A utopia de Mário Pedrosa
12/Set/98
Carlos Zilio
Condenados? A pergunta talvez ilustre a trajetória intelectual de Mário Pedrosa, desde sua afirmação de que o Brasil é um país condenado ao moderno à sua crescente inquietação ao pronunciar a condenação da arte pelo moderno, que havia se desdobrado no que, na década de 1960, ele já denominava de pós-moderno.
A obra de Mário vem sendo objeto de um sistemático estudo realizado por Otília Arantes, que resgata com apuro e rigor a importância de uma obra cuja originalidade intelectual influiu decisivamente sobre sua época e que persiste no presente como uma das mais significativas contribuições a propósito da cultura brasileira e da arte. Daí a relevância desta iniciativa, que, além de oportuna, contém nos prefácios escritos por Otília uma reflexão precisa, capaz de situar o pensamento de Mário em toda a sua dimensão. Atualmente, está sendo lançado o terceiro volume da coleção intitulado "Acadêmicos e Modernos". Essa coleção vem se reunir aos dois livros organizados por Aracy Amaral e ao catálogo e exposições produzidas por Franklin Pedroso.
Assim como seu irmão, estudioso das passagens de Américo Vespúcio por Cabo Frio, Mário possuía um sentimento de Brasil marcado por imensidão e encantamento. Vivências acumuladas de suas peripécias da infância nordestina e da vida adulta pelo país afora, levado pela militância política, sem esquecermos o seu primeiro "exílio", quando jovem foi estudar na Suíça e onde, talvez, precocemente o sentimento de alteridade tenha se manifestado devido ao apelido de "sauvage" que recebe de seus colegas. Seu dilema e sua lucidez buscaram conjugar o encantamento por um país e uma cultura com uma visão atemporal e atopográfica que historicamente tem um nome: utopia. Mário foi sua encarnação.
Ao longo da vida, Pedrosa procura constituir uma equação original para esta proposição cultural já distante dos parâmetros mais esquemáticos do modernismo. Situado num registro universal, o fato de privilegiar o Brasil como terreno do moderno, cria uma tensão produtiva sem gerar fórmulas ou sínteses.
Navegando um tanto ao largo da crítica de arte, à qual só se dedicaria com regularidade a partir de 1946 e voltado principalmente para a militância política, Mário elabora por linhas tortas uma concepção crítica de extremo requinte intelectual. Linhas tortas? Ouso apontar. Em seu ensaio sobre a Missão Francesa, apesar da minuciosa investigação histórica, Pedrosa favorece uma visão organicista em detrimento da importância da ruptura proposta pelos franceses. Nega, com razão, a relevância atribuída pelo modernismo a Almeida Júnior, mas prefere o impressionismo tardio de Visconti, sem atentar para a modernidade de Castagneto e finalmente, só em 1954, assinala as limitações de Portinari.
Contudo, apesar destas contradições, Mário vai se habilitando a ser, por excelência, o crítico da arte moderna brasileira, e o sinal mais evidente deste processo surge na sua tese de 1949, para a Faculdade Nacional de Arquitetura, na qual analisa problemas plásticos por meio de uma ótica gestaltista (seu pioneirismo, aliás, custou-lhe o primeiro lugar). Apesar do empirismo da Gestalt, é evidente a sua importância na formação da arte abstrata e na elaboração de uma sintaxe moderna. Aí estão situados os primeiros fundamentos de Pedrosa; sua crítica, no entanto, nunca é normativa. Baseada em referências amplas, como o respeito pelo conhecimento autônomo da arte e a relação entre modernidade e transgressão social, sua leitura parte da obra de arte e propõe uma apreensão interna do processo constitutivo. Compreendendo a arte "como exercício experimental da liberdade", Mário procura dimensionar e participar dessa experiência.
A questão política é central no seu pensamento e nos envia ao debate dentro da esquerda e à sua opção pelo trotskismo. Em 1938, Mário vai para os Estados Unidos, sede da Quarta Internacional, e consegue um trabalho no Museu da Arte Moderna de Nova York. Neste mesmo ano, a "Partisan Review" publica, com o título de "Arte e Política", uma carta de Trótski contra a concepção stalinista de arte, defendendo uma arte independente e ressaltando sua capacidade subversiva e crítica.
Seria importante apontar, mesmo que genericamente, um paralelo entre a repercussão das proposições de Trótski na crítica norte-americana, particularmente em Greenberg (que publica em 1939 "Avant-Garde e Kitsch") e as concepções de Mário. Ilhado no seu formalismo, Greenberg se coloca como defensor da vanguarda e do progresso e, em nome de uma "qualidade", acaba por colocar a arte num campo neutro e ideal. Já a inspiração trotskista politiza a relação entre arte e exercício da liberdade, bases da proposta de Mário. Não se tratava apenas de uma defesa da instrumentalização ideológica da arte, mas de considerar, segundo ele, os mecanismos que atuam no capitalismo com o propósito de retirar da arte "suas aspirações libertárias" que estavam nas "origens anticapitalistas da arte moderna".
Os artistas brasileiros que mais marcaram a crítica de Pedrosa foram Volpi, Hélio Oiticica e Lygia Clark. Volpi seria o patriarca que teria apontado a possibilidade de inter-relação na arte moderna do nacional e o internacional. Como bem aponta Otília Arantes, referindo-se às posições de Mário nos anos 1950, o que se poderia definir como brasileiro seria a redescoberta de nossa natureza, mas vista "enquanto um constructo-resultado de uma mediação formal, uma experiência a um tempo afetiva e intelectual, filtrada pela organização".
Essa concepção nos permite abordar Volpi e Hélio, mas dificilmente abrangeria Lygia Clark. Neste momento, nota-se nas críticas de Mário um deslocamento que o aproxima a Husserl, movimento que era o apoio necessário para que o grupo neoconcreto se afastasse do gestaltismo em direção a um suporte teórico fenomenológico. Em 1963, Pedrosa faz uma leitura do processo da obra de Lygia Clark que impressiona pela simplicidade e lucidez com as quais acompanha as mudanças do quadro de "cavalete" para as obras relacionais, onde afirma que teria a artista alcançado uma "dimensão primordial", capaz de unir ser e consciência.
A década de 1960 assinala para Mário a evidência da condenação do moderno sob forma de pós-moderno (que identifica com uma certa banalização da arte iniciada pela pop norte-americana). De fato, suas dúvidas aparecem no final dos anos 50, quando já se percebiam sinais de transformação de Brasília -a utopia brasileira- numa espécie de bunker. No plano internacional, Mário acompanhava a tendência da arte à escatologia (lembro-me de sua perplexidade com algumas performances nas quais os artistas se mutilavam ) ou para a convergência da arte com o mercado, o que transformava a transgressão em espetáculo.
Impressiona pensar como, após uma vida de lutas, Mário Pedrosa foi capaz de rearticular seu projeto, ao buscar repotencializar o moderno por meio de novas alianças com as culturas marginalizadas e com as forças sociais emergentes. Evidentemente, ainda se faz presente sua identificação com a utopia, mas há uma inegável tentativa de realizar um projeto político com bases concretas. Seria viável? Para Mário, se o moderno havia se condenado, isso não significava deixar de perseguir uma solução diferente da proposição dominante, comprometida com a inviabilidade da arte e com a impossibilidade de transformação social.
Carlos Zilio é artista plástico.
Folha de São Paulo
12/Set/98
Carlos Zilio
Condenados? A pergunta talvez ilustre a trajetória intelectual de Mário Pedrosa, desde sua afirmação de que o Brasil é um país condenado ao moderno à sua crescente inquietação ao pronunciar a condenação da arte pelo moderno, que havia se desdobrado no que, na década de 1960, ele já denominava de pós-moderno.
A obra de Mário vem sendo objeto de um sistemático estudo realizado por Otília Arantes, que resgata com apuro e rigor a importância de uma obra cuja originalidade intelectual influiu decisivamente sobre sua época e que persiste no presente como uma das mais significativas contribuições a propósito da cultura brasileira e da arte. Daí a relevância desta iniciativa, que, além de oportuna, contém nos prefácios escritos por Otília uma reflexão precisa, capaz de situar o pensamento de Mário em toda a sua dimensão. Atualmente, está sendo lançado o terceiro volume da coleção intitulado "Acadêmicos e Modernos". Essa coleção vem se reunir aos dois livros organizados por Aracy Amaral e ao catálogo e exposições produzidas por Franklin Pedroso.
Assim como seu irmão, estudioso das passagens de Américo Vespúcio por Cabo Frio, Mário possuía um sentimento de Brasil marcado por imensidão e encantamento. Vivências acumuladas de suas peripécias da infância nordestina e da vida adulta pelo país afora, levado pela militância política, sem esquecermos o seu primeiro "exílio", quando jovem foi estudar na Suíça e onde, talvez, precocemente o sentimento de alteridade tenha se manifestado devido ao apelido de "sauvage" que recebe de seus colegas. Seu dilema e sua lucidez buscaram conjugar o encantamento por um país e uma cultura com uma visão atemporal e atopográfica que historicamente tem um nome: utopia. Mário foi sua encarnação.
Ao longo da vida, Pedrosa procura constituir uma equação original para esta proposição cultural já distante dos parâmetros mais esquemáticos do modernismo. Situado num registro universal, o fato de privilegiar o Brasil como terreno do moderno, cria uma tensão produtiva sem gerar fórmulas ou sínteses.
Navegando um tanto ao largo da crítica de arte, à qual só se dedicaria com regularidade a partir de 1946 e voltado principalmente para a militância política, Mário elabora por linhas tortas uma concepção crítica de extremo requinte intelectual. Linhas tortas? Ouso apontar. Em seu ensaio sobre a Missão Francesa, apesar da minuciosa investigação histórica, Pedrosa favorece uma visão organicista em detrimento da importância da ruptura proposta pelos franceses. Nega, com razão, a relevância atribuída pelo modernismo a Almeida Júnior, mas prefere o impressionismo tardio de Visconti, sem atentar para a modernidade de Castagneto e finalmente, só em 1954, assinala as limitações de Portinari.
Contudo, apesar destas contradições, Mário vai se habilitando a ser, por excelência, o crítico da arte moderna brasileira, e o sinal mais evidente deste processo surge na sua tese de 1949, para a Faculdade Nacional de Arquitetura, na qual analisa problemas plásticos por meio de uma ótica gestaltista (seu pioneirismo, aliás, custou-lhe o primeiro lugar). Apesar do empirismo da Gestalt, é evidente a sua importância na formação da arte abstrata e na elaboração de uma sintaxe moderna. Aí estão situados os primeiros fundamentos de Pedrosa; sua crítica, no entanto, nunca é normativa. Baseada em referências amplas, como o respeito pelo conhecimento autônomo da arte e a relação entre modernidade e transgressão social, sua leitura parte da obra de arte e propõe uma apreensão interna do processo constitutivo. Compreendendo a arte "como exercício experimental da liberdade", Mário procura dimensionar e participar dessa experiência.
A questão política é central no seu pensamento e nos envia ao debate dentro da esquerda e à sua opção pelo trotskismo. Em 1938, Mário vai para os Estados Unidos, sede da Quarta Internacional, e consegue um trabalho no Museu da Arte Moderna de Nova York. Neste mesmo ano, a "Partisan Review" publica, com o título de "Arte e Política", uma carta de Trótski contra a concepção stalinista de arte, defendendo uma arte independente e ressaltando sua capacidade subversiva e crítica.
Seria importante apontar, mesmo que genericamente, um paralelo entre a repercussão das proposições de Trótski na crítica norte-americana, particularmente em Greenberg (que publica em 1939 "Avant-Garde e Kitsch") e as concepções de Mário. Ilhado no seu formalismo, Greenberg se coloca como defensor da vanguarda e do progresso e, em nome de uma "qualidade", acaba por colocar a arte num campo neutro e ideal. Já a inspiração trotskista politiza a relação entre arte e exercício da liberdade, bases da proposta de Mário. Não se tratava apenas de uma defesa da instrumentalização ideológica da arte, mas de considerar, segundo ele, os mecanismos que atuam no capitalismo com o propósito de retirar da arte "suas aspirações libertárias" que estavam nas "origens anticapitalistas da arte moderna".
Os artistas brasileiros que mais marcaram a crítica de Pedrosa foram Volpi, Hélio Oiticica e Lygia Clark. Volpi seria o patriarca que teria apontado a possibilidade de inter-relação na arte moderna do nacional e o internacional. Como bem aponta Otília Arantes, referindo-se às posições de Mário nos anos 1950, o que se poderia definir como brasileiro seria a redescoberta de nossa natureza, mas vista "enquanto um constructo-resultado de uma mediação formal, uma experiência a um tempo afetiva e intelectual, filtrada pela organização".
Essa concepção nos permite abordar Volpi e Hélio, mas dificilmente abrangeria Lygia Clark. Neste momento, nota-se nas críticas de Mário um deslocamento que o aproxima a Husserl, movimento que era o apoio necessário para que o grupo neoconcreto se afastasse do gestaltismo em direção a um suporte teórico fenomenológico. Em 1963, Pedrosa faz uma leitura do processo da obra de Lygia Clark que impressiona pela simplicidade e lucidez com as quais acompanha as mudanças do quadro de "cavalete" para as obras relacionais, onde afirma que teria a artista alcançado uma "dimensão primordial", capaz de unir ser e consciência.
A década de 1960 assinala para Mário a evidência da condenação do moderno sob forma de pós-moderno (que identifica com uma certa banalização da arte iniciada pela pop norte-americana). De fato, suas dúvidas aparecem no final dos anos 50, quando já se percebiam sinais de transformação de Brasília -a utopia brasileira- numa espécie de bunker. No plano internacional, Mário acompanhava a tendência da arte à escatologia (lembro-me de sua perplexidade com algumas performances nas quais os artistas se mutilavam ) ou para a convergência da arte com o mercado, o que transformava a transgressão em espetáculo.
Impressiona pensar como, após uma vida de lutas, Mário Pedrosa foi capaz de rearticular seu projeto, ao buscar repotencializar o moderno por meio de novas alianças com as culturas marginalizadas e com as forças sociais emergentes. Evidentemente, ainda se faz presente sua identificação com a utopia, mas há uma inegável tentativa de realizar um projeto político com bases concretas. Seria viável? Para Mário, se o moderno havia se condenado, isso não significava deixar de perseguir uma solução diferente da proposição dominante, comprometida com a inviabilidade da arte e com a impossibilidade de transformação social.
Carlos Zilio é artista plástico.
Folha de São Paulo
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