segunda-feira, 27 de outubro de 2008

AZTECS - AN INTERPRETATION

INGA CLENDINNEN
Rituais de sacrifício
14/Nov/98
Sandra Lauderdale Graham
TRADUÇÃO: LAURA DE MELLO E SOUZA.


Após escalarem os degraus altos e íngremes da pirâmide, as vítimas viam-se agarradas, arremessadas sobre a pedra sacrifical, "quatro sacerdotes pressionando para baixo cada membro a fim de permitir que o tórax permanecesse tensamente arqueado, enquanto um quinto enterrava a larga lâmina de pederneira em seu peito e arrancava o coração ainda palpitante", elevado como oferenda ao Sol.
Horrivelmente calculado e repetido com frequência na grande cidade lacustre de Tenochtitlán, no vale central do México, durante os últimos anos que antecederam a conquista espanhola, este ritual executava homens, mulheres e crianças capturados pelos guerreiros astecas e constitui a matéria de "Aztecs - An Interpretation", da historiadora e escritora australiana Inga Clendinnen.
Mas, por certo, o livro é muito maior do que este ritual; pois, se tendemos a desconsiderar tais matanças como meramente grotescas e remotas, o propósito de Clendinnen é tornar inteligível como os astecas entendiam os rituais públicos, por meio dos quais o tênue controle que exerciam sobre um universo precário via-se temporariamente renovado. Ela descobre esta inteligibilidade não no pensamento formal, mas em algo mais flexível, "na sensibilidade: o nexo emocional, moral e estético por meio do qual o pensamento expressa-se em ação, tornando-se público, visível e acessível à nossa observação". E ela descobre ainda o acesso à inteligibilidade do horror indizível graças à disciplina da história, sua "vigilância crítica" e sua "implacável crítica das fontes".
Os rituais que conectavam o mundo humano ao sagrado não pertenciam exclusivamente aos domínios de guerreiros e sacerdotes, por mais centrais que fossem os seus papéis, mas requeriam participação e cumplicidade popular a fim de ostentar a legitimidade asteca. Desta forma, a preocupação de Clendinnen não se volta apenas para as razões que levavam cativos originários das partes mais remotas do império a aceitarem, por medo ou persuasão, as pretensões astecas; mas debruça-se também sobre o povo comum da cidade e "sua inelutável intimidade com corpos de vítimas, vivos e mortos", procurando entender "como aquela intimidade se tornava tolerável".
Nos lares e bairros citadinos as mulheres que morriam no parto eram reverenciadas como guerreiros mortos, destinadas a acompanhar a descida noturna do Sol rumo à escuridão; mercadores atendiam à demanda de elaboradas insígnias guerreiras. Família e vizinhos testemunhavam a vitória individual do guerreiro-captor, vendo-o vestido durante 20 dias com a pele arrancada ao corpo do cativo morto, correndo e dando gritos estridentes pelas ruas, apavorando quantos encontrasse até que, esfrangalhada e fétida, ela tornasse à terra para alimentar de novo o ciclo da morte e da vida, enterrada ao pé de Xipe Totec, o deus do milho sempre representado "coberto de pele morta".
Se o ritual tornou-se necessário devido ao entendimento asteca da vida como incerta e transitória, podendo com proveito ser considerado como propiciatório, "o seu maior significado", diz Clendinnen, "não era instrumental, mas antes estético, expressivo, indagativo e criativo". Ela nos evoca não apenas as poderosas e duradouras figuras de pedra entalhada que comumente associamos às representações astecas do sagrado, mas as "coisas frágeis e efêmeras (...) apreciadas precisamente por serem evanescentes": toucados de penas de brilho oscilante, poemas, músicas "suntuosamente belas", peles de onça, flores, borboletas. Imagens encantadoras e inebriantes, capazes de compelir à participação voluntária. E, para nós, uma sóbria abordagem das relações entre o humano e o sagrado.
Se Clendinnen goza de celebrada reputação entre os estudiosos de história maia e asteca, não tem entretanto pretensão de se arvorar em especialista de história alemã. Um livro sobre o Holocausto poderia parecer, assim, um estranho ponto de partida e, dada a forma com que acadêmicos habitualmente defendem seus territórios intelectuais, bastante arriscado. Penso que sua escolha não é tão excêntrica quanto aparenta à primeira vista. Os dois livros, totalmente discrepantes no que diz respeito ao tempo, lugar e culturas investigados, relacionam-se, contudo, graças à metodologia comum.
Sua estratégia em "Reading the Holocaust" anuncia-se no próprio título e repete aquela em que se apoiou quando de seu trabalho meso-americano: a partir de evidências bem conhecidas, extrair uma interpretação desafiadora e original. Se para os astecas as fontes são poucas e fragmentárias, no que diz respeito ao Holocausto o problema é a abundância, e não a escassez. Os eventos têm conosco uma proximidade temporal; alguns dentre as vítimas-sobreviventes e os perpetradores acham-se ainda vivos, ou estavam vivos em nossos tempos.
Em decorrência disto, têm-se volumes de relatos de testemunhos, transcrições de julgamentos, fotografias e, mais recentemente, entrevistas em videoteipe -muito desta massa de informação achando-se acessível aos não-especialistas em publicações e traduções. Além de uma seleção restrita destas fontes, Clendinnen responde a várias tentativas recentes feitas por especialistas no sentido de entender o Holocausto, notadamente Daniel Goldhagen ("Os Carrascos Voluntários de Hitler", Companhia das Letras), cujas conclusões acaba por rejeitar, e Christopher Browning, em quem ela encontra um companheiro. Mas são as questões colocadas pela autora e as formas pelas quais é levada a reler os indícios que mais aproximam este projeto do trabalho anterior.
Devemos atentar, insiste, não apenas para as vítimas e para o que os poucos sobreviventes podem ou não podem dizer-nos; mas para os perpetradores: pois só se começarmos a entender como e por quê foram levados a agir daquela forma poderemos ter a esperança de intervir e prevenir repetições do horror.
"Reading the Holocaust" foi, ela nos diz, um livro difícil de escrever. É também um livro difícil de ler, pois ela nos guia ao longo das fileiras de assassinos: o "Sonderkommando" de Auschwitz, judeus que, sob ordens, desempenharam o papel asqueroso de matar e saquear corpos; os homens comuns da Hamburg Order Police, transferidos para a Polônia a fim de recolher e abater homens, mulheres e crianças judias; os SS de Auschwitz; os líderes. Esses homens não correspondiam a um único grupo; suas motivações, situações, contextos diferiam de forma tão profunda, que nenhuma noção redutora ou simplificadora de "mal" seria suficiente para qualificá-los. A explicação deve ser mais precisa, concreta e diferenciadora. "Devemos (e isto é ao mesmo tempo mais difícil e mais repugnante) esforçar-nos para imaginar o que seja infligir sofrimento, pois os matadores eram humanos também, e não podemos nos permitir virarmos as costas... Devemos olhar de novo, e de novo, e de novo". Neste esforço, o entendimento certamente não significa nem justificar nem perdoar.
No intuito de disciplinar tal "imaginação moral", Clendinnen volta-se para a aplicação precisa e rigorosa dos métodos históricos. Não há aqui nenhum encanto, diz-nos, apenas a vagarosa "colagem de contextos, o estabelecimento da sequência das ações, a inferência, com base no conhecimento que temos sobre os indivíduos envolvidos, acerca das prováveis intenções subjacentes àquelas ações, e o inventário geral de conhecimentos que temos das motivações humanas. O que distingue este processo laborioso e intrinsecamente controverso do clarão revelador da intuição é o fato de achar-se, em cada ponto, aberto ao esquadrinhamento, à crítica e à correção". "Reading the Holocaust" não versa apenas sobre as vítimas e, em particular, sobre os perpetradores do Holocausto; é um alentado ensaio sobre o valor da disciplina da história e sua habilidade em provocar nossa imaginação moral.
Penso que Clendinnen não tem o objetivo de afirmar que a única história ética seja o estudo das formas extravagantes por meio das quais se matam seres humanos, apesar dos dois livros em questão tratarem, cada um à sua maneira, deste assunto. No final, ela mostra confiar na capacidade da curiosidade, na persistente e resoluta urgência de saber como e por quê. Neste mundo pós-moderno, pós-liberal, pós-ético, é uma perspectiva revigorante.

Sandra Lauderdale Graham é professora na Universidade do Texas, Austin (EUA).
Tradução de Laura de Mello e Souza.

Folha de São Paulo

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