FRANK PHILIPS
Um capítulo da psicanálise no Brasil
10/Out/98
Renato Mezan
Embora no Brasil a psicanálise exista há quase tanto tempo quanto em outros lugares, por aqui são raras as publicações que se debruçam sobre esta história: de onde a importância do livro organizado por três analistas de São Paulo, que reúne artigos, conferências e seminários de Frank Julian Philips.
Originário da Austrália, onde nasceu em 1906, iniciou sua formação nos EUA. Em 1948, muda-se para Londres e lá permanece por 20 anos, analisando-se com Melanie Klein e depois com Wilfred Bion. A convite de Virgínia Bicudo, uma das pioneiras da psicanálise em São Paulo, retorna em 1969 à nossa cidade e aqui permanece até 1997, quando volta definitivamente para a Inglaterra.
Philips talvez tenha sido, em nosso meio, o analista que individualmente mais influência exerceu. Quando se instala em São Paulo, a tendência predominante na Sociedade Brasileira de Psicanálise -por diversas razões que agora não vêm ao caso- era a kleiniana. O fato de ter sido paciente de Melanie Klein dava-lhe assim uma espécie de credibilidade a priori; mas esta análise fora completada por uma outra, realizada com Bion, e que para ele foi incomparavelmente mais importante. Philips tornou-se assim o introdutor entre nós do pensamento de seu analista, bem como da prática nele inspirada, chegando a organizar -nos anos 70- três visitas do analista inglês a São Paulo (1). Estas visitas, bem como a prática do próprio Philips, criaram uma atmosfera favorável à recepção do pensamento de Bion, com o resultado de que rapidamente se formou, na Sociedade, uma "ala bioniana" -fato único no mundo e que não deixa de surpreender mesmo os analistas de Londres que ocasionalmente aqui aportam. Prova disso é que, ainda hoje, existe na revista "Ide" (publicada pela Sociedade) a seção permanente "Supervisão com Dr. Bion" (sic); ali são transcritas as gravações destes seminários, preservadas com carinho pelos que deles participavam.
"Psicanálise do Desconhecido" é o testemunho da atividade deste psicanalista. O livro traz alguns artigos e conferências, mas seus aspectos mais interessantes se encontram, a meu ver, nas 15 sessões de um seminário clínico que se iniciou em 1994. Ali vemos Philips em ação, e é preciso reconhecer que, aos 86 anos, as características do seu trabalho e de sua forma de conceber a psicanálise haviam atingido um notável grau de concentração.
Numa longa e substanciosa entrevista, ele mesmo define o que diferencia a "sua" psicanálise da "psicanálise clássica": "Essencialmente, consiste em respeitar a diferença entre a realidade psíquica não-sensorial e a realidade psíquica sensorial". O analista deve estar atento para as manifestações da primeira e isto exige uma estrita disciplina: a de "suspender o quanto for possível toda necessidade de compreender, todo desejo, toda memória". Philips se refere ao que denomina "atmosfera de escuridão", certamente próxima da vida onírica; a seu ver, esta é a condição sine qua non para que se torne visível aquilo que está potencialmente presente. E o conceito de "presente" tem aqui um sentido forte, já que se exclui qualquer passado e qualquer futuro: num dos seminários, o ouvimos dizer a propósito de algo que o paciente havia contado sobre um momento anterior de sua vida: "Pensei: por que 'antes'? Antes não existe mais. Esta foi minha maneira de ouvir, e cortei fora, como corto fora nas sessões qualquer dado histórico e qualquer futuro".
Por que tamanha radicalidade? Porque o autor está convencido de que "memória' é apenas outro nome para 'mentiras psíquicas'", que dificultariam o acesso ao "aqui e agora", matéria-prima para a "intuição analítica". Esta é a faculdade que o analista precisa ter desenvolvido, graças à sua própria análise, e que lhe permitirá "alucinar" (no sentido de "fantasiar") o que está se passando na sessão. E é a esta prática sistemática da alucinação que se atribuem as transformações operadas pela análise, a qual transcorre, por assim dizer, num "present continuous".
Philips reconhece que, "para o analista treinado em qualquer parte do mundo, isso parece algo estranho, uma coisa meio curiosa". E é preciso convir que assim é: o analista em questão se perguntará que fim levaram as idéias de Freud sobre a repetição, a transferência, a interpretação ... ? Será isto ainda psicanálise?
Certamente, entre Bion e Freud há muitas diferenças, resultantes da absorção pelo primeiro das idéias de Melanie Klein, do seu extenso trabalho com esquizofrênicos -tipo de pacientes que Freud tratou muito raramente- e também da sua própria sensibilidade pessoal.
Mas, para além das provocações -e penso que há, na assertividade dogmática de Philips, um quê de provocação- a leitura do livro mostra muitos pontos de contato entre a prática do autor e a tradição clássica. O vocabulário é diferente, a conceitualização do processo também; mas a visada é ainda "tornar consciente o inconsciente", e o instrumento essencial ainda é a interpretação da transferência. Quanto à desconfiança do passado e do futuro, talvez ela seja mais programática do que pragmática. Veja-se este exemplo: "Quando todos (os pacientes) chegam atrasados por causa do tráfego, pode-se mostrar que isto se refere a algo da infância, quando a gente estava tentando falar, andar, e ainda não podia". Em matéria de reconstrução pela interpretação da transferência -o que define a prática psicanalítica, segundo Freud-, não se poderia ser mais "quadrado"... O mesmo vale para o que Philips chama a "disciplina", ou seja, aquilo que permite ao analista limitar suas projeções e desempenhar sua função: outros usam nomes diferentes, mas "un chat est un chat" ...
Em suma: o livro apresenta um analista que reflete com franqueza e honestidade sobre o que faz e, ao fazer isso, revela talvez mais nas estrelinhas do que nas linhas. Estas são certamente importantes, mas, para os já convertidos, talvez não tragam grandes novidades. Para os demais leitores, caso considerem Bion um autor instigante e desejem se aproximar dele por meio da prática de um de seus mais talentosos discípulos, "Psicanálise do Desconhecido" é uma boa porta de entrada. Entrada num mundo que tem algo de familiar e algo de insólito, ou, como diria Freud, de "unheimlich". Como, aliás, a própria psicanálise, esta ciência que não é ciência, que se especializa em predizer o passado, e que -me perdoem os que vivem anunciando sua morte iminente- entra com invejável vigor no seu segundo século de existência.
NOTA
1. A este respeito, ver Renato Mezan - "Figura e Fundo: Notas sobre o Campo Psicanalítico no Brasil", e Daniel Delouya - "Bion: Um Pensamento às Voltas com a Guerra". Em: Revista "Percurso", nº 20 , Janeiro de 1998.
Renato Mezan é psicanalista e autor, entre outros livros, de "Figuras da Teoria Psicanalítica" (Escuta/Edusp).
Folha de São Paulo
Um capítulo da psicanálise no Brasil
10/Out/98
Renato Mezan
Embora no Brasil a psicanálise exista há quase tanto tempo quanto em outros lugares, por aqui são raras as publicações que se debruçam sobre esta história: de onde a importância do livro organizado por três analistas de São Paulo, que reúne artigos, conferências e seminários de Frank Julian Philips.
Originário da Austrália, onde nasceu em 1906, iniciou sua formação nos EUA. Em 1948, muda-se para Londres e lá permanece por 20 anos, analisando-se com Melanie Klein e depois com Wilfred Bion. A convite de Virgínia Bicudo, uma das pioneiras da psicanálise em São Paulo, retorna em 1969 à nossa cidade e aqui permanece até 1997, quando volta definitivamente para a Inglaterra.
Philips talvez tenha sido, em nosso meio, o analista que individualmente mais influência exerceu. Quando se instala em São Paulo, a tendência predominante na Sociedade Brasileira de Psicanálise -por diversas razões que agora não vêm ao caso- era a kleiniana. O fato de ter sido paciente de Melanie Klein dava-lhe assim uma espécie de credibilidade a priori; mas esta análise fora completada por uma outra, realizada com Bion, e que para ele foi incomparavelmente mais importante. Philips tornou-se assim o introdutor entre nós do pensamento de seu analista, bem como da prática nele inspirada, chegando a organizar -nos anos 70- três visitas do analista inglês a São Paulo (1). Estas visitas, bem como a prática do próprio Philips, criaram uma atmosfera favorável à recepção do pensamento de Bion, com o resultado de que rapidamente se formou, na Sociedade, uma "ala bioniana" -fato único no mundo e que não deixa de surpreender mesmo os analistas de Londres que ocasionalmente aqui aportam. Prova disso é que, ainda hoje, existe na revista "Ide" (publicada pela Sociedade) a seção permanente "Supervisão com Dr. Bion" (sic); ali são transcritas as gravações destes seminários, preservadas com carinho pelos que deles participavam.
"Psicanálise do Desconhecido" é o testemunho da atividade deste psicanalista. O livro traz alguns artigos e conferências, mas seus aspectos mais interessantes se encontram, a meu ver, nas 15 sessões de um seminário clínico que se iniciou em 1994. Ali vemos Philips em ação, e é preciso reconhecer que, aos 86 anos, as características do seu trabalho e de sua forma de conceber a psicanálise haviam atingido um notável grau de concentração.
Numa longa e substanciosa entrevista, ele mesmo define o que diferencia a "sua" psicanálise da "psicanálise clássica": "Essencialmente, consiste em respeitar a diferença entre a realidade psíquica não-sensorial e a realidade psíquica sensorial". O analista deve estar atento para as manifestações da primeira e isto exige uma estrita disciplina: a de "suspender o quanto for possível toda necessidade de compreender, todo desejo, toda memória". Philips se refere ao que denomina "atmosfera de escuridão", certamente próxima da vida onírica; a seu ver, esta é a condição sine qua non para que se torne visível aquilo que está potencialmente presente. E o conceito de "presente" tem aqui um sentido forte, já que se exclui qualquer passado e qualquer futuro: num dos seminários, o ouvimos dizer a propósito de algo que o paciente havia contado sobre um momento anterior de sua vida: "Pensei: por que 'antes'? Antes não existe mais. Esta foi minha maneira de ouvir, e cortei fora, como corto fora nas sessões qualquer dado histórico e qualquer futuro".
Por que tamanha radicalidade? Porque o autor está convencido de que "memória' é apenas outro nome para 'mentiras psíquicas'", que dificultariam o acesso ao "aqui e agora", matéria-prima para a "intuição analítica". Esta é a faculdade que o analista precisa ter desenvolvido, graças à sua própria análise, e que lhe permitirá "alucinar" (no sentido de "fantasiar") o que está se passando na sessão. E é a esta prática sistemática da alucinação que se atribuem as transformações operadas pela análise, a qual transcorre, por assim dizer, num "present continuous".
Philips reconhece que, "para o analista treinado em qualquer parte do mundo, isso parece algo estranho, uma coisa meio curiosa". E é preciso convir que assim é: o analista em questão se perguntará que fim levaram as idéias de Freud sobre a repetição, a transferência, a interpretação ... ? Será isto ainda psicanálise?
Certamente, entre Bion e Freud há muitas diferenças, resultantes da absorção pelo primeiro das idéias de Melanie Klein, do seu extenso trabalho com esquizofrênicos -tipo de pacientes que Freud tratou muito raramente- e também da sua própria sensibilidade pessoal.
Mas, para além das provocações -e penso que há, na assertividade dogmática de Philips, um quê de provocação- a leitura do livro mostra muitos pontos de contato entre a prática do autor e a tradição clássica. O vocabulário é diferente, a conceitualização do processo também; mas a visada é ainda "tornar consciente o inconsciente", e o instrumento essencial ainda é a interpretação da transferência. Quanto à desconfiança do passado e do futuro, talvez ela seja mais programática do que pragmática. Veja-se este exemplo: "Quando todos (os pacientes) chegam atrasados por causa do tráfego, pode-se mostrar que isto se refere a algo da infância, quando a gente estava tentando falar, andar, e ainda não podia". Em matéria de reconstrução pela interpretação da transferência -o que define a prática psicanalítica, segundo Freud-, não se poderia ser mais "quadrado"... O mesmo vale para o que Philips chama a "disciplina", ou seja, aquilo que permite ao analista limitar suas projeções e desempenhar sua função: outros usam nomes diferentes, mas "un chat est un chat" ...
Em suma: o livro apresenta um analista que reflete com franqueza e honestidade sobre o que faz e, ao fazer isso, revela talvez mais nas estrelinhas do que nas linhas. Estas são certamente importantes, mas, para os já convertidos, talvez não tragam grandes novidades. Para os demais leitores, caso considerem Bion um autor instigante e desejem se aproximar dele por meio da prática de um de seus mais talentosos discípulos, "Psicanálise do Desconhecido" é uma boa porta de entrada. Entrada num mundo que tem algo de familiar e algo de insólito, ou, como diria Freud, de "unheimlich". Como, aliás, a própria psicanálise, esta ciência que não é ciência, que se especializa em predizer o passado, e que -me perdoem os que vivem anunciando sua morte iminente- entra com invejável vigor no seu segundo século de existência.
NOTA
1. A este respeito, ver Renato Mezan - "Figura e Fundo: Notas sobre o Campo Psicanalítico no Brasil", e Daniel Delouya - "Bion: Um Pensamento às Voltas com a Guerra". Em: Revista "Percurso", nº 20 , Janeiro de 1998.
Renato Mezan é psicanalista e autor, entre outros livros, de "Figuras da Teoria Psicanalítica" (Escuta/Edusp).
Folha de São Paulo
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