quinta-feira, 23 de outubro de 2008

OLINDA RESTAURADA

Evaldo Cabral de Mello
12/Dez/98
Pedro Puntoni
História

Em 1615, Antoine de Montchrétien escreveu: "É impossível fazer a guerra sem soldados, sustentá-los sem soldo, pagar os seus soldos sem tributos e criar tributos sem comércio". Essa é a nova epígrafe da segunda edição, revista e aumentada, de "Olinda Restaurada". Quando foi publicado pela primeira vez, em 1975, o livro de estréia de Evaldo Cabral de Mello trazia por mote um trecho de um sermão do padre Antônio Vieira. A mudança já nos diz muito: a sentença do economista francês, em seu "Tratado de Economia Política", revela mais o livro do que a parábola barroca do jesuíta.Muito já se escreveu sobre "Olinda Restaurada". Em 1979, Fernand Braudel, no terceiro volume de "Civilização Material e Capitalismo", reparava como a história da guerra luso-holandesa no Brasil era "brilhantemente apresentada no livro recente de um jovem historiador brasileiro". Charles R. Boxer, autor das melhores abordagens supranacionais da história luso-brasileira, alertava que "essa obra pressupõe no leitor algum conhecimento da história narrativa da 'Ilíada pernambucana', mas, para aqueles que a conhecem, ela é inegavelmente o mais satisfatório e esclarecedor estudo neste campo".Contudo, modificar um livro que se tornou um clássico não parecerá um contra-senso? A tentação está aí, para todos os autores, ainda mais para aqueles tão próximos de seus textos, quer dizer, tão entretidos em seu ofício -coisa não muito comum nos dias que correm. Laborioso, Cabral de Mello tratou de ajustar suas teses e movimentos explicativos. Rematou minuciosamente a pesquisa documental e atualizou o diálogo com a historiografia. Além disso, fez correções de estilo e realocou as tabelas em um anexo ao final. Por fim, é patente a maior preocupação com a dimensão narrativa: várias passagens foram reordenadas para tornar o movimento analítico mais adequado à cronologia. Com isso, o livro ganhou um frescor surpreendente.No ano passado, o autor já havia publicado uma revisão de "Rubro Veio" (originalmente de 1986), estudo do imaginário da restauração pernambucana. A oportunidade de apuração de sua obra não significa um apego conservantista, muito pelo contrário. Cabral de Mello destaca-se também como um dos mais produtivos historiadores de nossa seara. Após publicar sua história da "fronda dos mazombos", em 1996, ele acaba de dar à estampa uma história das negociações luso-neerlandesas em torno do domínio do Nordeste açucareiro ("O Negócio do Brasil: Portugal, os Países Baixos e o Nordeste, 1641-1669", Topbooks, 1998). Disto decorre, com certeza, o cuidado da nova edição de "Olinda Restaurada" em melhor descrever o contexto europeu e as questões diplomáticas envolvidas. Além disso, percebe-se a cautela no uso de alguns conceitos que ele mesmo fez por superar em outros trabalhos. Pode-se observar, por exemplo, o abandono do termo "absolutismo" para descrever a monarquia portuguesa no Seiscentos.A tese central do livro está mantida, é claro. Trata-se de mostrar que o sentido último da dominação holandesa encontra-se na guerra, e de compreender seu impacto na sociedade do Nordeste açucareiro. Neste sentido, o escopo de "Olinda Restaurada" é uma história social da guerra no contexto colonial. Excluindo-se o breve episódio na Bahia (1624-1625), a guerra dos luso-brasileiros contra os holandeses pode ser dividida em dois períodos: a guerra de resistência (1630-1637) e a guerra de restauração (1645-1654). Isto significa que, dos 24 anos da dominação da Companhia das Índias Ocidentais, o Nordeste assistiu apenas oito anos de paz, sendo que apenas quatro foram de paz efetiva. Baseado em pesquisa documental formidável, o autor demonstra como essas foram "guerras pelo açúcar, vale dizer, pelo controle das suas fontes brasileiras de produção, mas também no sentido, que é o deste livro, de guerras sustentadas pelo açúcar, ou antes, pelo sistema econômico e social que se desenvolvera no Nordeste com o fim de produzi-lo e exportá-lo para o mercado europeu".O primeiro capítulo trata das diversas estratégias militares de ambos os lados da contenda. A equação entre a iniciativa terrestre ou a marítima condicionou o grau da utilização dos recursos locais. O olho do historiador volta-se, então, para o financiamento da guerra. Os dois capítulos seguintes tratam do regime do comércio luso-brasileiro e de como o prosseguimento das relações mercantis permitia o financiamento da guerra, seja nas condições do comércio "livre", seja com a Companhia Geral do Comércio do Brasil, criada em 1649. Segundo Cabral de Mello, a guerra foi "uma empresa predominantemente local, dependendo quase exclusivamente dos rendimentos obtidos na terra, sobretudo do imposto extraordinário sobre o açúcar".O quarto capítulo, "O Dever e o Haver", faz um balanço das finanças da resistência e da restauração e revela como a segunda foi muito mais do que a primeira uma guerra do açúcar, uma vez que esse "donativo do açúcar" foi seu verdadeiro nervo. Esse capítulo encerra a melhor análise do sistema fiscal do Estado do Brasil como um todo. Isso é um bom exemplo de como, no ambiente de carência que particulariza nossa historiografia, questões específicas impõem às vezes que o historiador desfie análises mais compreensivas capazes de dar sentido ao caso.A composição das tropas é estudada no quinto capítulo, "Gente de Guerra", e revela a presença superior do contingente local. No capítulo seguinte, o autor analisa as divergências que existiam entre as concepções militares convencionais e as da "guerra do Brasil", como era chamada o modo peculiar de "guerra volante" ou de guerrilhas praticada pelas tropas locais, compostas sobretudo de mulatos e índios. A "guerra do Brasil" diferia das técnicas científicas de guerra tão em voga na Europa moderna. O autor analisa o processo de marginalização da arte da guerra em Portugal -muito em razão de ter sido poupada, pelo menos até a guerra de restauração com a Espanha (1640-1668), de conflitos em escala no continente- e seu desdobramento, em segundo grau, na América portuguesa. Com efeito, a superioridade obtida pelas forças luso-brasileiras fora garantida pela capacidade de assimilação e de acomodação de técnicas e estratégias nativas, adaptando-as aos contextos ecológicos e sociais mais diversos.O último capítulo, "A Querela dos Engenhos", trata das disputas de interesses entre os proprietários dos engenhos confiscados pelos holandeses e os novos proprietários luso-brasileiros; para, então, discutir as razões sociais da restauração, originada de uma "constelação de interesses no Reino, na Bahia e em Pernambuco", e suas consequências na política da sociedade colonial no imediato pós-guerra. Abre-se aqui a temática de "Rubro Veio" e da "Fronda dos Mazombos".Evaldo Cabral de Mello é um dos nossos mestres mais atentos ao específico do fazer historiográfico. Em sua obra podemos apreender como a diferença da história em relação às demais ciências humanas é de método e de forma do discurso. Neste sentido, seus estudos têm procurado relacionar sistematicamente os eventos militares e políticos com as estruturas sociais e econômicas, nos termos que articulem a narrativa à história social, isto é, as duas abordagens predominantes na historiografia do século 20. Não é outra a proposta de "Olinda Restaurada".
Pedro Puntoni é doutor em história social pela USP.
Folha de São Paulo

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