JEAN-JACQUES ROUSSEAU
A melodia dos signos
12/Set/98
Franklin De Matos
Música e linguagem sempre estiveram associadas no pensamento de J.J. Rousseau. Um bom exemplo é a "Carta sobre a Música Francesa", publicada em 1753, durante a famosa Querela dos Bufões, que dividiu Paris entre os partidários da ópera italiana e da francesa. Neste texto, cujo alvo principal é o compositor Jean-Philipe Rameau, Rousseau afirma que, se a música italiana é mais capaz de exprimir as paixões que a francesa, é porque privilegia a melodia, e não a harmonia e o contraponto. Tal diferença, aliás, se deve àquilo que distingue os próprios idiomas desses dois povos: enquanto o francês contém poucas vogais sonoras e está cheio de consoantes, articulações e sílabas mudas, o italiano é doce, sonoro, harmonioso e acentuado. (Não custa lembrar que, para os contemporâneos de Rousseau, a música é uma imitação da palavra, sendo portanto essencialmente vocal.)
No ano seguinte, o filósofo redigiu o "Discurso sobre a Desigualdade" e voltou às questões linguísticas, associando-as agora a outro tema fundamental: a sociedade. Na primeira parte do "Discurso", quando mergulha no estado de natureza, Rousseau escreve uma digressão sobre a origem e o desenvolvimento da língua, do grito da natureza aos idiomas elaborados, cuja finalidade é mostrar que a razão, a sociabilidade e a linguagem são aquisições tardias da humanidade, que há um abismo quase intransponível entre a natureza e a história. A versão primitiva desta digressão, mais extensa, acabou se tornando o "Ensaio sobre a Origem das Línguas", publicado três anos após a morte de Rousseau.
Conforme disse certa vez Jean Starobinski, se o "Discurso" insere uma história da linguagem no interior de uma história da sociedade, a perspectiva do "Ensaio" é exatamente inversa (1). Pode-se dizer que o "Discurso" vai mais fundo historicamente, remontando ao primeiro estado de natureza (o grau zero da história), quando o homem é solitário e, por isso, silencioso (segundo outra fórmula de Starobinski, não é então um animal que fala, mas "escuta" a voz da natureza). Quanto ao "Ensaio", ao tratar dos "primeiros tempos", refere-se a um momento bem posterior, quando os homens já estão associados em hordas e falam uma linguagem ditada pela necessidade física, que junta o grito da natureza, a gesticulação e a onomatopéia.
Mas, se a carência material dita nossos primeiros gestos, outra coisa nos leva às primeiras palavras. Contrariamente àqueles que afirmam que os homens inventaram a língua para expressar suas necessidades, Rousseau escreve: "Não foi a fome nem a sede mas o amor, o ódio, a piedade, a cólera que lhes arrancaram as primeiras vozes". A exemplo do "Discurso", o "Ensaio" proclama que não começamos por raciocinar, mas por sentir. Na origem da palavra estão nossas necessidades morais, nossas paixões.
Em suma, a primeira língua é dotada de vogais que saem naturalmente da garganta, de pouquíssimas articulações -apenas algumas consoantes para evitar os hiatos- e de acentos diversos que multiplicam as vogais. No princípio, língua e música se confundem: "Cantar-se-ia em lugar de falar" (é bom lembrar que o subtítulo do livro é: "Em que se Fala da Melodia e da Imitação Musical"). Com o tempo, quanto mais monótonas se tornam as vogais, mais se multiplicam as consoantes e, à medida que os acentos vão desaparecendo, as quantidades que se igualam vão sendo substituídas por combinações gramaticais e novas articulações. A língua separa-se da música, vai se tornando um instrumento claro e eficaz, mais própria a veicular idéias do que sentimentos. Ela passa a significar o objeto e deixa de exprimir o sujeito.
Para Rousseau, este progresso é na verdade uma perda, correndo paralelamente à história da degradação moral e política da humanidade. Enquanto a língua perde veemência e energia, os homens se tornam incapazes de experimentar verdadeiras paixões. Conforme notam os estudiosos, não é por acaso que o "Discurso" e o "Ensaio" desembocam no mesmo lugar, no estado da civilização em que predomina o absolutismo político.
Ao exame sistemático segue um estudo da gênese das línguas, no qual Rousseau trata dos fatores geográficos, econômicos e sociais que explicam sua diversificação, chegando assim à oposição entre as línguas do Sul e do Norte. Estas páginas permitem a passagem do tema da origem das línguas para o da imitação musical. Rousseau retoma assim suas velhas divergências com Rameau: sustenta o primado da melodia -tão essencial para a música quanto o desenho para a pintura- e o caráter bastardo da música polifônica, consequência da invasão dos bárbaros e da substituição da doçura e sonoridade das línguas meridionais pela dureza e aspereza das setentrionais.
A tradução de Fulvia Moretto vem juntar-se a outra, de Lourdes Gomes Machado, publicada na década de 50 pela Editora Globo e retomada posteriormente nos "Pensadores" da Abril. Mas o que torna especial esta nova edição é um texto inédito de Bento Prado Jr. -"A Força da Voz e a Violência das Coisas"-, que faz as vezes de introdução ao "Ensaio" e que, a exemplo dele, passou muitos anos no fundo de uma gaveta.
O texto contém o nervo do estudo que o autor consagrou a Rousseau nos anos 60 e 70 e do qual publicou, aqui e ali, alguns capítulos dispersos. Sua interpretação é nova por várias razões. Em geral, se não apontam as contradições ou descontinuidades de Rousseau, os comentadores buscam a unidade de seu pensamento partindo do "Discurso sobre as Ciências e as Artes" -aliás segundo recomendação do próprio filósofo. Para Bento, o coração da obra não está no primeiro "Discurso", e sim na teoria "retórica" da linguagem sustentada no "Ensaio", texto póstumo tido como secundário. Não tenho meios de reconstruir aqui todo o refinamento da leitura e vou me limitar a suas linhas mais gerais.
No século 18 há quem diga que as línguas têm um "gênio gramatical", voltado para a universalidade da razão e da natureza humana, e um "gênio retórico", que remete às contingências históricas e geográficas dos povos. A linguística cartesiana, quer na versão racionalista, quer empirista, privilegia o primeiro aspecto: segundo ela, a língua é um espelho da razão, as palavras são instrumentos do conhecimento e, por isso, a função primordial da linguagem é a representação.
Rousseau contesta todos os itens deste esquema tradicional e inverte os dados do problema. A chave para a explicação da linguagem não é a razão, aquisição tardia da humanidade, mas as paixões -antes de "geômetras", fomos "poetas", diz o "Ensaio". Assim, a música, e não a gramática, deve ser o paradigma da língua, cuja função primeira não é comunicar nossas idéias, mas agir sobre o coração de outrem. A exemplo da música, a linguagem não representa as coisas -imita-as. Conforme mostra Bento Prado Jr., Rousseau tem uma concepção não-figurativa da imitação: se a pintura só pode representar o visível, a música imita tanto o visível quanto o invisível, ou seja, as representações e os sentimentos que essas representações despertam.
Como se vê, voltar-se para o "gênio retórico" da língua, que aponta para a história, significa colocar em primeiro plano o tema da relação com o outro. Daí a importância que Rousseau atribui ao social a fim de explicar a própria estrutura da linguagem. Não custa insistir neste ponto: não que a linguagem seja para ele um fenômeno derivado da sociedade. É mais que isso: a linguagem é a primeira instituição social, e as demais instituições não passam de formas de linguagem. Por isso, Bento escreve: "À utopia da gramática -quer dizer, a uma concepção da linguagem que ignora todo lugar, geográfico ou histórico, norte e sul, antiguidade e modernidade, em sua vontade de universalidade-, a linguística de Rousseau opõe uma topologia que procura sobretudo as diferenças de lugar, no espaço e no tempo, mas também no interior de uma mesma sociedade".
Esse procedimento é tão decisivo no pensamento de Rousseau que estaria até mesmo ligado a uma transformação no próprio sentido da idéia de verdade. Já não tenho espaço para seguir Bento Prado em suas minuciosas análises de texto e vou logo ao resultado delas. Ao contrário do que diz o logocentrismo das Luzes, o amor da verdade não é para Rousseau um princípio espontâneo da natureza humana -é algo derivado, a "emanação" de uma vontade mais profunda. Quem comanda esta outra vontade é a justiça, e a verdade só terá valor se subordinar-se à justiça. Deste modo, não só a linguagem, mas a própria verdade se subordina "à trama da intersubjetividade".
Em outra parte, Bento já havia identificado algumas ramificações do mesmo procedimento. Na famosa "Carta a d'Alembert" (Unicamp, 1993), em que explica as razões pelas quais é contrário à introdução do teatro em Genebra, Rousseau não retoma, como pretendem as leituras tradicionais, a crítica metafísica da representação e tampouco os argumentos teológico-morais contra o teatro. Segundo Bento, este livro inquietante -que inauguraria, assim, a crítica social e política do teatro- denuncia a postura universalista (e etnocentrista) dos filósofos, que examinam o espetáculo sem passar pelo inventário de suas diferenças ao longo da história (2). Para retomar os termos acima, pode-se dizer que a "Carta" recusa uma "gramática do espetáculo", fundada na razão e na natureza humana, e nos apresenta uma "topologia dos espetáculos", voltada para a pluralidade da história.
O mesmo combate reaparece mais tarde no "Segundo Prefácio" do romance "A Nova Heloísa" (Hucitec, 1995), no qual Rousseau rejeita agora as idéias clássicas de imitação e leitor universais, e as substitui por uma visão etnológica baseada na "multiplicidade das humanidades locais". A imitação romanesca não deve dissolver o contingente no universal, mas sim "musicalizar" o quadro da natureza humana, visando-o de modo oblíquo, por meio de uma história particular (3).
O autor da "Nova Heloísa" se orienta, assim, pela teoria do "Ensaio". A esta altura, talvez se possa apreciar em parte a originalidade da leitura de Bento Prado Jr. Contrariamente a vários exegetas contemporâneos, ele aposta na existência de uma continuidade entre a "teoria" da linguagem formulada pelo filósofo e o "uso" que o escritor pretendia dela fazer. Com efeito, a teoria não se limita a denunciar a linguagem, mas afirma que ela é, segundo as palavras de Bento Prado, "o mais perigoso dos bens e o mais inocente dos jogos". Quer dizer: a linguagem tem duas faces -uma positiva, outra negativa-, que permitem a hierarquização da qualidade dos discursos e escritos. Alguns "representam" e têm como modelo a gramática, ao passo que outros "imitam", tomando a música como paradigma. Os primeiros se distinguem pelo "fausto", provocando "uma admiração fria e estéril", os outros têm "força", "elevam a alma e incendeiam o coração". É a estes que se pretende filiar a linguagem "pura e inocente" dos escritos de Jean-Jacques.
Com maestria incomparável, Bento conduz seu leitor do exame das proposições metafísicas do "Emílio" à análise de uma sutileza psicológica dos "Devaneios de um Caminhante Solitário". A unidade perseguida por ele não é, assim, apenas de ordem filosófica, compreendendo "Teoria, Política, Belas-Letras". O clássico de Starobinski citado há pouco fizera a seu modo algo parecido, mas de um ponto de vista psicanalítico-existencial -segundo seus próprios termos, tomara a obra de Rousseau como se fosse "uma ação imaginária", e fizera do comportamento de Jean-Jacques "uma ficção vivida". A perspectiva de Bento é, por assim dizer, rigorosamente interna, restringindo-se ao plano estrito da obra e recompondo, deste modo, a unidade entre filosofia e literatura em J.-J. Rousseau.
Agora é torcer para que Bento Prado Jr. vença tanto a timidez da filosofia no Brasil quanto a sua própria (4), e publique enfim estes ensaios em livro.
Notas:
1. Jean Starobinski, "Rousseau et l'Origine des Langues", in: "J.J. Rousseau - La Transparence et l'Obstacle", Paris, Gallimard, 1971, pág. 356.
2. Ver Bento Prado Jr., "Gênese e Estrutura dos Espetáculos", in: "Estudos Cebrap", nº 14, São Paulo, Brasiliense, 1975.
3. Idem. "Romance, Moral e Política no Século das Luzes", in: "Discurso", nº 17, São Paulo, Polis, 1988. Este deslocamento do lugar da universalidade acaba mexendo com a própria identidade do leitor visado por Rousseau, que já não terá o perfil universal das poéticas clássicas e será, assim, o "solitário", preservado dos males do mundo e da "opinião".
4. Ver Paulo Eduardo Arantes, "Timidez da Filosofia - Publicando um Inédito de Bento Prado Jr. 20 Anos Depois", in: "Um Departamento Francês de Ultramar", São Paulo, Paz e Terra, 1994, págs. 157ss.
Franklin de Matos é professor no departamento de filosofia da USP
Folha de São Paulo
A melodia dos signos
12/Set/98
Franklin De Matos
Música e linguagem sempre estiveram associadas no pensamento de J.J. Rousseau. Um bom exemplo é a "Carta sobre a Música Francesa", publicada em 1753, durante a famosa Querela dos Bufões, que dividiu Paris entre os partidários da ópera italiana e da francesa. Neste texto, cujo alvo principal é o compositor Jean-Philipe Rameau, Rousseau afirma que, se a música italiana é mais capaz de exprimir as paixões que a francesa, é porque privilegia a melodia, e não a harmonia e o contraponto. Tal diferença, aliás, se deve àquilo que distingue os próprios idiomas desses dois povos: enquanto o francês contém poucas vogais sonoras e está cheio de consoantes, articulações e sílabas mudas, o italiano é doce, sonoro, harmonioso e acentuado. (Não custa lembrar que, para os contemporâneos de Rousseau, a música é uma imitação da palavra, sendo portanto essencialmente vocal.)
No ano seguinte, o filósofo redigiu o "Discurso sobre a Desigualdade" e voltou às questões linguísticas, associando-as agora a outro tema fundamental: a sociedade. Na primeira parte do "Discurso", quando mergulha no estado de natureza, Rousseau escreve uma digressão sobre a origem e o desenvolvimento da língua, do grito da natureza aos idiomas elaborados, cuja finalidade é mostrar que a razão, a sociabilidade e a linguagem são aquisições tardias da humanidade, que há um abismo quase intransponível entre a natureza e a história. A versão primitiva desta digressão, mais extensa, acabou se tornando o "Ensaio sobre a Origem das Línguas", publicado três anos após a morte de Rousseau.
Conforme disse certa vez Jean Starobinski, se o "Discurso" insere uma história da linguagem no interior de uma história da sociedade, a perspectiva do "Ensaio" é exatamente inversa (1). Pode-se dizer que o "Discurso" vai mais fundo historicamente, remontando ao primeiro estado de natureza (o grau zero da história), quando o homem é solitário e, por isso, silencioso (segundo outra fórmula de Starobinski, não é então um animal que fala, mas "escuta" a voz da natureza). Quanto ao "Ensaio", ao tratar dos "primeiros tempos", refere-se a um momento bem posterior, quando os homens já estão associados em hordas e falam uma linguagem ditada pela necessidade física, que junta o grito da natureza, a gesticulação e a onomatopéia.
Mas, se a carência material dita nossos primeiros gestos, outra coisa nos leva às primeiras palavras. Contrariamente àqueles que afirmam que os homens inventaram a língua para expressar suas necessidades, Rousseau escreve: "Não foi a fome nem a sede mas o amor, o ódio, a piedade, a cólera que lhes arrancaram as primeiras vozes". A exemplo do "Discurso", o "Ensaio" proclama que não começamos por raciocinar, mas por sentir. Na origem da palavra estão nossas necessidades morais, nossas paixões.
Em suma, a primeira língua é dotada de vogais que saem naturalmente da garganta, de pouquíssimas articulações -apenas algumas consoantes para evitar os hiatos- e de acentos diversos que multiplicam as vogais. No princípio, língua e música se confundem: "Cantar-se-ia em lugar de falar" (é bom lembrar que o subtítulo do livro é: "Em que se Fala da Melodia e da Imitação Musical"). Com o tempo, quanto mais monótonas se tornam as vogais, mais se multiplicam as consoantes e, à medida que os acentos vão desaparecendo, as quantidades que se igualam vão sendo substituídas por combinações gramaticais e novas articulações. A língua separa-se da música, vai se tornando um instrumento claro e eficaz, mais própria a veicular idéias do que sentimentos. Ela passa a significar o objeto e deixa de exprimir o sujeito.
Para Rousseau, este progresso é na verdade uma perda, correndo paralelamente à história da degradação moral e política da humanidade. Enquanto a língua perde veemência e energia, os homens se tornam incapazes de experimentar verdadeiras paixões. Conforme notam os estudiosos, não é por acaso que o "Discurso" e o "Ensaio" desembocam no mesmo lugar, no estado da civilização em que predomina o absolutismo político.
Ao exame sistemático segue um estudo da gênese das línguas, no qual Rousseau trata dos fatores geográficos, econômicos e sociais que explicam sua diversificação, chegando assim à oposição entre as línguas do Sul e do Norte. Estas páginas permitem a passagem do tema da origem das línguas para o da imitação musical. Rousseau retoma assim suas velhas divergências com Rameau: sustenta o primado da melodia -tão essencial para a música quanto o desenho para a pintura- e o caráter bastardo da música polifônica, consequência da invasão dos bárbaros e da substituição da doçura e sonoridade das línguas meridionais pela dureza e aspereza das setentrionais.
A tradução de Fulvia Moretto vem juntar-se a outra, de Lourdes Gomes Machado, publicada na década de 50 pela Editora Globo e retomada posteriormente nos "Pensadores" da Abril. Mas o que torna especial esta nova edição é um texto inédito de Bento Prado Jr. -"A Força da Voz e a Violência das Coisas"-, que faz as vezes de introdução ao "Ensaio" e que, a exemplo dele, passou muitos anos no fundo de uma gaveta.
O texto contém o nervo do estudo que o autor consagrou a Rousseau nos anos 60 e 70 e do qual publicou, aqui e ali, alguns capítulos dispersos. Sua interpretação é nova por várias razões. Em geral, se não apontam as contradições ou descontinuidades de Rousseau, os comentadores buscam a unidade de seu pensamento partindo do "Discurso sobre as Ciências e as Artes" -aliás segundo recomendação do próprio filósofo. Para Bento, o coração da obra não está no primeiro "Discurso", e sim na teoria "retórica" da linguagem sustentada no "Ensaio", texto póstumo tido como secundário. Não tenho meios de reconstruir aqui todo o refinamento da leitura e vou me limitar a suas linhas mais gerais.
No século 18 há quem diga que as línguas têm um "gênio gramatical", voltado para a universalidade da razão e da natureza humana, e um "gênio retórico", que remete às contingências históricas e geográficas dos povos. A linguística cartesiana, quer na versão racionalista, quer empirista, privilegia o primeiro aspecto: segundo ela, a língua é um espelho da razão, as palavras são instrumentos do conhecimento e, por isso, a função primordial da linguagem é a representação.
Rousseau contesta todos os itens deste esquema tradicional e inverte os dados do problema. A chave para a explicação da linguagem não é a razão, aquisição tardia da humanidade, mas as paixões -antes de "geômetras", fomos "poetas", diz o "Ensaio". Assim, a música, e não a gramática, deve ser o paradigma da língua, cuja função primeira não é comunicar nossas idéias, mas agir sobre o coração de outrem. A exemplo da música, a linguagem não representa as coisas -imita-as. Conforme mostra Bento Prado Jr., Rousseau tem uma concepção não-figurativa da imitação: se a pintura só pode representar o visível, a música imita tanto o visível quanto o invisível, ou seja, as representações e os sentimentos que essas representações despertam.
Como se vê, voltar-se para o "gênio retórico" da língua, que aponta para a história, significa colocar em primeiro plano o tema da relação com o outro. Daí a importância que Rousseau atribui ao social a fim de explicar a própria estrutura da linguagem. Não custa insistir neste ponto: não que a linguagem seja para ele um fenômeno derivado da sociedade. É mais que isso: a linguagem é a primeira instituição social, e as demais instituições não passam de formas de linguagem. Por isso, Bento escreve: "À utopia da gramática -quer dizer, a uma concepção da linguagem que ignora todo lugar, geográfico ou histórico, norte e sul, antiguidade e modernidade, em sua vontade de universalidade-, a linguística de Rousseau opõe uma topologia que procura sobretudo as diferenças de lugar, no espaço e no tempo, mas também no interior de uma mesma sociedade".
Esse procedimento é tão decisivo no pensamento de Rousseau que estaria até mesmo ligado a uma transformação no próprio sentido da idéia de verdade. Já não tenho espaço para seguir Bento Prado em suas minuciosas análises de texto e vou logo ao resultado delas. Ao contrário do que diz o logocentrismo das Luzes, o amor da verdade não é para Rousseau um princípio espontâneo da natureza humana -é algo derivado, a "emanação" de uma vontade mais profunda. Quem comanda esta outra vontade é a justiça, e a verdade só terá valor se subordinar-se à justiça. Deste modo, não só a linguagem, mas a própria verdade se subordina "à trama da intersubjetividade".
Em outra parte, Bento já havia identificado algumas ramificações do mesmo procedimento. Na famosa "Carta a d'Alembert" (Unicamp, 1993), em que explica as razões pelas quais é contrário à introdução do teatro em Genebra, Rousseau não retoma, como pretendem as leituras tradicionais, a crítica metafísica da representação e tampouco os argumentos teológico-morais contra o teatro. Segundo Bento, este livro inquietante -que inauguraria, assim, a crítica social e política do teatro- denuncia a postura universalista (e etnocentrista) dos filósofos, que examinam o espetáculo sem passar pelo inventário de suas diferenças ao longo da história (2). Para retomar os termos acima, pode-se dizer que a "Carta" recusa uma "gramática do espetáculo", fundada na razão e na natureza humana, e nos apresenta uma "topologia dos espetáculos", voltada para a pluralidade da história.
O mesmo combate reaparece mais tarde no "Segundo Prefácio" do romance "A Nova Heloísa" (Hucitec, 1995), no qual Rousseau rejeita agora as idéias clássicas de imitação e leitor universais, e as substitui por uma visão etnológica baseada na "multiplicidade das humanidades locais". A imitação romanesca não deve dissolver o contingente no universal, mas sim "musicalizar" o quadro da natureza humana, visando-o de modo oblíquo, por meio de uma história particular (3).
O autor da "Nova Heloísa" se orienta, assim, pela teoria do "Ensaio". A esta altura, talvez se possa apreciar em parte a originalidade da leitura de Bento Prado Jr. Contrariamente a vários exegetas contemporâneos, ele aposta na existência de uma continuidade entre a "teoria" da linguagem formulada pelo filósofo e o "uso" que o escritor pretendia dela fazer. Com efeito, a teoria não se limita a denunciar a linguagem, mas afirma que ela é, segundo as palavras de Bento Prado, "o mais perigoso dos bens e o mais inocente dos jogos". Quer dizer: a linguagem tem duas faces -uma positiva, outra negativa-, que permitem a hierarquização da qualidade dos discursos e escritos. Alguns "representam" e têm como modelo a gramática, ao passo que outros "imitam", tomando a música como paradigma. Os primeiros se distinguem pelo "fausto", provocando "uma admiração fria e estéril", os outros têm "força", "elevam a alma e incendeiam o coração". É a estes que se pretende filiar a linguagem "pura e inocente" dos escritos de Jean-Jacques.
Com maestria incomparável, Bento conduz seu leitor do exame das proposições metafísicas do "Emílio" à análise de uma sutileza psicológica dos "Devaneios de um Caminhante Solitário". A unidade perseguida por ele não é, assim, apenas de ordem filosófica, compreendendo "Teoria, Política, Belas-Letras". O clássico de Starobinski citado há pouco fizera a seu modo algo parecido, mas de um ponto de vista psicanalítico-existencial -segundo seus próprios termos, tomara a obra de Rousseau como se fosse "uma ação imaginária", e fizera do comportamento de Jean-Jacques "uma ficção vivida". A perspectiva de Bento é, por assim dizer, rigorosamente interna, restringindo-se ao plano estrito da obra e recompondo, deste modo, a unidade entre filosofia e literatura em J.-J. Rousseau.
Agora é torcer para que Bento Prado Jr. vença tanto a timidez da filosofia no Brasil quanto a sua própria (4), e publique enfim estes ensaios em livro.
Notas:
1. Jean Starobinski, "Rousseau et l'Origine des Langues", in: "J.J. Rousseau - La Transparence et l'Obstacle", Paris, Gallimard, 1971, pág. 356.
2. Ver Bento Prado Jr., "Gênese e Estrutura dos Espetáculos", in: "Estudos Cebrap", nº 14, São Paulo, Brasiliense, 1975.
3. Idem. "Romance, Moral e Política no Século das Luzes", in: "Discurso", nº 17, São Paulo, Polis, 1988. Este deslocamento do lugar da universalidade acaba mexendo com a própria identidade do leitor visado por Rousseau, que já não terá o perfil universal das poéticas clássicas e será, assim, o "solitário", preservado dos males do mundo e da "opinião".
4. Ver Paulo Eduardo Arantes, "Timidez da Filosofia - Publicando um Inédito de Bento Prado Jr. 20 Anos Depois", in: "Um Departamento Francês de Ultramar", São Paulo, Paz e Terra, 1994, págs. 157ss.
Franklin de Matos é professor no departamento de filosofia da USP
Folha de São Paulo
2 comentários:
Muito obrigado, me ajudou bastante no trabalho que eu estou fazendo sbre o livro Ensaio sobre a origem das línguas, eu fiquei de apresentar a parte em que Rousseau fala da Melodia.
atenciosamente
Marcos V. Martins
Belo blog, meu caro. parabéns pela excelência.
Aguardo sua visita e, com sorte, sua mensagem lá no blog Semióticas. envio um link:
http//semioticas1.blogspot.com
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