sábado, 5 de junho de 2010

Slave Life in Rio ele Janeiro, 1808-1850



Maria Cristina Cortez Wissenbach
Mestra em História - FFLCH/USF

KARASCH, Mary C. Slave Life in Rio ele Janeiro, 1808-1850. Princeton: Princeton University Press, 1987. 422 páginas

O trabalho de Mary Karasch, Slave Life in Rio de Janeiro - é um dos levantamentos mais completos acerca da escravidão na corte, no movimentado período histórico que separa a vinda da família real (1808) da proibição formal do tráfico africano (1850). Seu estudo, ao lado das análises de Katia Mattoso e João José Reis sobre Salvador, as de Maria Odila Leite da Silva Dias sobre a sociedade paulistana do mesmo período e a de Leila Algranti também sobre a escravidão no Rio de Janeiro, compõe um conjunto de análises significativas dedicadas ao tema da escravidão urbana, tema por muito tempo desconsiderado historiograficamente diante da atração exercida pela problemática da organização do trabalho escravo nas grandes propriedades agro-exportadoras brasileiras.

Publicada em 1987 pela Universidade de Princeton, a obra de Karasch, embora destinada ao público leitor norte-americano - pretendendo uma revisão das visões sobre a escravidão carioca e sobre a cultura escrava urbana e respondendo a questões de certa forma particulares à historiografia norte-americana -, apresenta contribuições valiosas aos estudiosos da escravidão, constituindo uma obra guia sobre as condições de vida e de trabalho dos escravos, no florescente mercado do Rio de Janeiro, na primeira metade do século. E também sua preocupação demonstrar a viabilidade de uma história da escravidão assentada em fontes diversificadas, objetivo plenamente atingido uma vez que articula uma base documental extensa: relatos de viajantes estrangeiros, documentação cartorial e instituições da administração pública. É essa base empírica extremamente variada que sustenta as avaliações quantitativas, que acompanham muitos dos assuntos tratados e n reconstituição minuciosa da vida escrava na cidade.

Ligada aos especialistas do tráfico africano (entre outros Philip D. Curtin) e aos estudos africanistas, Mary Karasch dedica-se inicialmente a desenhar o perfil demográfico e a composição racial dos negros escravos. Numa população que atinge seu máximo neste período - em torno de 85.000 escravos, em 1845 - a autora evidencia a predominância de africanos, muitos deles recém-trazidos pelo tráfico ainda vigoroso, e que, uma vez comercializados, passam a compor as diversas nações africanas do Rio de Janeiro. Diferentemente do que ocorria na Bahia do mesmo período, neste conjunto a autora assinala o pseudônimo de cativos oriundos da região centro-oeste da África - congos, angolas, cabindas e monjolos - ao lado de contingentes menores provenientes das demais regiões. O exame dessas etnias, em suas inflexões proporcionais, constitue ponto básico para suas reflexões posteriores, sobretudo no que diz respeito à organização sócio-cultural dos afro-cariocas. Já entre a população crioula ou entre os provenientes do tráfico interprovincial, verifica a forte transferência de escravos baianos para a corte, sobretudo após a grande revolta de 1835 e as primeiras proibições do comércio africano, trazendo consigo as heranças da população dos minas islamizados e as tradições dos nagôs, yorubas, gêges.

A partir da elucidação das raízes africanas e da movimentação do tráfico, a autora estrutura os demais capítulos, tendo como referenciais os marcos da vida de um africano ou de um crioulo recém-chegados e comercializados no mercado do Valongo: a inserção dos novos cativos à sociedade carioca e a série de constrangimentos, que lhes eram inflingidos: nascimento e morte, epidemias, doenças, trabalho escravo, vida cultural e redes associativas, passando em seguida a tratar do temas da fuga, da rebelião e da problemática da conquista da carta de alforria. Nessa trajetória, relativamente tradicional em termos da história social, Karasch desenvolve os diferentes temas de maneira profunda, detalhando cada passo de sua análise e reconstituindo minuciosamente as condições de vida e de trabalho escravo, os diferentes veios sociabilidade dos afro-cariocas no contexto da escravidão.

Entre os temas percorridos, é dispensada uma atenção especial à questão do tratamento dado aos escravos, refletindo uma preocupação historiográfica sensível aos estudos comparativos da instituição nas Américas. Na obra de Karasch, tal discussão resultou numa minuciosa análise demográfica, avaliando as taxas de mortalidade e natalidade da população escrava e um interessante estudo de epidemiologia histórica. Através de fontes médicas e hospitalares (sobretudo os registros da Santa Casa de Misericórdia e as teses da Faculdade de Medicina), descortina-se uma cidade particularmente insalubre, onde se movimentavam escravos mal vestidos e desnutridos, morando em exíguos espaços a eles destinados nos sobrados ou nas zonas mais infestadas, trabalhando sob condições ainda mais precárias, cidade na qual proliferavam uma série de doenças diretamente relacionadas a tais condições. Alastrando-se rapidamente em função das atividades portuárias, da alta densidade populacional da côrte neste período e das precárias condições sanitárias, as epidemias atingiam principalmente os ainda não totalmente assimilados, as mulheres e as crianças, fazendo com que as taxas de mortalidade fossem particularmente altas entre estes setores, impedindo a reprodução da mão-de-obra escrava segundo as necessidades citadinas. A partir dessas questões, não só a benevolência senhorial é desmascarada, como também fica esclarecido indiretamente o vigor do tráfico, alimentando e repondo, a preços baixos, uma população escrava freqüentemente dizimada.

O mercado de trabalho movimenta-se a partir da utilização do trabalho escravo. No capítulo "Functions of slaves", Mary Karasch apresenta o rol de ocupações desempenhadas pelos escravos, nas lides rotineiras dos domésticos e dos trabalhadores do porto, na movimentação dos habitantes das cercanias rurais, no prestimoso trabalho de hábeis artesãos. No contexto desta organização citadina pouco esclarece, no entanto, acerca do funcionamento do sistema de jornal, ou das distinções entre as modalidades de ganho e de aluguel, sobretudo em suas repercussões na vida de escravos e de senhores, temática de certa forma central nos estudos de historiadores brasileiros.

Em Slave Life no Rio de Janeiro, a interpretação histórica atinge seu ponto alto nas questões relacionadas à vida religiosa dos escravos onde, de maneira pioneira, tal organização é articulada às origens étnicas da população africana. Karasch analisa inicialmente as ambigüidades que cercavam a conversão dos africanos à religião católica: embora o batismo fosse prática necessária, aos escravos se mostrava vedada a participação nos demais sacramentos ou rituais católicos. Acima de tudo, senhores e autoridades eclesiásticas consideravam esses indivíduos ignorantes pouco aptos para se tornarem bons cristãos. Com isso, a proliferação das irmandades religiosas dos homens pardos e negros, seguindo de perto a diversidade étnica e organizadas principalmente em torno dos santos negros, cumpria a função de preencher os espaços criados pela discriminação e a de alimentar uma religião em muitos sentidos particular. A idolatria das imagens, o fervor na devoção à Virgem, as cerimônias fúnebres e as festas dedicadas aos seus santos demonstram, na perspectiva de Karasch, a conversão das flexíveis tradições religiosas da África Central em expressões singulares. Elude, na condução dessa análise, os conceitos de sincretismo, ou de mera aculturação, transformando os negros em poderosos agentes na construção de uma religião própria inscrita tanto nas práticas das irmandades católicas quanto na Umbanda.

Era através das confrarias religiosas, dos grupos de lazer e de danças, das parentelas extensivas de compadres e malungos e das lealdades étnicas, que os escravos construíam uma sociabilidade capaz de fazer face à escravidão, quase sempre pressentida com horror pelos senhores. Junto às autoridades responsáveis pelo controle da cidade, temiam-se a reprodução das revoltas urbanas ocorridas em Salvador e a difusão do haitianismo e diante do predomínio dos contingentes escravizados e negros, escondiam-se as cifras populacionais que revelavam tal situação. Nesse ambiente social ameaçador, em seu capítulo sobre a resistência escrava, analisa as fugas, as facilidades oferecidas pela cidade e a proliferação de quilombos, nos morros do Castelo, no de Santa Thereza, nos arredores da cidade.

Acreditando ser quase impossível a reconstituição da mentalidade escrava, fazendo suas as palavras de Kenneth Stamp, quando afirma que só se pode inferir os sentimentos, as aspirações e os atos dos escravos, Karasch reproduz parcialmente o mito da ausência de fontes para o estudo da escravidão brasileira.

Circunstancialmente, ressente-se também de sua condição de estudiosa estrangeira, quando lhe escapam algumas sutilezas do domínio senhorial e, sobretudo, as improvisações articuladas pelos escravos e forros para contornar o poder instituído, ou mesmo quando, equivocadamente, localiza a fábrica de ferro de Ipanema nas cercanias da cidade. Mas, tais observações são, no entanto, meros detalhes. O trabalho de Mary Karasch, esclarecedor e cuidadoso, constitue obra essencial para o estudo da escravidão urbana, oferecendo temas instigantes para a reflexão histórica na reconstituição da vida escrava nas cidades brasileiras.

Revista de História - USP

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