segunda-feira, 27 de outubro de 2008

HISTÓRIA DO MARXISMO NO BRASIL - VOLUME 3

Questões do passado e do presente
10/Out/98
Ricardo Musse


A publicação do terceiro volume da "História do Marxismo no Brasil", um projeto coletivo coordenado por João Quartim de Moraes, confirma o caráter monumental desse empreendimento bem como o apuro e a competência com que tem sido levado adiante, mas também deixa visível as limitações inerentes a um recorte previamente estabelecido e quase sempre seguido à risca.
Esse volume completa o "primeiro eixo temático", dedicado à recepção das idéias marxistas e abre uma outra linha voltada para a apresentação da interpretação do Brasil fornecida a partir desse ideário. O primeiro livro (Paz e Terra, 1991) compõe-se de uma série de artigos direcionados para uma avaliação do impacto, em nosso país, de revoluções de inspiração marxista, em especial a Revolução Russa de 1917, a Chinesa de 1949 e a Cubana no final da década de 1950. O segundo volume (Ed. da Unicamp, 1995), além de contemplar os influxos teóricos na política, na economia e na filosofia, debruça-se sobre a influência de Lukács e Trótski no Brasil.
"Teorias - Interpretações", o subtítulo desse terceiro livro procura explicitar o caráter dual desse volume, ao mesmo tempo fecho da série dedicada aos influxos teóricos (com artigos sobre Althusser e Gramsci) e primeira parte de um balanço sobre a compreensão marxista da história e da sociedade brasileira.
O artigo de Décio Saes, voltado especificamente para o mapeamento do impacto da teoria althusseriana da história na vida intelectual brasileira, ao se ater fielmente ao projeto original, torna evidente as dificuldades de um recorte que separa teoria e interpretação. Mesmo levando em conta que essa dicotomia deriva em parte da influência de Althusser na delimitação dos contornos desse empreendimento, ou ainda, o fato de que a corrente althusseriana (um grupo interdisciplinar de trabalho) opera com essa clivagem, não deixa de ser uma pena que Saes tenha se limitado (mesmo ocupando quase um terço das páginas do livro) à discussão teórica do materialismo histórico. Embora essa discussão, dos anos 60 aos 80, tenha sido mediatizada, seja a favor ou contra, pela recepção de Althusser e tenha impulsionado um refinamento conceitual do marxismo brasileiro, seu sentido último -como não podia deixar de ser entre marxistas- estava voltado para a compreensão da especificidade do capitalismo no Brasil. Só resta ao leitor lamentar que Saes não tenha voltado o seu talento e sua competência (demonstrados exaustivamente na brilhante reconstrução das idéias de Althusser) para esse ponto decisivo.
No artigo seguinte, Carlos Nelson Coutinho, com a clareza, elegância e concisão de sempre, apresenta tanto uma coisa quanto outra. Além de repertoriar brevemente a recepção de Gramsci no Brasil (à esquerda e à direita; no PCB, nas comunidades da Igreja e no PT) atém-se ao uso (o já delineado e aquele que ainda está por ser feito) das categorias de Gramsci na interpretação da sociedade brasileira. O problema aqui é a impossibilidade de um distanciamento, ou melhor, de uma maior isenção do juízo, pois como se sabe, num caso como no outro, na recepção ou na aplicação das categorias de Gramsci ao Brasil, Carlos Nelson é não só pioneiro como protagonista.
Cinco artigos esmiuçam alguns aspectos da interpretação marxista do Brasil. Quartim de Moraes acompanha as oscilações nas análises de conjuntura do PCB entre 1944 e 1954, um dos períodos em que este partido foi mais influente na vida política brasileira. O eixo da compreensão da prática dos comunistas nesse momento concentra-se na legalização e posterior cassação do registro do PCB, um episódio circunscrito pelo início da Guerra Fria, mas também, como mostra Quartim, pelo desrespeito à legalidade democrática encetado pelos três poderes (em especial pelo Supremo Tribunal Eleitoral que, não é de hoje, sempre se eximiu de prestar contas de seus atos à sociedade). Esse relato, por dramático e revelador que seja, é no entanto insuficiente para explicar o paradoxo do PCB nesse época: afinal, os comunistas apoiaram Getúlio no estertor de seu período ditatorial e depois opuseram-se a ele quando sua política esteve mais afinada com as teses do PCB, em seu mandato democrático, nacionalista e popular (1950-54).
Carlos Alberto Dória enfrentou a questão mais controvertida e importante do debate marxista entre nós, a especificidade do capitalismo brasileiro. Seu relato, afora uma ou outra lacuna, abrange tanto os teóricos do dualismo (dos contrastes de Capistrano de Abreu e Roger Bastide ao dualismo estrutural de Inácio Rangel) quanto os críticos dessa tese (basicamente Andrew Gunder Frank e Francisco de Oliveira), passando pelo etapismo do PCB que não dispensava uma caracterização feudal do Brasil (tópico aprofundado por Alberto Passos Guimarães e Werneck Sodré). Entre os muitos méritos do artigo de Dória, além de repor em circulação um debate que não perdeu atualidade, cabe lembrar o resgate de Gunder Frank e Francisco de Oliveira, dois teóricos que continuam impulsionando a renovação do marxismo brasileiro nos dias atuais. Oliveira, diretamente, pelos seus livros e pela sua militância intelectual, e Gunder Frank por sua influência sobre dois autores hoje centrais no debate contemporâneo: Giovanni Arrighi e Immanuel Wallerstein.
Caio Navarro de Toledo analisa os intelectuais do Iseb (Instituto Superior de Estudos Brasileiros, um órgão vinculado diretamente à Presidência da República entre 1955 e 1964), procurando destacar as divergências entre eles no que tange à sua posição diante do marxismo e do PCB. Enquanto Hélio Jaguaribe defendia a viabilidade (apesar da iminência sempre reiterada do caos social) do capitalismo entre nós, Guerreiro Ramos ensaiava uma crítica de esquerda ao PCB, Álvaro Vieira Pinto e Nélson Werneck Sodré tinham uma posição de maior proximidade com os comunistas. Aqui, a novidade em relação ao seu livro (o já clássico "Iseb, Fábrica de Ideologias", recentemente reeditado pela Ed. da Unicamp) é que Caio Navarro esboça nas suas considerações finais um confronto entre o Iseb e o grupo de intelectuais da USP organizados num seminário sobre "O Capital". Pena que o ensaísta tenha acreditado na lenda (fato grave em se tratando de um marxista) de que "a motivação que reunia o grupo não era política, mas fundamentalmente teórica". Teria sido muito frutífero examinar se a ojeriza uspiana ao Iseb tem algo a ver com o esforço de desmonte da nação que o líder do "seminário Marx" empreende no momento com o aval (ou pelo menos com o silêncio cúmplice) de seus colegas de então (com a solitária exceção de Paul Singer).
Celso Frederico examina a política cultural dos comunistas no pós-64, um período em que a hegemonia intelectual da esquerda no Brasil não se confunde com o predomínio das teses do PCB. Destaca com precisão os dois pontos de clivagem no debate da época: a avaliação da política global do PCB antes de 1964 e a querela do nacionalismo na arte. No entanto, tende a separar essas duas questões, no período entrelaçadas numa teia bastante complexa, como se pode ver no filme "Terra em Transe", de Glauber Rocha. O ponto alto do artigo, no entanto, situa-se na tentativa de mostrar o despreparo geral da esquerda diante da implantação e da hegemonia da "indústria cultural" no Brasil. Aqui, porém, permanece uma lacuna. Como explicar que os intelectuais mais engajados e politizados da época (alguns próximos ou filiados ao PCB como Guarnieri, Dias Gomes e Ferreira Gullar) tenham se adaptado tão facilmente à nova ordem e que apenas poucos -dentre eles a "ovelha negra" das análises do período, José Celso Martinez Côrrea- tenham se recusado a participar da produção "global"?
Por fim, Antônio Albino Canelas Rubim faz um inventário exaustivo dos aparelhos ideológicos do PCB, em particular de seus inúmeros jornais e revistas e do seu aparato editorial. Na periodização de Rubim o marxismo no Brasil esteve majoritariamente associado aos comunistas até 1956. A partir de então o marxismo dissocia-se do PCB em variantes que vão da vida universitária às agremiações dissidentes. Esse dado não deixa de colocar em xeque o projeto global desse volume, em especial a segunda parte, dedicada às interpretações do Brasil. Dá-se um peso excessivo ao PCB, num período em que ele já não era mais hegemônico. A vinculação, no passado, de muitos dos autores dessa coletânea com esse partido, acaba convertendo, em parte, o balanço do marxismo no Brasil em um acerto de contas com o PCB. Assim, não é de se espantar que questões do presente aflorem com nitidez. Quartim e Carlos Nelson, por exemplo, não deixam de ressaltar uma continuidade entre o antigo PCB e o PT, principalmente pela importância que dão à defesa da democracia no Brasil, uma tarefa hoje, infelizmente, cada vez mais restrita aos militantes e aos partidos de esquerda.
Ricardo Musse é professor de filosofia na Unesp.

Folha de São Paulo

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