sábado, 5 de junho de 2010

Estética da recepção e história da literatura


Joaci Pereira Furtado
Deparlamento de História/USP


ZILBERMAN, Regina. Estética da recepção e história da literatura. São Paulo, Ática, 1989. 124 p. (Série Fundamentos, 41).
Este livro pode causar-lhe a impressão de ter constatado algo óbvio, após passar por um suado contorcionismo conceituai. Você provavelmente se irritará, certo de que a autora e seus estetas da recepção, além de não terem atingido o nirvana da complicação para enfim simplificarem as coisas, ainda complicam o que é simples. Trata-se de 124 páginas discorrendo sobre uma teoria segundo a qual - imagine! - um romance ou poema è passível de várias interpretações - todas produto de leitores igualmente mutáveis.
Essa aparente banalidade pode adquirir contornos graves, se olharmos com menos preconceito para nossos vizinhos das letras e mais humildade para nossas mazelas epistemológicas. Interpretar é algo vital para o historiador, continuamente envolvido com a exegese de documentos e bibliografias. E se não bastasse essa menção, caberia assinalar como a leitura assume um papel importante na história da humanidade ao lembrarmos Hegel lido por Marx, Marx lido por Mão, Mão lido pelo Sendero Luminoso - ou ainda a Bíblia sob os olhos de S. Tomás de Aquino, Martinho Lutero e Leonardo Boff.
Se hoje está claro que não há como alcançarmos o significado do texto - até porque ele não existe -, não era assim que se pensava até o princípio do século. E a turbulenta relação entre o que está escrito e o leitor vem sendo objeto de reflexões muito complexas, em nada condizentes com a facilidade que a princípio o ato de ler nos sugere. Em termos - diríamos - bastante simples, esta é a principal preocupação das idéias analisadas na obra em questão.
Não há como ignorar esse debate, travado nas estratosferas da teoria literária, se ainda desejamos seqüestrar a literatura para a dissecação histórica. E claro que, se nos ativermos à "sociologia histórica da leitura" praticada por Robert Darnton e Roger Chartier, entre outros, mais preocupada com a circulação e consumo de livros do que necessariamente com a história interpretativa destes, a prioridade é responder por que se lê este e não aquele autor - ou ainda qual o lugar da literatura na sociedade (quem lê e escreve o quê? onde?)1. Mas a estética da recepção será muito útil ao historiador se ele preferir estudar como uma determinada obra foi interpretada ao longo do tempo. Ela pode esclarecer a dialética entre a "ortodoxia do texto" imposta por escritores e editores e a "irredutível liberdade dos leitores"2.
Regina Zilberman oferece um guia para quem deseja iniciar-se nessa escola que não dissocia experiência estética e hermenêutica literária. Lição muito proveitosa aos historiadores, que, na pressa da caça à "carne humana" de que fala Marc Bloch, freqüentemente atropelam a dimensão artística da literatura, que preside tanto o ato da sua produção quanto o da sua interpretação. Se pretendemos colocar esta última na moldura da história, necessitamos antes compreender as possibilidades que poetas e romancistas expõem à consciência imaginante do leitor. Percebidas as sutilezas da obra, seus "vazios" textuais, reconstituídas as perguntas às quais originalmente ela respondia, cabe ao historiador resgatar e analisar os significados atribuídos ao texto, sempre de olho na relação dialógica entre este e o leitor:
De um lado, situa-se o efeito, condicionado pela obra que transmite orientações prévias e, de certo modo, imutáveis, porque o texto conserva-se o mesmo, ao leitor; de outro, a recepção, condicionada pelo leitor, que contribui com suas vivências pessoais e códigos coletivos para dar vida à obra e dialogar com ela. Sobre esta base, de mão dupla, acontece a fusão de horizontes, equivalente à concretização do sentido. (p.65)
E para aplacar a ânsia talvez irrefreável de ver tudo isso aplicado a algo que nos seja mais familiar, Zilberman encerra o livro com "Helena: um caso de leitura" (p. 74-98). Resgatando a recepção do romance de Machado de Assis, a autora consegue espantar a resistência ou as dificuldades do leitor-historiador que não se deixou vencer pelas 73 páginas anteriores. A própria autora avisa que, ao se debruçar sobre essa obra, manteve-se "dentro dos limites da metodologia sugerida por H. R. Jauss [...]" (p. 99), provando que a estética da recepção não é privilégio de quem só filosofa em alemão. Convite sedutor, para os que acreditam que, no caso de amor mal resolvido entre literatura e história, nem tudo está perdido.

1 DARNTON, Robert. O beijo de Lamourette; mídia, cultura e revolução. Trad. D. Bottmann. São Paulo, Companhia das Letras, 1990. p. 156-9.

2 CHARTIER, Roger. A história cultural; entre práticas e representações. Trad. M. M. Galhardo. Lisboa, Difel, 1990. p. 123-4.

Revista de História - USP

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