12/Dez/98
Célia Galvão Quirino
Uma nova tradução brasileira de "De la Démocratie en Amérique" só pode ser bem-vinda. É uma tradução correta do texto estabelecido pela editora Garnier-Flammarion, de 1981 (1).Sem dúvida, trata-se da obra mais conhecida de Tocqueville. Nos dois momentos de sua primeira publicação, o primeiro volume em 1835 e o segundo cinco anos depois, o sucesso foi imediato entre os franceses, ingleses e americanos. Como Tocqueville contava com admiradores de suas idéias na Inglaterra (por exemplo, Stuart Mill), a tradução inglesa de H. Reeve dos dois volumes aparece no mesmo ano de cada edição original. A absorção das idéias de Tocqueville sobre democracia pelas elites intelectual e política inglesas foi instantânea. Melhor do que os franceses, os ingleses rapidamente atinaram com o aspecto político e sociológico dessa obra. Apesar desse imenso sucesso de "A Democracia", esse interesse não foi permanente. Os próprios acontecimentos históricos concediam-lhe maior ou menor atualidade e presença. Talvez por isso a sua leitura, mesmo na França, não tenha sido uma constante. É verdade que os americanos nunca a deixaram de ler. Até hoje é e sempre foi objeto de estudo obrigatório dos cursos de "american studies" nas universidades. Possivelmente, a atração dos americanos advenha do fato de enxergarem nessa obra uma descrição correta sobre a sociedade e o governo dos EUA, como modelo a ser seguido pelas outras nações, mais do que uma complexa e elaborada discussão sobre a democracia no âmbito das teorias sociológica e política. Embora essa obra tenha sido construída com base numa imensa pesquisa sobre a sociedade, a política e mesmo sobre o caráter do homem americano, ao fazê-la, Tocqueville procura apontar para o significado da democracia como um processo de igualização crescente e como um fenômeno mundial irresistível.Uma vez que, para Tocqueville, esse fenômeno da democracia abrange todos os aspectos sociais e políticos de uma sociedade, consequentemente é total e igualizante. A única oposição salvadora a esse igualitarismo massificante, alienante e contraditoriamente capaz de desenvolver um individualismo pernicioso, isto é egoísta, diante da sociedade e do Estado, é o empreendimento de uma ação constante pela existência e manutenção das liberdades da cidadania. Somente essa prática política salvaria o homem democrático da servidão, da barbárie. Seu discurso político é sempre um manifesto sobre a importância da compatibilidade da democracia, como uma situação de igualdade de condições, com a necessidade da manutenção da liberdade do indivíduo como cidadão.Em suas análises da realidade concreta, sua maior preocupação é com o processo democrático na França. Procura sempre mostrar como nesse país poderia ser evitado o surgimento de uma sociedade de massa e de uma classe burguesa dominante, na qual valores artísticos e intelectuais não tivessem vez. Além disso, via com imenso temor o aumento de concentração e centralização do poder já tão forte como tendência no Estado moderno francês. Para ele, o modelo americano também corria esses perigos, mas, até então, parecia ter conseguido evitá-los pelas suas leis, suas instituições, suas organizações sociais e políticas em geral, mas sobretudo graças à ação costumeira de seu povo em defesa de suas liberdades públicas.Apesar de abandonada na França por um longo período e praticamente esquecida desde os anos 70 do século passado até o fim da Segunda Guerra Mundial, "A Democracia" renasce, no final dos anos 40, como obra de grande interesse para a nova ciência política e como ensinamento importante para a reconstrução da democracia em alguns países europeus. É também nesse momento que se restabelece o antigo projeto, de 1938, de realizar uma nova publicação das obras completas de Tocqueville. A guerra e a ocupação nazista haviam impedido sua continuação. Mas a obra volta realmente a ter sucesso somente quando as ciências sociais parecem esquecer o marxismo e quando se alastra, quase como um fenômeno mundial, o desinteresse dos jovens e dos intelectuais em fazer a revolução. Ao ser retomada a problemática da democracia, compreendida como a melhor opção, aparentemente mais próxima de se realizar social e politicamente, são retomadas também, como consequência, as idéias tocquevillianas sobre as questões da liberdade e da igualdade.Não se pode esquecer também que a democracia surgia para muitos povos, que estavam naquele momento saindo cautelosamente de governos autoritários e ditatoriais, como a mais plausível e mesmo única solução. Há também, nesse novo interesse pela obra, no interior da melhor ciência política contemporânea, a redescoberta da teoria democrática americana, que procura, com nova terminologia, discutir e analisar os novos problemas sociais e políticos advindos dos processos de construção e de desenvolvimento da democracia. Hoje, pode-se dizer que "A Democracia" é leitura obrigatória para os estudiosos de ciência política. Novas e mais recentes publicações, com comentários e notas de bons especialistas, têm surgido, sobretudo na França e nos EUA (2).A clássica edição da Gallimard, dos anos 50, trazia uma bela introdução de Harold Laski, que não aparece na primeira tradução brasileira, feita pela Edusp/Itatiaia. Esta nova tradução mantém o prefácio de François Furet, da edição da Garnier-Flammarion, intitulado "O Sistema Conceptual de 'A Democracia na América'". Nesse texto, Furet parece esquecer o cerne da teoria política de Tocqueville ao não discutir as questões da igualdade e da liberdade como categorias que, apesar de contraditórias, são partes do mesmo todo democrático e necessitam caminhar juntas. O prefácio torna-se bastante polêmico, quando Furet, em poucas palavras, procura comparar a questão da igualdade em Marx e Tocqueville.No Brasil, a leitura de Tocqueville parece ter seguido um caminho paralelo ao francês, embora, é claro, com evidente atualização e possível adequação aos acontecimentos políticos nacionais. Como uma óbvia inspiração para liberais e conservadores no Império, vejam-se por exemplo os escritos políticos, projetos e discursos de Tavares Bastos, Visconde do Uruguay e outros, quando apresentavam planos para a organização da federação, quando propunham soluções para a organização do Estado brasileiro ou quando tentavam modificar a Constituição.Na Primeira República, esse interesse pela "Democracia na América" parece continuar; Rui Barbosa, por exemplo, cita-a com frequência. Reaparece na UDN, quando de sua criação, como inspiração máxima, exemplificada pelo mote que adotou: "O preço da liberdade é a eterna vigilância", o qual na verdade Tocqueville tomou emprestado de Thomas Jefferson. Com o declínio das ditaduras militares, há uma retomada da importância das idéias da "Democracia", pois estas parecem adquirir um sentido de solução pacificadora entre os grupos de esquerda que haviam se sacrificado para a construção de uma nova ordem mais democrática e liberal. Creio que em nenhum desses momentos a percepção política das idéias correspondeu adequadamente às propostas tocquevillianas, mas estas serviram como inspiração, mesmo que jamais bem entendidas. Eis por que uma nova tradução de "A Democracia na América" é bem-vinda. É pena que a editora nos apresente, no momento, apenas a primeiro volume dessa obra.Notas:1. Essa é uma revisão da 13ª edição, de 1850, considerada definitiva, pelo simples fato de ter sido a última a sair antes da morte de Tocqueville, embora a última edição revista por ele tenha sido a 12ª, a qual contém o famoso prefácio-advertência sobre a atualidade da obra após os acontecimentos de 1848;2. Procurando suprimir um certo número de falhas, ainda possíveis de serem encontradas na edição "definitiva", os responsáveis pelas duas mais recentes publicações francesas, Françoise Mélonio (Robert Laffont, 1986) e A. Jardin, J.C. Lamberti, J.T. Schleifert (Gallimard, Bibliothèque de La Pléiade, 1992), vão buscar como fonte para essas correções a tese de Antony Pleasance apresentada em 1970 na Universidade do Colorado nos EUA.
Célia Galvão Quirino é professora do departamento de ciência política da USP.
Folha de São Paulo
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