também o estilo profissional, refletido no tipo de material escolhido e na forma de usá-lo. Existe também um estilo de pensar, seus postulados mais básicos sobre a natureza do mundo. "Os estilos compõem uma rede de indícios que" apontam uns para os outros e, somados, para o homem - o historiador em atividade". (p. 24)

Quanto à segunda parte do epigrama de Buffon, o homem, este vive em três mundos ao mesmo tempo: sua vida privada, seu ofício e o domínio público de sua cultura. Estes mundos estão em constantes interações, e um estilo literário maduro é a síntese destes elementos, tanto que não pode ser aprendido ou copiado.

O primeiro a se sentar no divã de Peter Gay é Gibbon, "um cínico moderno entre políticos antigos", cínico no sentido de cético, sardônico. Sua obra-prima, The history of the decline and fall of the Roman Empire, apesar de ser de propriedade inequívoca de Gibbon (pelas palavras e expressões de sentido irônico, as frases longas, as interpolações informativas bem introduzidas), possui trechos bem próximos, quase cópias, de passagens dos Anais de Tácito. Não é um plágio. Esta dependência assombrosa de Gibbon ao modelo clássico tem explicações menos óbvias. Foi antes a maneira de pensar que de escrever que fez com que Gibbon visse em Tácito um modelo. Sua frieza, sua penetração, procurando sempre causas humanas para a história, escavando a realidade sob as aparências, aproximaram psicologicamente os dois historiadores, ambos extremamente pessimistas quanto à natureza humana. Gibbon, de acordo com o diagnóstico de Gay, escolheu Tácito entre todos os modelos possíveis porque este era antes de tudo um cético metodológico, apesar de seus posicionamentos políticos e suas crenças pessoais diferentes.

Peter Gay refaz com facilidade o caminho de Gibbon em direção ao estudo da Antiguidade, que exercia um grande fascínio no homem instruído da época. Gibbon não precisava ensinar seus leitores a amar a Antiguidade, pois já a amava. Apenas preenchia os contornos desse amor com seu talento narrativo absorvente. O traço principal de seu estilo, a ironia, é introduzida desde o primeiro parágrafo da obra. No terceiro capítulo, várias polaridades irônicas dão a entender que a primeira é a razão aparente, a segunda a força motriz. Mas esta ironia, revela Gay, ao mesmo tempo que desmascarava os outros, era excelente cobertura para a vida pessoal de Gibbon; foi sempre um estudioso, e há a suspeita de que tenha trocado com alívio o único amor de sua vida pelo casamento arranjado com a erudição e a filosofia.

O segundo historiador a ser submetido à análise psico-histórica de Gay é Ranke, "o crítico respeitoso". Uma fusão de dramaturgo, cientista e religioso, este autor oferece muito mais subsídios para um ensaio de maior amplitude. Em Gibbon, Peter Gay tinha que se ater mais ao estilo e à época do que ao homem; mas em Ranke, o homem ganha o mesmo peso que as demais dimensões do estilo.

Gay escolhe para caracterizar o Ranke dramaturgo a descrição do assassinato de Henrique IV na História da França. Nestas cenas, Ranke faz um verdadeiro teatro, lançando mão de múltiplos recursos da dramaturgia, presentes em todas as suas obras. Para ele, a forma, eterna e pura, é parte do trabalho do historiador, e ao lado da velocidade, do colorido, da variedade; elabora os clímaxes de suas obras de modo a, na hora necessária, não se perder com explicações, podendo se dedicar totalmente aos momentos históricos emocionantes. Mas além de dramaturgo era um cientista, mestre na pesquisa sistemática dos documentos, sua maior contribuição à história, não admitindo a história escrita a partir de outras histórias, ao contrário de seu colega Gibbon.

Peter Gay ainda encontra, a partir do conteúdo das obras de Ranke, um religioso conformista. Procurando analisar melhor os mecanismos desta religiosidade e deste conformismo, observa que são frutos ao mesmo tempo culturais e pessoais. Sua vida particular foi sempre uniforme, quase monótona. Nasceu numa cidadezinha da Turíngia, de uma família de sacerdotes luteranos. No entanto os estudos o interessavam mais que sacerdócio, e traçou sua vida pessoal em função deles, procurando ser amigo das pessoas certas, que pudessem lhe abrir as portas dos arquivos. Casou-se aos 48 anos, mas a família sempre representou apenas um lazer para o pesquisador.. Como bom protestante alemão, não via conflito entre ciência e religião, a qual era além de estímulo, uma chave para a história, já que esta, em grande ou pequena escala, constituía exemplo da obra divina. Contudo, o que movia a história era o poder político. As ligações entre poder e religião, a seu ver, podiam chegar a ser de identidade; mesmo os horrores da história podiam ser explicados como o mal a serviço do bem. Só importava a longa duração. Numa era de grandes potências, para um homem religioso sempre ligado ao poder, tais posturas eram perfeitamente explicáveis.

Já Macaulay, o "acrobata intelectual", tem um estilo que marca pela clareza e agilidade. Só que raramente procura entender os acontecimentos, julgando-os de acordo com seu ponto de vista. Por trás desta aparente subjetividade, porém, Peter Gay identifica um homem muito complexo, vivendo numa época de grande complexidade. Suas técnicas estilísticas variam de acordo com a ocasião. Numa carta, é íntimo e vivo; num discurso, prepotente e bíblico; na History of England, altamente flexível, pois quer uma história popular, quer conquistar. Mas sua concepção de história está presente nos sucessivos pares de antíteses utilizados: para ele, a história era uma sucessão de dilemas, uma enorme antítese.

Gay detecta sob tais técnicas dois sentimentos, a expansividade aparente e a ansiedade sublimada, o desejo de agradar. Quanto ao primeiro desses sentimentos, pode-se dizer que era naturalmente expansivo. Conseguiu a proeza de, no decorrer de um capítulo de sua obra, não avançar um ano sequer. Descrevia tudo, inclusive costumes populares. Seus críticos mais modernos vêem várias falhas em suas interpretações, mas Peter Gay recupera seu valor como um pioneiro no campo da história social.

Por outro lado havia o Macaulay ansioso, mais esquivo. Aí, o estudo do estilo atinge seu limite e Peter Gay é obrigado a procurar na biografia os indícios. Depara com o pai, figura autoritária, a pessoa a quem o historiador mais procura agradar, e o mais difícil, por suas crenças religiosas. Criança prodígio, Macaulay agradava com facilidade à mãe e às irmãs, mas jamais conseguira a aprovação do pai. Um outro componente de sua vida íntima era a paixão pelas irmãs mais novas, especialmente Hannah.

Gay não chega a concluir o papel do amor quase incestuoso de Macaulay pelas irmãs e passa a analisar outra característica do historiador inglês, a loquacidade. Falava muito, e pouco sabia ouvir, tendo provavelmente a impressão de que ninguém o ouvia também. Sentindo-se rejeitado emocionalmente, encontrava a volúpia apenas no reino do intelecto.

Há outra faceta de Macaulay importante para destrinçar seu estilo: o político liberal. Não divinizava nem Deus nem o progresso, contudo admitia que o progresso era melhor do que o que havia antes, sendo um whig radical, colocando defeitos em todos que, a seu ver atrapalhavam o carro da história, vendo o passado como um prólogo ao presente. Mas se assumia posições, por outro lado não abandonava a decência; em sua clareza excessiva, podia até não captar a visão trágica dos acontecimentos, ou querer ensinar antes que explicar. No entanto, sua clareza era sinal também de sua impaciência frente à hipocrisia e à mistificação. Ela foi expressão da energia expansiva que caracterizava seu tempo.

O último ensaio do livro é sobre Burckhardt, "o poeta da verdade". Escrito num período posterior, reflete um historiador mais maduro, o que atesta suas considerações sobre a escolha do objeto, o tratamento dado a ele e suas reflexões sobre a relação do historiador com a sociedade.

Neste ensaio, o ponto de partida para a análise é, ao contrário dos demais, não o estilo, mas o homem, demonstrando que o interesse pela psicologia em Peter Gay está mais desenvolvido. Descreve Burdkhardt como um homem de grande cultura, humanista infatigável, alimentando um respeito constante pelo estilo, celibatário convicto, ligado ao mundo rural até por opção, mas não isento de tensões, como todos os seres humanos. Admira o estilo de Ranke, mas acha que sua relação com a verdade não é de todo limpa.

Burckhardt define sua obra-prima Die Kultur der Renaissance in Italien como um ensaio. Na época o estudo do Renascimento era um tema novo, e o autor se aproveita para guiar o leitor, como um cicerone, pelos diversos acontecimentos e explicações. Ele simplesmente fala, num diálogo constante com o leitor. Entremeiando suas conclusões com a análise do estilo de Burckhardt, Peter Gay coloca que o estilo é uma ponte para o conteúdo, e que se um historiador tão sério como Burckhardt iniciou sua maior obra de modo tão extravagante quanto com uma anedota foi tão somente porque a Renascença era um período extravagante do ponto de vista do autor, que recria o homem renascentista como um verdadeiro super-homem, estendendo-se prazerozamente nas descrições dos condottieri, o que indica que escrever a história da Renascença era viver vicariamente o que não tinha coragem de enfrentar na realidade. Burckhardt era feliz em ser um condottieri, ainda que só em espírito.

O estudioso também se considerava um poeta, na medida em que a poesia e a história se aproximavam pela Anschauung, ou conhecimento intuitivo direto, que deriva da contemplação direta da realidade; no caso de Burckhardt, da realidade visual. Daí o estilo e o conteúdo em Burckhardt estarem tão intimamente ligados. O passado é dramático, rico, diferenciado, e a tarefa do historiador é narrar a história sem artifícios, com clareza, de modo acurado e pessoal, tornando-o mais acessível.

Ao fim do quarto ensaio, Peter Gay se encontra em liberdade de concluir que a história é arte em boa parte do tempo, por constituir um ramo da literatura. Mas é mais do que arte, já que a verdade é sua finalidade essencial, não um instrumento opcional de ficção como o é para romancistas e poetas.

O estudo dos estilos aponta para duas posições contraditórias. Por um lado, como Gay detectou, mostra as limitações de cada historiador. Os fatos nunca são neutros, e cada historiador quer poder influir um pouco no presente; por isso suas indagações estão sempre voltadas para alguma finalidade concreta. Mas mesmo a empatia tem seu componente objetivo, adverte Peter Gay. Assim estes ensaios também revelam a capacidade destes historiadores de verem realidades históricas inacessíveis a outros. Para exemplificar, há o caso de Theodor Mommsen, único historiador a ganhar o prêmio Nobel de Literatura. Poeta e político, ele escreveu sua história de Roma dispondo de vários anacronismos. Embora possa se duvidar de sua pureza de intenções de colocar Junkers e ruralistas no palco romano, dado seu liberalismo radical foi o primeiro a vislumbrar a luta partidária romana, captando a política romana com uma objetividade que não estava ao alcance dos historiadores da época.

Enfim, não há nada que impeça o historiador de escrever de maneira agradável, menos árida. Não é isto que pode expulsar a história da família das ciências, desde que a narrativa seja verdadeira. "O estilo é a arte da ciência do historiador" (p. 196), Peter Gay finaliza, unindo arte e ciência na história. E a prova maior de que suas posições são perfeitamente viáveis é sua própria obra, uma vez que consegue, numa narrativa fluida, realizar um trabalho científico inovador, cuja base é o uso da psicanálise como ciência auxiliar de forma séria e profunda, além dos clichês.

Revista de História - USP

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