MARIA LÚCIA SPEDO HILSDORF
Nova história da educação
10/Out/98
Sonia Alem Marrach
Neste livro, a história da educação é recortada de forma bastante original: a autora pergunta quem são os intelectuais que refletem sobre a educação e o modo como constroem seu pensamento, incorporando ampla bibliografia já bastante conhecida dos historiadores e filósofos, porém nova para a área da pedagogia. Obras como as de Eugenio Garin, Michelle Perrot, Robert Mandrou e Ernest Cassirer fazem parte desta história da educação trabalhada na fronteira dos conhecimentos sócio-culturais, com a história das idéias e das mentalidades. O livro traz um exame das diversas figurações do intelectual ao longo de quatro séculos, desde o Renascimento até as primeiras décadas do século 20.
Aborda o século 16 do ângulo dos humanistas, substituindo o tradicional enfoque das práticas educativas de reformadores e jesuítas, já por demais conhecidas. Discute o humanista ou filósofo mago em Garin, um dos autores mais citados neste livro de cunho ensaístico e caráter didático. O filósofo do Renascimento é um homem de vasta cultura, capaz de perscrutar a caverna da realidade natural e humana, participar da vida pública, curar doenças do corpo e da mente e interpretar os astros. Ele pesquisa com base nos princípios da razão para encontrar na natureza o caminho que conduz a Deus. Nos termos de Rabelais, um dos esquecidos deste trabalho, ciência sem consciência é a ruína da alma. Numa época em que o ensino estava desvinculado da universidade, o humanista trabalhava no ambiente privado de seu gabinete e partilhava dos traços mentais próprios da época. É individualista, cultiva o espírito público, o pacifismo, a liberdade, a tolerância, a sensibilidade, a utopia. Propõe uma pedagogia serena e afetuosa, avessa aos castigos e aberta à paixão pelo conhecimento. Utiliza o método filológico para substituir o lógico-silogístico dos escolásticos. Neste campo destaca-se a figura de Montaigne propondo uma educação voltada para o desenvolvimento do espírito crítico e antidogmático.
Galileu modifica a visão renascentista da natureza, revalorizando as matemáticas. Ele considera o ponto de vista geométrico-matemático necessário à observação e à experiência capaz de abstrair as qualidades sensíveis dos corpos, e desta forma substituir os conceitos metafísicos pelos científicos. Galileu pertence à figuração do intelectual cientista, que rompe com a tradição aristotélico-escolástica e, como Campanella e Giordano Bruno, vive atormentado por ter de fugir às perseguições e renegar suas idéias. O século 17 colocou para o intelectual um dos maiores dilemas da tão decantada modernidade: viver o destino sombrio do exílio ou compactuar com o poder, dissimulando a própria reflexão. E possibilitou o questionamento do passado, a recusa da exemplaridade da cultura grego-romana e a substituição da memorização pelo uso do raciocínio. Conhecer tornou-se sinônimo de fazer, prever, poder.
No campo educacional, Hilsdorf destaca o saber enciclopédico de Comênio. Com sua concepção de "mundo labiríntico" ou obscuro, que só se pode salvar pela fé e pela educação escolar, Comênio atribui à escola o papel de ensinar a interpretar o mundo, refazendo por meio da "ordem" o procedimento "ordenado" da natureza. A sua "Didactica Magna" e a "Ratio Studiorum" dos Jesuítas representam na pedagogia dois traços significativos da mentalidade seiscentista: ordem e método. Com método Descartes criticou a cultura escolar baseada no saber revelado. Discutindo com o pensamento cartesiano, Locke utiliza o método psicogenético para explicar o que são as idéias e como funciona o entendimento humano. Se o pensamento de Bacon está na origem intelectual da Revolução Inglesa de 1640, o de Locke dá ao empirismo uma formulação essencialmente pedagógica, ensinando o valor da liberdade e a confiança em si próprio.
No século 18, os intelectuais constroem idéias sobre as relações entre a sociedade e a educação das crianças. Hilsdorf lê a primazia da cultura sobre a natureza, proposta por Helvetius, como possibilidade de intervenção humana na sociedade, por meio da educação. A Rousseau, destina o contraponto do pensamento iluminista. A idéia da bondade natural e a reivindicação de uma educação em que a criança seja deixada livre, em contato com a natureza, encontrará saída no próprio Rousseau de "O Contrato Social", embora sublinhe sua falta de confiança na instituição escolar.
O final dos oitocentos transforma em mito a bondade natural e associa a educação ao conceito de perfectibilidade humana formulado por Kant, para quem o homem natural se realiza como ser moral por meio da educação. Nos quadros do iluminismo e do romantismo alemães a autora situa as idéias pedagógicas de Pestallozzi, Fröebel e Herbart.
O último capítulo aborda o nascimento da Educação Nova e desenvolvimento da escola pública, no contexto de ascensão da vida privada. O século 20 muda a rota da modernidade. O individualismo se expande como prática da vida privada e traço da mentalidade nas diversas camadas sociais, especialmente entre os jovens, as mulheres, os intelectuais e artistas. A infância torna-se a fase fundamental da vida, e a criança é objeto de amor na família. Ao mesmo tempo, a família perde seu papel de educadora para a escola pública, que terá a dupla função de preparadora do trabalho e da vida em sociedade.
Pensando a educação, o intelectual cientista da virada do século procura conciliar os direitos individuais e os deveres do Estado. Encaminha as questões da solidariedade e dos direitos sociais, propondo a atuação do poder público na educação das grandes massas da população. E formula uma idéia social-democrática para embasar a nova escola pública da sociedade capitalista e industrial. Para John Dewey, a escola deve estar ligada aos processos vitais, incentivando a solidariedade e a criatividade. Cabe a ela transformar a criança em pessoa e em cidadão da sociedade democrática.
O livro termina com uma interrogação: quem é Dewey? O autor de uma "ilusão pedagógica", como dizia Manacorda? Ou um dos "últimos intelectuais" com espírito público, capaz de pensar a pedagogia como elaboração filosófica para a vida cotidiana? A resposta remete ao relativismo da abordagem: "Visões diferentes resultam de diferentes pontos de observação", conclui a autora. Mas a resposta é também um convite ao questionamento e à reelaboração por parte do leitor, como propõe Hilsdorf nos objetivos, aliás muito bem realizados.
Sonia Alem Marrach é professora de história da educação na Universidade Estadual Paulista (Unesp).
Folha de São Paulo
Nova história da educação
10/Out/98
Sonia Alem Marrach
Neste livro, a história da educação é recortada de forma bastante original: a autora pergunta quem são os intelectuais que refletem sobre a educação e o modo como constroem seu pensamento, incorporando ampla bibliografia já bastante conhecida dos historiadores e filósofos, porém nova para a área da pedagogia. Obras como as de Eugenio Garin, Michelle Perrot, Robert Mandrou e Ernest Cassirer fazem parte desta história da educação trabalhada na fronteira dos conhecimentos sócio-culturais, com a história das idéias e das mentalidades. O livro traz um exame das diversas figurações do intelectual ao longo de quatro séculos, desde o Renascimento até as primeiras décadas do século 20.
Aborda o século 16 do ângulo dos humanistas, substituindo o tradicional enfoque das práticas educativas de reformadores e jesuítas, já por demais conhecidas. Discute o humanista ou filósofo mago em Garin, um dos autores mais citados neste livro de cunho ensaístico e caráter didático. O filósofo do Renascimento é um homem de vasta cultura, capaz de perscrutar a caverna da realidade natural e humana, participar da vida pública, curar doenças do corpo e da mente e interpretar os astros. Ele pesquisa com base nos princípios da razão para encontrar na natureza o caminho que conduz a Deus. Nos termos de Rabelais, um dos esquecidos deste trabalho, ciência sem consciência é a ruína da alma. Numa época em que o ensino estava desvinculado da universidade, o humanista trabalhava no ambiente privado de seu gabinete e partilhava dos traços mentais próprios da época. É individualista, cultiva o espírito público, o pacifismo, a liberdade, a tolerância, a sensibilidade, a utopia. Propõe uma pedagogia serena e afetuosa, avessa aos castigos e aberta à paixão pelo conhecimento. Utiliza o método filológico para substituir o lógico-silogístico dos escolásticos. Neste campo destaca-se a figura de Montaigne propondo uma educação voltada para o desenvolvimento do espírito crítico e antidogmático.
Galileu modifica a visão renascentista da natureza, revalorizando as matemáticas. Ele considera o ponto de vista geométrico-matemático necessário à observação e à experiência capaz de abstrair as qualidades sensíveis dos corpos, e desta forma substituir os conceitos metafísicos pelos científicos. Galileu pertence à figuração do intelectual cientista, que rompe com a tradição aristotélico-escolástica e, como Campanella e Giordano Bruno, vive atormentado por ter de fugir às perseguições e renegar suas idéias. O século 17 colocou para o intelectual um dos maiores dilemas da tão decantada modernidade: viver o destino sombrio do exílio ou compactuar com o poder, dissimulando a própria reflexão. E possibilitou o questionamento do passado, a recusa da exemplaridade da cultura grego-romana e a substituição da memorização pelo uso do raciocínio. Conhecer tornou-se sinônimo de fazer, prever, poder.
No campo educacional, Hilsdorf destaca o saber enciclopédico de Comênio. Com sua concepção de "mundo labiríntico" ou obscuro, que só se pode salvar pela fé e pela educação escolar, Comênio atribui à escola o papel de ensinar a interpretar o mundo, refazendo por meio da "ordem" o procedimento "ordenado" da natureza. A sua "Didactica Magna" e a "Ratio Studiorum" dos Jesuítas representam na pedagogia dois traços significativos da mentalidade seiscentista: ordem e método. Com método Descartes criticou a cultura escolar baseada no saber revelado. Discutindo com o pensamento cartesiano, Locke utiliza o método psicogenético para explicar o que são as idéias e como funciona o entendimento humano. Se o pensamento de Bacon está na origem intelectual da Revolução Inglesa de 1640, o de Locke dá ao empirismo uma formulação essencialmente pedagógica, ensinando o valor da liberdade e a confiança em si próprio.
No século 18, os intelectuais constroem idéias sobre as relações entre a sociedade e a educação das crianças. Hilsdorf lê a primazia da cultura sobre a natureza, proposta por Helvetius, como possibilidade de intervenção humana na sociedade, por meio da educação. A Rousseau, destina o contraponto do pensamento iluminista. A idéia da bondade natural e a reivindicação de uma educação em que a criança seja deixada livre, em contato com a natureza, encontrará saída no próprio Rousseau de "O Contrato Social", embora sublinhe sua falta de confiança na instituição escolar.
O final dos oitocentos transforma em mito a bondade natural e associa a educação ao conceito de perfectibilidade humana formulado por Kant, para quem o homem natural se realiza como ser moral por meio da educação. Nos quadros do iluminismo e do romantismo alemães a autora situa as idéias pedagógicas de Pestallozzi, Fröebel e Herbart.
O último capítulo aborda o nascimento da Educação Nova e desenvolvimento da escola pública, no contexto de ascensão da vida privada. O século 20 muda a rota da modernidade. O individualismo se expande como prática da vida privada e traço da mentalidade nas diversas camadas sociais, especialmente entre os jovens, as mulheres, os intelectuais e artistas. A infância torna-se a fase fundamental da vida, e a criança é objeto de amor na família. Ao mesmo tempo, a família perde seu papel de educadora para a escola pública, que terá a dupla função de preparadora do trabalho e da vida em sociedade.
Pensando a educação, o intelectual cientista da virada do século procura conciliar os direitos individuais e os deveres do Estado. Encaminha as questões da solidariedade e dos direitos sociais, propondo a atuação do poder público na educação das grandes massas da população. E formula uma idéia social-democrática para embasar a nova escola pública da sociedade capitalista e industrial. Para John Dewey, a escola deve estar ligada aos processos vitais, incentivando a solidariedade e a criatividade. Cabe a ela transformar a criança em pessoa e em cidadão da sociedade democrática.
O livro termina com uma interrogação: quem é Dewey? O autor de uma "ilusão pedagógica", como dizia Manacorda? Ou um dos "últimos intelectuais" com espírito público, capaz de pensar a pedagogia como elaboração filosófica para a vida cotidiana? A resposta remete ao relativismo da abordagem: "Visões diferentes resultam de diferentes pontos de observação", conclui a autora. Mas a resposta é também um convite ao questionamento e à reelaboração por parte do leitor, como propõe Hilsdorf nos objetivos, aliás muito bem realizados.
Sonia Alem Marrach é professora de história da educação na Universidade Estadual Paulista (Unesp).
Folha de São Paulo
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