sábado, 5 de junho de 2010

Eternamente em berço esplêndido: a fundação de uma literatura nacional



Lucia Maria Paschoal Guimarães
Professora do Departamento de História - UERJ


ROUANET, Maria Helena. Eternamente em berço esplêndido: a fundação de uma literatura nacional. São Paulo: Siciliano, 1991. 320 p.

Reconhecer, tal qual autores clássicos, a importância fundamental de Ferdinand Denis na gênese da literatura brasileira já não é o bastante. É preciso analisar e questionar esse processo refletindo, sobretudo, acerca dos fatores que teriam comtribuído para que o cultuado viajante francês viesse a ocupar uma posição ímpar nos nossos estudos literários. Tais premissas constituem o fio condutor do livro de Maria Helena Rouanet Eternamente em berço esplêndido: a fundação de uma literatura nacional. A obra, em sua versão original, foi apresentada na PUC/RJ, em outubro de 1989, como tese de doutoramento, sob a orientação do Prof. Luiz Costa Lima.

Valendo-se de um expressivo conjunto de documentos inéditos, parimpados cuidadosamente nos arquivos da Biblioteca Sainte-Genevihve, Rouanet expõe seus argumentos através de um artifício metodológico: tece sua trama sob a forma de um "jogo". De um lado a autora dispõe um conjunto de expectativas e, de outro, procura sua confirmação ou infirmação, ao nível das fontes pesquisadas. Os lances dessa "contenda" se desenvolvem ao ritmo do movimento das viagens realizadas entre a Europa e o Novo Mundo, uma prática que se intensificou entre o final do século XVIII e meados do XIX.

O "jogo" é aberto na própria introdução do livro, intitulada "O que pode render uma cadeira cativa". Ao observar que um nome tão consagrado na literatura brasileira tem uma biografia tão curta em seu próprio país, apesar de ter deixado uma obra extensa, a pesquisadora revela a não confirmação de sua primeira expectativa: "(...) Seja como for, é impossível deixar de constatar que a 'fortuna crítica' de Ferdinand Denis, tanto no Brasil, quanto em Portugal, foi grande demais para um simples funcionário público...". Convém aqui lembrar que o maior 'amigo' da intelectualidade brasileira na França, no decorrer do século passado, não foi nenhum expoente no campo das letras em sua terra natal. Exerceu os cargos de terceiro escalão, tendo sido Conservador e Administrador da Biblioteca de Sainte-Geneviève, em Paris.

Maria Helena Rouanet divide o seu livro em cinco capítulos, No primeiro - "Tecendo um contexto: a representação das relações Europa-Novo Mundo na passagem do século XVIII para o século XIX - como o título indica, é esboçado o pano-de-fundo do cenário onde o "jogo de expectativas" se desenrolará, enfatizando-se a função pedagógica das viagens na época oitocentista. A seguir, no Capítulo 2 - "O Mundo de realidades que se bifurcam" - professora apresenta o ponto de vista europeu acerca dos limites e possibilidades da civilização americana, redefinindo-a através de uma nova divisão: a América da ciência, simbolizada pelos Estados Unidos e a América da literatura, identificada com a parte latina do continente necessitando, portanto, das "luzes" européias. Se a primeira representa a "self-made nation", a segunda se destaca pela sua atmosfera de mistério e por sua paisagem exótica e tropical. O Brasil, apesar de emancipado de Portugal, continuava integrando esta última categoria, "tendo o futuro como meta e a Europa como paradigma".

Nos dois capítulos introdutórios, que ocupam quase a metade do volume - 216 páginas - a autora, embora bem intencionada, termina pecando pelo excesso, afastando-se do seu objeto. Para explicar o panorama intelectual onde se insere a atuação de Ferdinand Denis, ela remonta aos fins do século XVII. No que se refere aos estrangeiros que aqui estiveram, a remissão chega ao século XVI, com transcrições de textos de André Thévet e Jean de Léry.

Maria Helena retoma o fio da meada e volta ao "jogo" ao analisar e redefinir o papel desempenhado pelos viajantes, categoria na qual Denis se insere. Se, por um lado, eles serviram para confirmar ou alterar os pressupostos de seus conterrâneos sobre o continente americano, por outro, os habitantes do Novo Mundo também estabeleceram expectativas quanto a esses europeus. Isto ocorreu principalmente no que se refere à proposta e transmissão de valores padrões de comportamento, etc.

Visto por este prisma, não fica difícil verificar, conforme se observa no Capítulo 3 - "A hora e a vez do Brasil brasileiro" - de que modo o administrador da Biblioteca Sainte Geneviève conceberia a função de brasilianista do século XIX e como terminaria por ocupar uma posição ímpar o na gênese da nossa literatura. Através da valorização do exótico, Ferdinand Denis ofereceu à intelectualidade do Estado recém independente uma alternativa capaz de dar à sua produção literária um caráter nacional. Ou, como questiona Luiz Costa Lima, de que outro modo seria possível articular-se "a nossa vontade de mostrar nossa singularidade, com a de ter internalizada a opinião européia sobre qual (deveria ser) nosso justo proceder?" Assim sendo, a acolhida e a ressonância dos trabalhos de Denis no Brasil não se constituem num feliz acaso.

A partir de um cotejo minucioso de duas das suas obras "Scènes de la nature sous les tropiques et de leur influence sur la poésie" (1824) e o "Résumé de l'histoire littéraire du Portugal suivi du Résumé de l'histoire littéraire du Brésil" (1826), Maria Helena Rouanet demonstra no Capítulo 4 - "Percursos e percalços de um viajante" - como o cultuado viajante teria construído sua "cadeira cativa", no panorama das letras de um país recém separado da metrópole, mas que necessitava ainda das luzes européias para lhe indicar que rumos deveria seguir. Uma outra espécie de colonialismo...

Nesse sentido , Denis, atuando doutrinariamente, teve o mérito de organizar "um programa nacional literário", aliando as "necessidades poéticas às necessidades políticas" do chamado quinto império. Tal "receita" teria satisfeito as expectativas da elite letrada brasileira, carente de um modelo a seguir.

No quinto e último capítulo - "Pátria amada. Pátrio poder" - são estudadas as repercussões e as influências da obra de Ferdinand Denis, junto aos nossos letrados, isto é, com a "intelligentzia" da época se desincumbiu da "missão" que lhe fora confiada pelo erudito amigo francês... É oportuno lembrar que tal "missão" implicava num outro lance do "jogo". Afinal, o que se escrevia aqui, mais cedo ou mais tarde, haveria de passar pelo crivo da maior competência em assuntos brasileiros da época.

A Autora conclui, por conseguinte, que o processo de concepção da literatura nacional foi marcado pela ausência sistemática de reflexão crítica, o que, sem dúvida se constitui numa perda. Nossos escritores, diante da realidade de um país mestiço e cheio de contradições, ao tomarem o caminho do exótico esquivaram-se de questionamentos mais profundos. Abrigaram-se no porto seguro das (...) verdades indiscutíveis, promulgadas por autoridades reconhecidas...", como é o caso de Denis.

Revista de História - USP

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