sábado, 5 de junho de 2010

Memory and modernity - Popular Culture in Latin America



José Norberto Soares
Universidade de Londres

ROWE, William e SCHELLING, Vivian. Memory and modernity - Popular Culture in Latin America. Editado por Verso, Londres e Nova Iorque, 1991, 243pp.

Entre os muitos trabalhos publicados a respeito da América Latina nos últimos 2 ou 3 anos, o livro de Rowe e Schelling particulariza-se pela capacidade de levantar questões concernentes à produção e apropriação da cultura popular durante a evolução política e econômica resultante da homogeneização inserida no ideário nacionalizante, como também formas de resistência a este mesmo processo.

Esta obra não se pretende específica. Ao contrário, é um livro abrangente - passa pela 'guerra do deserto', na Argentina de 1879, pela revolução mexicana de 1910, por Getúlio, Peron e Haya de la Torre, pela música andina, Super Barrio, as mães da Praça de Maio, samba, cordel e telenovelas; já nos 'agradecimentos', encontram-se os nomes de Octavio Ianni, Jan Rocha (correspondente do diário inglês "The Guardian" no Brasil) e Padre Ticão.

Memory and Modernity trabalha com temas, sendo o mais importante o da inserção da modernidade nos meios de produção e reprodução cultural latino-americanos. O livro parte da inviabilidade da idéia de uma acumulação contínua de tradições populares; pelo contrário, estas tradições obedeceriam a formas de acúmulo e formação muito particulares, sendo melhor tentar caracterizá-las através de seus cortes e continuidades. O termo 'modernização', quando aplicado à América Latina, tem um caráter muito mais abrangente que o tecnológico: ele está ligado à formação do Estado-nação, o que o particulariza, tornando-o distinto daquele aceito para a Europa, por exemplo. Aceitos os princípios da descontinuidade evolutiva e da particularidade, a cultura popular torna-se "um veículo privilegiado, através do qual este caleidoscópio de múltiplas realidades, rural e urbana, pré-moderna e moderna, local e não-local podem ser satisfatoriamente estudadas" (p. 45).

Os encontros entre formas culturais pré-capitalistas e modernidade geraram a necessidade de definição dos limites entre aculturação e resistência cultural, visto a remarcável persistência que as chamadas 'crenças populares' têm mostrado. No caso da América Latina, citando Néstor García Canclini em Las culturas populares en el capitalismo, "muito embora o desenvolvimento capitalista tenda a absorver e estandardizar as formas de produção material e cultural que o precederam, a subordinação de comunidades tradicionais não pode ser total devido à inabilidade do capitalismo industrial de fornecer trabalho, educação e assistência médica para todos, como também à resistência de diferentes grupos étnicos na defesa de suas identidades" (p. 73).

O Estado, no seu processo de subordinação à 'ordem econômica mundial' é um desarticulador da rede de relações locais e um antecedente necessário ao processo de desarticulação cultural provocada pela média, ao estabelecer, nas últimas décadas do século XIX, o mercado nacional único, a sua própria consolidação (usualmente pela violência) e o estabelecimento das culturas nacionais unificadas.

Os autores partem do princípio de que a idéia de folclore na América Latina está ligada à de "identidade nacional" e, como tal, tem sido usada pelo Estado para produzir uma determinada "unidade nacional" e que o Estado, na formulação ideológica dessa pretensa "unidade", ignora ou destrói as características que denotam a heterogeneidade própria aos grupos sociais, ou mesmo as diferentes concepções de 'nação' encontradas em diversos grupos e regiões. Eles analisam uma variada gama de fenômenos concernentes à inclusão dos vários aspectos da cultura popular no ideário nacional patrocinado pelo Estado até o uso feito pelos meios de comunicação de massa desta mesma cultura. Isto se dá pela incapacidade desta 'cultura nacional' de dar força interpretativa à vida das pessoas, impedindo assim a sua transformação em experiência pessoal e grupai, papel que continua a ser desempenhado por elementos e produtos do folclore.

Massificação e hegemonia, para serem alcançadas, precisam incorporar determinadas formas culturais e, como lembram os autores, cultura não é simplesmente derivada da relação entre classes, mas possui um papel primordial no desafiar ou manter relações sociais estabelecidas. Assim, históricamente, a unificação do mercado cultural, fator preponderante no estabelecimento da indústria de cultura nacional, só alcançou sucesso ao incorporar formar de memória popular já em processo de massificação. Basta lembrar o uso feito pelo populismo da indústria cinematográfica mexicana ou do samba brasileiro nas décadas de 1930 e 1940.

Os autores argüem que 'contra-hegemônica' seria uma boa expressão para o caráter de desafio que as forças de produção cultural não submetidas ao crivo oficializador possuem, o que enfatizaria seu caráter de alternativa à estrutura de poder estabelecida. Neste aspecto é enfatizado o papel das mulheres como preservadoras de tradições, visto seu papel como agente estabilizador e organizador da vida doméstica e sua atuação atenuante em casos de doenças, mortes ou acidentes. Mulheres adotaram formas religiosas africanas ou nativas e mesmo inventaram novas práticas rituais, criando um espaço para a transmissão do 'maravilhoso' através de práticas cotidianas. Nessa descontextualizaçáo, novas práticas deram novos sentidos a velhas tradições, que se modificaram mas não perderam seu caráter interpretativo original.

No contexto urbano e contemporâneo são descritos exemplos de organização e resistência que, dentro de suas especificidades e objetivos, atingem alto nível de organização como o de Vila Aparecida, em São Paulo, e Villa El Salvador, em Lima. Esta organização não é salientada na maioria dos filmes e documentários europeus (ou locais) a respeito da América Latina urbana, os quais tendem, na feliz expressão dos autores, a um "voyeurismo da miséria" (p. 118).

No que diz respeito à violência comum a que estão submetidos e às formas particulares de resistência, e continuidade das expressões culturais populares, cabe à história cultural restaurar as multiplicidades e, ao mesmo tempo, expôr como foram elas reduzidas. Em lugar de tentar colocar antigas tradições culturais como parte da 'identidade' de um indivíduo ou de um grupo, o historiador, no seu ofício de "historicizar a memória" e suas(s) continuidades(s), deve sempre questionar: memória de quem, preservada de que maneira e sob quais circunstâncias? (p. 227).

Nesta luta pela multiplicidade de fontes, de narrações e eventos, a tarefa do historiador é multifacetar, não permitir o crescimento da tendência homogeneizante própria das historiografias oficiais e tradicionais, como também do tratamento 'jornalístico' dado aos fatos e processos históricos pela média ou pela indústria cultural, com a conseqüente hibridização e desterritorialização. São analisadas no livro, as obras de Luis Rafael Sánchez, La importancia de llamarse Daniel Santos, México, 1989, e de Elena Poniatowska, Hasta no verte Jesús mío, México, 1969. Intrigantes e inovadoras, estas obras são deixadas como exemplo das possibilidades de estudo e compreensão do que nos envolve na Nuestra America.

Memory and Modernity é destinado primeiramente ao mercado anglo-americano, assim algumas das suas páginas podem parecer redundantes para quem vive mergulhado na realidade latino americana. Mas, a perspectiva proporcionada é instigante, as informações são variadas e ricas, sendo que os autores utilizam não somente textos literários e relatos históricos regionais mas, o que é importante, extratos e opiniões de críticos e ensaistas latino-americanos contemporâneos. Aí está uma boa ocasião para perceber o Brasil e sua relação orgânica com o subcontinente, parte de sua grandeza, parte de sua tragédia. Afinal, o lugar do Brasil na América Latina não pode ser visto apenas como um mero acaso geográfico.

Revista de História - USP

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