quinta-feira, 23 de outubro de 2008

Tractatus Logico-Philosophicus

Wittgenstein
12/Dez/98
Danilo Marcondes
INICIAÇÃO AO SILÊNCIO; Filosofia; ....
Concluído em 1918, ao final da Primeira Guerra Mundial, quando Wittgenstein, oficial do Exército austríaco, era prisioneiro do italianos, o "Tractatus Logico-Philosophicus" pertence hoje à história da filosofia. Único livro de filosofia publicado por Wittgenstein em vida, teve uma imensa influência em sua época, chegando a ser visto, mesmo por seu autor, como dando uma resposta definitiva aos problemas filosóficos.Admirado por Russell, discutido pelo Círculo de Viena, cultuado em Cambridge, esse pequeno livro de pouco mais de 70 páginas foi, no entanto, posteriormente rejeitado por Wittgenstein, que se refere a ele, nas "Investigações Filosóficas", escritas algumas décadas depois, como contendo "graves erros". Apesar disso, é impossível entender o desenvolvimento do pensamento de Wittgenstein e de boa parte da filosofia analítica da linguagem das primeiras décadas deste século sem levar em conta as teses enunciadas no "Tractatus", em seu estilo ao mesmo tempo sucinto e enigmático.Em "Iniciação ao Silêncio", Paulo Margutti apresenta-nos uma valiosa introdução ao "Tractatus", uma interpretação sistemática do texto e uma análise original da filosofia de Wittgenstein em sua primeira formulação.Os principais intérpretes e comentadores de Wittgenstein têm sido filósofos de língua inglesa, sobretudo da Inglaterra e dos EUA, que sofreram direta ou indiretamente sua influência e que sempre deram particular ênfase ao lugar de sua obra no contexto do surgimento e desenvolvimento da filosofia analítica da linguagem, especialmente em relação às teorias de Frege e de Russell.Um dos grandes méritos do livro de Margutti consiste em explorar, em sua primeira parte, o contexto da filosofia do "Tractatus", bem como os pontos de partida de Wittgenstein, em um sentido mais amplo; sem esquecer, é claro, Frege e Russell, mas levando em conta, por exemplo, as referências que Wittgenstein faz a William James, de cuja psicologia sofreu a influência; a Hertz e Boltzmann, cujas discussões sobre a ciência e o método científico tiveram destaque na época; a Weininger, cuja obra teve um papel importante na formação de seu pensamento; e a Tolstoi, uma de suas leituras favoritas.Esses autores são pouco estudados hoje em dia; porém Margutti mostra-nos de forma convincente como são relevantes para o entendimento da filosofia do "Tractatus", já que, pode-se dizer, constituem seu pano de fundo. O próprio Wittgenstein, numa passagem do "Tractatus", afirma: "Toda filosofia é 'crítica da linguagem' (Todavia, não no sentido de Mauthner)". Ora, como entender esse contraste que Wittgenstein faz entre sua concepção e a de Fritz Mauthner, um autor hoje praticamente desconhecido, sem edições recentes de sua obra? Mas Margutti apresenta-nos uma seção bastante elucidativa, intitulada precisamente "A Crítica Mauthneriana da Linguagem".Examinado esse contexto, a segunda parte de "Iniciação ao Silêncio" é toda ela dedicada a uma análise bastante minuciosa do texto do "Tractatus" e de suas principais teses sobre a natureza e a função da linguagem. Merece especial destaque a questão da forma lógica da proposição, de importância central para o entendimento da noção wittgensteiniana de proposição ("Satz") e, por conseguinte, para a filosofia da linguagem do "Tractatus" e sua proposta de análise lógico-transcendental da linguagem, o que constituiria a "crítica da linguagem" na passagem citada acima. É precisamente a análise da forma lógica da proposição que contém a chave para a compreensão da relação entre lógica e ontologia, ou linguagem e realidade, o problema básico do "Tractatus".Em seguida, Margutti explora algumas das principais consequências das teses de Wittgenstein sobre a linguagem para a ética, a estética e a metafísica. Como entender, por exemplo, a afirmação do "Tractatus" de que a ética não se deixa exprimir e de que ética e estética são uma só? Se, para o "Tratactus", conforme nos mostra Margutti, "no âmbito da realidade e do mundo só temos fatos (existentes ou possíveis); e no âmbito da linguagem só temos proposições que descrevem fatos" -então "essa concepção exclui os valores éticos tanto da realidade do mundo como da linguagem". É por isso que Wittgenstein afirma que a ética é transcendental, ou seja, pertence não ao mundo, mas ao sujeito transcendental. "A ética é uma dimensão do sujeito, que é condição transcendental de possibilidade do mundo".Chegamos finalmente ao paradoxo do "Tractatus". De acordo com sua própria concepção de significado, as proposições do "Tractatus" são contra-sensos, não possuem conteúdo descritivo, nada dizem e nada mostram, já que não descrevem a realidade, mas constituem tentativas desesperadas de dizer o que não pode ser dito. Wittgenstein parece estar assim diante de um impasse. Porém, reconhece esse paradoxo e afirma que devemos superar as "proposições" do "Tractatus" para podermos ver o mundo corretamente.Na interpretação de Margutti, "isso significa que, ao tentar ultrapassar os limites do dizer, essas 'proposições' acabam nos colocando em contato com o puro mostrar místico, que, uma vez alcançado, revela o que de fato é importante e dispensa os contra-sensos do 'Tractatus'. Nesse momento eles são superados. E a vivência mística tractariana se realiza no interior do mais completo silêncio". É neste sentido que considera o "Tractatus" como uma "iniciação ao silêncio", entendendo assim sua mais famosa proposição, enigmática e sempre citada: "Sobre aquilo de que não se pode falar, deve-se calar". O que teria levado Russell a observar que Wittgenstein tinha dado um jeito de dizer muitas coisas sobre o que não pode ser dito. Por outro lado, isso é coerente com a afirmação wittgensteiniana de que a filosofia não é uma teoria, mas uma atividade. O valor do "Tractatus" está na experiência filosófica que a leitura e o entendimento de suas teses provocam em nós, produzindo assim a elucidação pretendida.Na terceira e última parte, Margutti apresenta-nos sua contribuição mais original. Trata-se de um exame da estrutura e das técnicas argumentativas do "Tractatus" pelo método, elaborado por Margutti, de análise de argumentos filosóficos já aplicado anteriormente à "Origem da Tragédia", de Nietzsche. Dificilmente poderíamos pensar em um texto tão distante do "Tractatus". No entanto, Margutti vê algumas semelhanças entre eles, dentre as quais a influência de Schopenhauer sobre ambos os filósofos. Tanto Nietzsche quanto Wittgenstein teriam adotado formas de argumentação "trágicas" ou anti-socráticas.Nessa acepção, cujo sentido de "anti-socrático" nem sempre fica muito claro, "argumentar" não deve ser entendido como "apresentar razões", mas como "clarificar". A força dos argumentos não está tanto em seu caráter lógico, mas na experiência de pensamento que provocam. Embora Nietzsche atribua a tradição argumentativa de caráter lógico, cuja força do argumento é derivada da racionalidade das provas, a uma origem socrática, desenvolvida e sistematizada por Platão e Aristóteles, creio, contudo, que a dialética socrática, com seu estilo aporético e propósito maiêutico, não está assim tão distante dos estilos argumentativos nietzschiano e wittgensteiniano.Essa discussão, no entanto, não invalida o potencial do método de análise argumentativa que Margutti propõe, revelando a importância da dimensão ética da proposta filosófica do "Tractatus" e mostrando que, ao contrário do que pode parecer à primeira vista, o "Tractatus" não se estrutura mediante uma argumentação lógica, mas visa, por meio da clarificação conceitual, recorrendo ao paradoxo e ao contra-senso, iniciar-nos à descoberta do sentido da vida.

Danilo Marcondes é professor do departamento de filosofia da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro.


Folha de São paulo

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