analisa a recepção crítica da obra do autor de 'A Metamorfose'
MODESTO CARONE
especial para a Folha
Um dos problemas levantados pela obra de Kafka é a sua celebridade. A expressão desse fenômeno é o adjetivo "kafkiano", que encontrou acolhida nas chamadas línguas civilizadas e recebeu, entre outras, as honras léxicas do "Aurélio".
O uso da palavra causa dificuldades por causa da hipertrofia que tem sofrido. É costume dizer que tudo o que é estranho, indevassável e absurdo é "kafkiano", o que descaracteriza, até sem querer, a arte solidamente recortada do autor de Praga. A rigor só é kafkiana -e isso já basta- a situação de impotência do indivíduo moderno (tal como o conhecemos) às voltas com a trama de poder que toma conta de sua vida, sem que ele ache uma saída para esse tipo por assim dizer planetário de alienação. Na verdade é ela que decreta a impossibilidade do personagem construir um destino próprio, o que transforma todos os seus esforços num padrão de iniciativas inúteis.
É natural que uma circunstância assim esclareça por que, neste universo regido por forças que seguem o curso de uma história cega, o anti-herói de Kafka (é o obstáculo que o vence, e não o contrário) seja obrigado a fazer um caminho cuja orientação profunda ele desconhece, sabendo porém que ela existe. Em última análise, ele não é capaz de nomeá-la devido à distância entre o superpoder que o submete e o seu ponto de vista particular, que é sempre parcelado.
Isso quer dizer que o ângulo de inclinação do protagonista, seja ele K., Josef K. ou Georg Bendemann, é tudo o que o distingue, ao mesmo tempo que o impede de entender aquilo que o cerca e invade por dentro e por fora. Mas vale lembrar que essa visão ou falta de visão geral das coisas não é apenas um assunto: ela está introjetada na obra através de um narrador literariamente qualificado e no entanto "insciente", que por isso mesmo se torna a formalização estética do que acontece no plano da matéria narrada. Como em qualquer escritor de primeira ordem, aqui a forma e o conteúdo não desafinam, mantendo um laço de solidariedade tão eficaz que ele chega a parecer "natural".
Voltando à celebridade do escritor, é sabido que ela está historicamente assentada num ato de rejeição. Pois tendo dedicado a vida à ficção ("tudo o que não é literatura me aborrece"), Kafka vira-lhe as costas antes de morrer e pede que a parte do leão de tudo o que escreveu seja destruída. Os estudiosos garantem que ele consentiu em deixar intacta só a sexta parte dos seus escritos -aqueles sete magros volumes de novelas e contos (as designações são problemáticas, mas ainda não há outras melhores) que ele divulgou depois de revisá-los pessoalmente, entre os quais "A Metamorfose". Em outras palavras, foi um escrúpulo de consciência de Max Brod -que se recusou a fazer uma fogueira com os cadernos cobertos de garranchos do amigo- que abriu as portas para muitos enigmas cuja solução é a meta de uma bibliografia gigantesca.
Para mencionar alguns dados expressivos, em 1961 uma bibliografia francesa bastante incompleta arrolava mais de 5.000 títulos, que dez anos depois chegavam à casa dos 10 mil. Títulos, aqui, referiam-se a livros e ensaios, uma vez que já não era mais possível enumerar as resenhas e referências espalhadas pelo mundo. Em meados dos anos 70 já se escrevia mais sobre os textos kafkianos do que sobre o "Fausto" de Goethe, por sinal um dos seus autores prediletos. Em vista disso faz algum sentido perguntar ingenuamente: por quê? A resposta também pode ser ingênua e direta: por muitos motivos -porque ele escreve bem, porque é original, muito intrigante, um dos grandes do século 20 etc. Acima de tudo, é claro, porque várias gerações de leitores do mundo inteiro reconheceram na sua prosa o brilho de uma imagem angustiante e poderosa do nosso tempo. Alguém já disse, com vontade de acertar, que Kafka é um outsider que ocupa o centro da arte contemporânea. O curioso nisso tudo é que ele próprio se considerava um fracasso, como consta na "Carta ao Pai".
Retomando a tentativa de destruição da obra, é conhecido que os manuscritos não publicados até 1924, ano da morte do escritor, eram esboços e fragmentos, a maioria deles bem estruturados, como "O Processo", "O Castelo" e "O Desaparecido" (ex-América), além de dezenas de textos monolíticos, cujo tamanho varia desde o de uma novela até o de um haicai. Max Brod foi forçado a realizar verdadeiras montagens dos cadernos de notas para poder publicá-los. Até o ano de 1927 saíram na Alemanha, por seu intermédio, os três romances. As chamadas "narrativas do espólio" foram lançadas em 1931 e os diários e as cartas em 1937. A edição da ficção completa, iniciada em 1935, foi interrompida pelo nazismo para ressurgir depois em Nova York. (Deriva daí sem dúvida a informação de que a primeira tradução brasileira de "A Metamorfose" foi feita a partir de um incrível "original norte-americano"). Entre 1951 e 1967 a editora S. Fischer, de Frankfurt, incumbiu-se das publicações e o último volume a surgir foram as "Cartas a Milena". O conjunto da obra editada por Brod, que talvez seja o grande mérito intelectual de sua vida, tem 11 livros. Cabe ainda destacar que desde os anos 80 uma equipe internacional de especialistas tem-se dedicado com afinco e sucesso a uma edição crítica dos escritos kafkianos.
Quanto à difusão de Kafka pelo mundo afora, é um fato que ela começou cedo. Na França, por exemplo, graças ao entusiasmo dos surrealistas, algumas narrativas isoladas, como "A Metamorfose" e "O Veredicto", foram traduzidas entre 1928 e 1930. Nos países de língua inglesa as traduções tiveram início nos primeiros anos da década de 30, em trabalhos que se tornaram famosos. Na América Latina o primeiro tradutor de Kafka foi Jorge Luis Borges, que verteu "A Metamorfose" para o espanhol em 1938. A partir do fim da Segunda Guerra Mundial o esquivo artista tcheco ficou conhecido em toda parte e pelo menos "O Processo" e "A Metamorfose" passaram a ser leituras obrigatórias do cidadão civilizado da nossa época.
As interpretações a que essa produção tem sido submetida são de toda espécie. Para falar um pouco no tom de Polônio, no "Hamlet", a respeito das modalidades de peças teatrais, elas podem ser teológicas, existencialistas, psicanalíticas, sociológicas, sócio-estéticas, estilísticas, linguísticas, estruturais, estético-formais e históricas. Mas é útil fazer um corte drástico em toda essa literatura secundária e ficar com alguns ensaios fundamentais, como os de Günther Anders, Walter Benjamin e Theodor Adorno, além das três interpretações que marcam a recepção brasileira de Kafka -a de Otto Maria Carpeaux (em "Cinza do Purgatório"), a de Sérgio Buarque de Holanda (publicada agora em "O Espírito e a Letra", organizado por Antonio Arnoni Prado) e a de Anatol Rosenfeld (em "Texto/Contexto").
Sem entrar na discussão das linhas de exegese usuais, é lícito afirmar que nenhuma delas se legitima quando não fica amarrada aos textos. Adorno adverte que o pressuposto para ler Kafka é a lealdade à letra, embora cada palavra pareça dizer "interprete-me" e se recuse a suportá-lo. De qualquer forma não tem mais cabimento, hoje em dia, conceber este autor como um surrealista, um realista fantástico ou muito menos um cronista do absurdo. Como antídoto para tanto talvez seja suficiente recordar a síntese benjaminiana de 1934, no sentido de que em Kafka todas as deformações são precisas.
Evidentemente isso não implica negar que ele seja um autor difícil em todos os sentidos. Basta ver que não figura na literatura tcheca porque escreveu em alemão e que é no mínimo trabalhoso situá-lo entre os expressionistas alemães, a cuja escola "devia" pertencer. Pois, apesar de contemporânea do expressionismo, que tem por matéria-prima verbal o grito (mesmo que transformado em geometria, como ocorre com Trakl), a linguagem kafkiana é seca e sóbria e ostenta o corte sintático de uma dicção clássica, alheia ao subjetivismo e ao colorido de qualquer dialeto.
Sob este prisma Kafka pode ser pensado como um escritor de vanguarda, mas que emenda em Kleist, elege Flaubert como modelo (depois de descartar Dickens), vai na contracorrente dos prosadores art nouveau de Praga, afasta-se do impressionismo vienense e se apropria literariamente do jargão jurídico e administrativo da monarquia do Danúbio. É razoável portanto o consenso de que para entendê-lo é necessário estabelecer alguns parâmetros capazes de assimilar o seu estilo e por meio dele o seu modo peculiar de compor ficção.
Especialistas reconhecidos distinguem em Kafka um estilo dos primeiros tempos -antes de 1912- que ainda não é "kafkiano", e outro, pleno, cujo ponto de partida é representado pela novela "O Veredicto", escrita quando o ficcionista tinha 29 anos. Baseados no exame das variantes, esses estudiosos registraram uma tendência à expressão empalidecida e à repetição de palavras, o que favorece a sensação de que aqui o insólito está ancorado na reiteração e na seriação de vocábulos comuns. Por outro lado, a retomada constante de alguns ingredientes verbais (como os expletivos) promove uma noção de simplicidade e até de simplificação, quando não de "inabilidade".
O problema é saber se essa suposta falta de jeito não articula um modo paródico de escrever. Sabe-se que Kafka ria alto ao ler para os amigos as suas histórias -o que, ao menos em parte, desmente a imagem de um homem sombrio. Tudo se passa como se a patente expressiva dos cartórios, de linhagem austro-húngara, fosse glosada na representação e disso resultasse um relato recuado. É a existência de dois mundos na paródia que determina o encontro de dois tipos de frase no texto kafkiano: uma curta e direta, que descreve e verifica laconicamente, e outra longa e complicada, que limita as afirmações, refutando-as ou iluminando-as por todos os lados. Além disso, a utilização maciça da linguagem burocrática, que domina muitos contos e passagens cruciais de "O Processo" e "O Castelo", dá margem a uma formulação áspera e empertigada, à qual muitas vezes se opõe, como um sopro de vida, o discurso apaixonado dos personagens que se sentem compreensivelmente ameaçados.
Vista no conjunto, a ficção de Kafka, como Gide notou precocemente, é marcada pela colisão entre a batida fleumática da narração e o aspecto sinistro dos acontecimentos. Para intensificar essa atmosfera de descompasso e mal-estar é decisiva a postura do narrador, que não tem marcas pessoais e não comenta nunca o que conta, limitando-se a levar quem o lê para a "máquina-de-moer" da trama inventada. O exemplo clássico nesse sentido é "A Metamorfose".
Diante disso é mais que previsível que a estratégia artística de Kafka bata de frente tanto na tradição codificada da prosa atual quanto no modo costumeiro de consumi-la. Ao leitor resta a tarefa de conferir.
Modesto Carone é escritor, tradutor e professor de literatura, autor, entre outros, de "As Marcas do Real" (Paz e Terra).
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