sábado, 5 de junho de 2010

O Campo e a Cidade na história e na literatura



Ronald Raminelli
Mestre em História Social, DH -FFLCH/USP


WILLIAMS, Raymond. O Campo e a Cidade na história e na literatura. Trad. por Paulo Henrique de Britto. São Paulo: Cia das Letras, 1989, 439p.

Raymond Williams era um camponês. Observador de olmos e pilriteiros, dos homens e mulheres voltando para casa depois da poda, do trator deixando os rastros na lama, do barro e da argila. Raymond Williams era um intelectual. Conhecedor de Virgílio e de Joyce; de Cambridge, de New York, de Paris; da vida urbana, do progresso e das luzes. Era, enfim, um homem cuja experiência estava atrelada tanto ao campo quanto à cidade. O primeiro como matriz, berço, seio materno; enquanto a Cidade é o desenvolvimento, a instrução suscita a especulação intelectual. Deste modo, também O Campo e a Cidade é marcado pela ambigüidade de dois ambientes, a princípio, tão díspares e antagônicos, mas igualmente complementares e testemunhos de um mesmo processo histórico. A relação campo-cidade, então, não era um mero problema objetivo ou um tema histórico de relevância; tornou-se parte do cotidiano do autor, que viveu esta aparente contradição e fez dela um argumento extraordinário para iniciar uma pesquisa. Portanto, os parâmetros de sua análise se originaram ao longo dos anos de sua vida, em percursos entre o campo e a cidade.

Depois de dedicar um capítulo ao seu engajamento e opções teóricas, o crítico literário preocupou-se em elucidar a perspectiva destinada a conduzir o estudo. E assim, nos conta que recebera, há anos atrás, um livro para resenhar, no qual havia alusões às relações entre tempos remotos e formas de vida campestre. A correlação entre campo e passado, por conseguinte, suscitou no estudioso o interesse em observar, mais atentamente, como os intelectuais concebiam a vida rural. E estava assim delimitado o tema da pesquisa. Para isto, Williams recuou ao passado e percebeu como escritores e poetas ingleses representaram o campo. A preocupação da análise era, antes de tudo, com o enfoque histórico, em detrimento da veracidade das narrativas. Em suma, a intenção do autor é sobretudo realizar um estudo de ideologia e verificar como a velha Inglaterra campestre era concebida e retratada ao longo dos séculos.

Williams, ao retroceder no tempo, deparou-se com o campo e o passado representados como espaços edênicos; contudo, uma periodização dos testemunhos leva o estudioso a concluir que o campo paradisíaco se encontra, cada vez mais, num passado distante. Cobbett, por exemplo, viveu seus últimos anos entre as décadas de 1820 e 1830 e relembra os tempos felizes e quase edênicos da infância na Inglaterra do final do século XVIII. Goldsmith, por sua vez, por ter nascido antes de Cobbet, retrocede até a década de 1750. Neste sentido, caso Williams entrasse, novamente, na "máquina do tempo" e fosse passando por sucessivos registros sobre o campo, perceberia que a idealização desses homens se encontra, progressivamente, recuada no tempo, até chegar, quem sabe, a Adão e Eva, antes da maçã mítica.

A organização da pesquisa segue, então, o método da economia política elaborado por Karl Marx. Esse método prima pela delimitação de um tema no presente e pela observação do mesmo fenômeno em direção ao passado. Detectada a gênese do objeto de análise, o estudioso deve retornar, progressivamente, ao presente, agora conhecendo suas mais diversas implicações e conformações. Raymond Williams, após a demarcação do objeto de pesquisa, trilha todas essas etapas, partindo do bucolismo helenista para entender como, no Renascimento, a absorção do tema foi realizada de maneira edulcorada. Neste período, o campo representou o refúgio, - alternativa inocente à ambição e às guerras - e, principalmente, a possibilidade de abundância proporcionada pelos senhores feudais. Nos séculos seguintes, a tendência foi de valorizar o caráter empreendedor do homem sobre o campo, tornando-o um produtor de riquezas. A transformação do espaço rural e a crescente pauperização do camponês, todavia, ocasionaram o surgimento do anti-bucolismo. Essa tendência cumpriu o papel de desmascarar o bucolismo e a imagem paradisíaca do campo, ressaltando a exploração e a miséria do homem rural e denunciando, em contrapartida, a riqueza e o luxo dos ricos proprietários de fazendas.

O predomínio do campo na literatura é notável através dos séculos. Porém, o século XIX tornou-se o tempo da cidade, das massas, da turba. Dickens foi seu melhor tradutor. Em Hard Times, o escritor contemplou Coketown e a tomou como "triunfo do real", pois nela tudo era funcional, eficiente e padronizado. Em contrapartida, a homogeneidade cinza da cidade se confunde com a morbidez e a inércia dos seus habitantes; estes, por sua vez, são todos, parecidos entre si e todos componentes da sociedade industrial.

Não foi apenas a cidade que desempenhou o papel de protagonista, ou de pano de fundo, na literatura do período. Entre os séculos XIX e XX, o campo se transformaria, novamente, em mãe, em seio materno e na metáfora rural-sexual. A reação com a Terra e a fusão entre aspectos agrários e sexuais tornaram-se modalidade dominante do período. Alguns romances possuem "a base emocional para a figura do amante camponês e rude, ou paixões profundas dessa vida telúrica" (pp 338-9). Enquanto a cidade seria, cada vez mais, associada ao desenvolvimento tecnológico, à ficção científica, como, também, ao isolamento e mobilidade dos indivíduos.

A análise de Raymond Williams, finalmente, retorna ao presente e à atuação do capitalismo sobre a relação campo-cidade. Destacando, sobretudo, a participação fundamental do campo na gênese desse modo-de-produção. Pois, apesar da cidade ser a representação a mais explicita do capitalismo, no campo ocorreram os cercamentos com o aumento da produtividade; os deslocamentos do excesso de população para a cidade, daria eventualmente origem ao proletariado... O mesmo fenômeno, todavia, acirrou a oposição e divisão entre cidade e campo, ao estimular a especialização do trabalho. Nesse sentido, surgiram a indústria e a agricultura, o operário e o agricultor, todos ocupando espaços distintos e executando funções variadas. Os sintomas dessa transformação não sobressaem unicamente nas atividades produtivas e na separação entre trabalho mental e trabalho manual. Os sinais de hierarquização estão presentes também na vida cotidiana:

"...na idéia e na prática das classes sociais, na distribuição temporal do dia, da semana, do ano e da existência. Boa parte do pensamento criativo de nossa época representa uma tentativa de reexaminar cada um desses conceitos e práticas"(p.407).

Os efeitos patológicos dessa especialização criaram cidades superpovoadas e cinzas, campos envenenados e vermelhos de fogo e homens nos limites da sobrevivência. Esse quadro desolador induziu Raymond Williams a sonhar com a implosão da divisão do trabalho e a dissolução das diferenças entre operário e agricultor, citadino e camponês, ricos e pobres,.. Pois, como ele mesmo disse: "só podemos vencer a divisão nos recusando a ser divididos" (p.409).

Revista de História - USP

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