RAYMOND FIRTH
O discreto encanto da antropologia
10/Out/98
Federico Neiburg
Sir Raymond William Firth tem hoje 97 anos e mora em Londres. Nasceu em 1901 na Nova Zelândia. Por via materna, Firth é neto de imigrantes irlandeses. Seu pai chegou a Auckland proveniente de Inglaterra quando ainda era criança, foi marceneiro, artesão e pastor metodista. Firth é, sem dúvida, o antropólogo mais velho de renome mundial atualmente com vida, um dos principais protagonistas da chamada "Escola Britânica" de antropologia e, também, um dos seus primeiros produtos: foi o primeiro a receber o título de doutor em antropologia em uma universidade do Reino Unido, em 1926, com uma tese sobre a "economia primitiva" dos Maoris, um dos primeiros alunos de Bronislaw Malinowski e o seu mais fiel discípulo, sendo, desde a morte do mestre, chefe do departamento de antropologia da London School of Economics.
A trajetória de Firth acompanha o processo de institucionalização da antropologia como disciplina universitária, não só na metrópole mas também em algumas das possessões britânicas na Oceania e na África. Em 1930, Firth se tornou o segundo professor de antropologia da Universidade de Sidney, sucedendo A.R. Radcliffe-Brown, outro dos pais fundadores da Escola Britânica. No período de entre-guerras, ensinou em Auckland e em Cidade do Cabo. Antes de virar um acadêmico de renome internacional, Firth já tinha sido diretor do Australian National Research Council e editor da revista "Oceania" -que, como outras revistas que nasceram a partir da definição de uma área geográfico-cultural como objeto, foi um importante lugar de encontro entre jovens professores metropolitanos no começo da carreira e jovens estudantes das colônias a caminho da metrópole.
Nesse sentido, a presença de Firth antecipou em poucos anos a de vários outros jovens nascidos nos domínios imperiais de ultramar e que (como o também neozelandês Reo Fortune, ou os sul-africanos Meyer Fortes e Isaac Schapera) integrariam o reduzido grupo dos antropólogos britânicos do entre-guerras. O fato de a coroa britânica ter outorgado a Raymond Firth o título de "Cavaleiro", em 1973, demonstra até que ponto, para muitos deles, a antropologia e a carreira acadêmica constituíram caminhos de ascensão social.
Uma das marcas da antropologia desse período era a associação do nome de cada antropólogo ao de um grupo de nativos e ao título da monografia na qual esse grupo era definido como objeto. Malinowski e Radcliffe-Brown tiveram seus nomes associados, respectivamente, aos habitantes dos arquipélagos de Trobriand e Andaman. Entre os seus alunos, Evans-Pritchard uniu o dele, primeiro aos Azande e, depois, aos Nuer; Fortes aos Tallensi; Hilda Kuper aos Swazi. Ainda que Firth houvesse realizado várias pesquisas empíricas na Nova Zelândia, Malásia e Londres, seu nome na história da antropologia está indissoluvelmente ligado aos tikopias.
Firth chegou pela primeira vez à pequena Tikopia - uma das ilhas Salomon- em 1928. Passou ali 12 meses, até que o "Southern Cross" completou o ciclo anual de viagens transoceânicas, conectando o porto de Liverpool com essa possessão colonial no pacífico ocidental. "Nós, os Tikopias" foi publicado quase uma década depois, em 1936, inaugurando uma impressionante série de livros e artigos que tratam diretamente desse micromundo polinésio ou que, segundo uma expressão corrente em certa literatura antropológica, discutem "materiais e dados tikopia".
A edição, que agora se publica pela primeira vez em português, tem a felicidade de ter incorporado um breve artigo publicado em 1990, no número 60 de "Oceania", com o título "Encontros com os Tikopias em 60 Anos" -um texto que, ainda que sem desenvolvê-la, sugere uma reflexão sobre as relações entre a biografia pessoal do antropólogo e essas seis décadas na história dos tikopias e da antropologia.
Raymond Firth se preocupou em produzir uma compreensão antropológica da dinâmica social e da história. Em 1959, depois de realizar outro período de trabalho de campo prolongado nas Salomon, publicou "Social Change in Tikopia: Re-Study of a Polinesian Community After a Generation", que é -junto com o livro, talvez, mais célebre de Robert Redfield sobre o povoado mexicano de Tepoztlán- um estudo pioneiro sobre o processo de formação do sistema mundial do ponto de vista de unidades sociais de escala pequeníssima. No campo das análises sobre religião, Firth realizou uma detalhada etnografia das missões e do processo de conversão dos tikopias ao cristianismo; nos estudos sobre economia, se preocupou especialmente em compreender a racionalidade do comportamento dos indivíduos diante das transformações do micromundo tikopia.
Firth tinha em comum com Malinowski, seu professor, mais do que uma mesma formação original em economia; compartilhavam também uma teoria utilitarista do mundo social e uma teoria individualista da racionalidade da ação social. Apoiado nessa perspectiva, Firth se transformou em um dos principais protagonistas de uma "inovação" promovida pelo "establishment" antropológico do pós-guerra: a criação da "antropologia econômica" que, como sua irmã, a "antropologia política", nasceu de uma confluência de vários grupos de especialistas (incluindo economistas e politólogos), interessados em tematizar a existência de um mundo social dividido em esferas associadas à existência de saberes e de disciplinas.
Entretanto essa perspectiva teórica estava presente já em "Nós, os Tikopias", informando um dos principais eixos do livro: a minuciosa análise dos vínculos entre a vida sexual, as relações matrimoniais, as identidades parentais, as formas de residência e da organização do espaço objetivados nas noções de clã e de "casa". A procura dos princípios da organização social nas ações e nos sentimentos individuais é, também, responsável por um elemento que distingue o livro entre as grandes monografias antropológicas do período. Trata-se, na verdade, de um desenvolvimento da etnografia consagrada por Malinowski: um método de construção de dados significativos para a compreensão da organização da vida social nativa, a partir da observação sistemática do efeito da presença do antropólogo na aldeia.
Nos capítulos que abrem o livro, Firth mostra como, em um processo que é paralelo ao aprendizado da língua nativa, o antropólogo se "localiza" em um mundo social que o reconhece como alguém de fora. A objetivação de Tikopia em mapas e planos não inclui somente a "casa" ocupada por Firth; ela está construída a partir do ponto de vista dessa "casa" e pressupõe a compreensão das ações e dos sentimentos mobilizados pela sua presença entre os vários indivíduos e famílias tikopias com os quais ele estabeleceu algum tipo de relação.
"Nós, os Tikopias" não está incluída entre as monografias antropológicas mais reconhecidas do seu tempo. Nenhuma história da antropologia compararia o livro de Firth com a elegância da análise estrutural dos Nuer, realizada por seu colega Evans-Pritchard. Sua retórica nunca seria identificada com as heterodoxias de alguns dos integrantes da geração dos seus alunos, de origem social mais alta, como Edmund Leach ou Gregory Bateson. Coerente com essas imagens, as representações sobre a figura de Firth tendem a incorporar, transformada em anátema, uma das características associadas a seu mestre Malinowski: as virtudes do discípulo deveriam ser encontradas menos nas suas contribuições teóricas e muito mais na sua sensibilidade como etnógrafo.
Talvez por essa razão, o discreto encanto de "Nós, os Tikopia" esteja no fato de ser um livro que convida a uma leitura tranquila, mostrando-nos ao mesmo tempo algumas das faces da vida dos tikopias e uma forma de fazer antropologia -carregada com as inquietações científicas, políticas e éticas de um meio intelectual, como o londrino, fortemente cosmopolita, no qual se reuniam exilados e judeus, jovens oriundos das colônias e formados na metrópole durante, ou imediatamente depois, da Primeira Guerra Mundial entre Estados-Nacionais. Ali, me parece, reside a chave de uma possível leitura contemporânea deste livro: o antropólogo neozelandês qualificou Tikopia como a "ilha-pátria" de um "povo orgulhoso", unido por uma "comunidade de interesses e de sensibilidade", "autoconsciente da sua individualidade, marcada na aparência física, nas roupas, nos costumes". Firth encontrou em Tikopia o cenário perfeito para a realização do ideal do que deveria ser uma verdadeira nação, uma ilha na qual as fronteiras de uma comunidade moral parecem um fato da natureza.
O discreto encanto da antropologia
10/Out/98
Federico Neiburg
Sir Raymond William Firth tem hoje 97 anos e mora em Londres. Nasceu em 1901 na Nova Zelândia. Por via materna, Firth é neto de imigrantes irlandeses. Seu pai chegou a Auckland proveniente de Inglaterra quando ainda era criança, foi marceneiro, artesão e pastor metodista. Firth é, sem dúvida, o antropólogo mais velho de renome mundial atualmente com vida, um dos principais protagonistas da chamada "Escola Britânica" de antropologia e, também, um dos seus primeiros produtos: foi o primeiro a receber o título de doutor em antropologia em uma universidade do Reino Unido, em 1926, com uma tese sobre a "economia primitiva" dos Maoris, um dos primeiros alunos de Bronislaw Malinowski e o seu mais fiel discípulo, sendo, desde a morte do mestre, chefe do departamento de antropologia da London School of Economics.
A trajetória de Firth acompanha o processo de institucionalização da antropologia como disciplina universitária, não só na metrópole mas também em algumas das possessões britânicas na Oceania e na África. Em 1930, Firth se tornou o segundo professor de antropologia da Universidade de Sidney, sucedendo A.R. Radcliffe-Brown, outro dos pais fundadores da Escola Britânica. No período de entre-guerras, ensinou em Auckland e em Cidade do Cabo. Antes de virar um acadêmico de renome internacional, Firth já tinha sido diretor do Australian National Research Council e editor da revista "Oceania" -que, como outras revistas que nasceram a partir da definição de uma área geográfico-cultural como objeto, foi um importante lugar de encontro entre jovens professores metropolitanos no começo da carreira e jovens estudantes das colônias a caminho da metrópole.
Nesse sentido, a presença de Firth antecipou em poucos anos a de vários outros jovens nascidos nos domínios imperiais de ultramar e que (como o também neozelandês Reo Fortune, ou os sul-africanos Meyer Fortes e Isaac Schapera) integrariam o reduzido grupo dos antropólogos britânicos do entre-guerras. O fato de a coroa britânica ter outorgado a Raymond Firth o título de "Cavaleiro", em 1973, demonstra até que ponto, para muitos deles, a antropologia e a carreira acadêmica constituíram caminhos de ascensão social.
Uma das marcas da antropologia desse período era a associação do nome de cada antropólogo ao de um grupo de nativos e ao título da monografia na qual esse grupo era definido como objeto. Malinowski e Radcliffe-Brown tiveram seus nomes associados, respectivamente, aos habitantes dos arquipélagos de Trobriand e Andaman. Entre os seus alunos, Evans-Pritchard uniu o dele, primeiro aos Azande e, depois, aos Nuer; Fortes aos Tallensi; Hilda Kuper aos Swazi. Ainda que Firth houvesse realizado várias pesquisas empíricas na Nova Zelândia, Malásia e Londres, seu nome na história da antropologia está indissoluvelmente ligado aos tikopias.
Firth chegou pela primeira vez à pequena Tikopia - uma das ilhas Salomon- em 1928. Passou ali 12 meses, até que o "Southern Cross" completou o ciclo anual de viagens transoceânicas, conectando o porto de Liverpool com essa possessão colonial no pacífico ocidental. "Nós, os Tikopias" foi publicado quase uma década depois, em 1936, inaugurando uma impressionante série de livros e artigos que tratam diretamente desse micromundo polinésio ou que, segundo uma expressão corrente em certa literatura antropológica, discutem "materiais e dados tikopia".
A edição, que agora se publica pela primeira vez em português, tem a felicidade de ter incorporado um breve artigo publicado em 1990, no número 60 de "Oceania", com o título "Encontros com os Tikopias em 60 Anos" -um texto que, ainda que sem desenvolvê-la, sugere uma reflexão sobre as relações entre a biografia pessoal do antropólogo e essas seis décadas na história dos tikopias e da antropologia.
Raymond Firth se preocupou em produzir uma compreensão antropológica da dinâmica social e da história. Em 1959, depois de realizar outro período de trabalho de campo prolongado nas Salomon, publicou "Social Change in Tikopia: Re-Study of a Polinesian Community After a Generation", que é -junto com o livro, talvez, mais célebre de Robert Redfield sobre o povoado mexicano de Tepoztlán- um estudo pioneiro sobre o processo de formação do sistema mundial do ponto de vista de unidades sociais de escala pequeníssima. No campo das análises sobre religião, Firth realizou uma detalhada etnografia das missões e do processo de conversão dos tikopias ao cristianismo; nos estudos sobre economia, se preocupou especialmente em compreender a racionalidade do comportamento dos indivíduos diante das transformações do micromundo tikopia.
Firth tinha em comum com Malinowski, seu professor, mais do que uma mesma formação original em economia; compartilhavam também uma teoria utilitarista do mundo social e uma teoria individualista da racionalidade da ação social. Apoiado nessa perspectiva, Firth se transformou em um dos principais protagonistas de uma "inovação" promovida pelo "establishment" antropológico do pós-guerra: a criação da "antropologia econômica" que, como sua irmã, a "antropologia política", nasceu de uma confluência de vários grupos de especialistas (incluindo economistas e politólogos), interessados em tematizar a existência de um mundo social dividido em esferas associadas à existência de saberes e de disciplinas.
Entretanto essa perspectiva teórica estava presente já em "Nós, os Tikopias", informando um dos principais eixos do livro: a minuciosa análise dos vínculos entre a vida sexual, as relações matrimoniais, as identidades parentais, as formas de residência e da organização do espaço objetivados nas noções de clã e de "casa". A procura dos princípios da organização social nas ações e nos sentimentos individuais é, também, responsável por um elemento que distingue o livro entre as grandes monografias antropológicas do período. Trata-se, na verdade, de um desenvolvimento da etnografia consagrada por Malinowski: um método de construção de dados significativos para a compreensão da organização da vida social nativa, a partir da observação sistemática do efeito da presença do antropólogo na aldeia.
Nos capítulos que abrem o livro, Firth mostra como, em um processo que é paralelo ao aprendizado da língua nativa, o antropólogo se "localiza" em um mundo social que o reconhece como alguém de fora. A objetivação de Tikopia em mapas e planos não inclui somente a "casa" ocupada por Firth; ela está construída a partir do ponto de vista dessa "casa" e pressupõe a compreensão das ações e dos sentimentos mobilizados pela sua presença entre os vários indivíduos e famílias tikopias com os quais ele estabeleceu algum tipo de relação.
"Nós, os Tikopias" não está incluída entre as monografias antropológicas mais reconhecidas do seu tempo. Nenhuma história da antropologia compararia o livro de Firth com a elegância da análise estrutural dos Nuer, realizada por seu colega Evans-Pritchard. Sua retórica nunca seria identificada com as heterodoxias de alguns dos integrantes da geração dos seus alunos, de origem social mais alta, como Edmund Leach ou Gregory Bateson. Coerente com essas imagens, as representações sobre a figura de Firth tendem a incorporar, transformada em anátema, uma das características associadas a seu mestre Malinowski: as virtudes do discípulo deveriam ser encontradas menos nas suas contribuições teóricas e muito mais na sua sensibilidade como etnógrafo.
Talvez por essa razão, o discreto encanto de "Nós, os Tikopia" esteja no fato de ser um livro que convida a uma leitura tranquila, mostrando-nos ao mesmo tempo algumas das faces da vida dos tikopias e uma forma de fazer antropologia -carregada com as inquietações científicas, políticas e éticas de um meio intelectual, como o londrino, fortemente cosmopolita, no qual se reuniam exilados e judeus, jovens oriundos das colônias e formados na metrópole durante, ou imediatamente depois, da Primeira Guerra Mundial entre Estados-Nacionais. Ali, me parece, reside a chave de uma possível leitura contemporânea deste livro: o antropólogo neozelandês qualificou Tikopia como a "ilha-pátria" de um "povo orgulhoso", unido por uma "comunidade de interesses e de sensibilidade", "autoconsciente da sua individualidade, marcada na aparência física, nas roupas, nos costumes". Firth encontrou em Tikopia o cenário perfeito para a realização do ideal do que deveria ser uma verdadeira nação, uma ilha na qual as fronteiras de uma comunidade moral parecem um fato da natureza.
Federico Neiburg é professor de antropologia na Universidade Federal do Rio de Janeiro e autor de "Os Intelectuais e a Invenção do Peronismo. Estudos de Antropologia Social e Cultural" (Edusp).
Folha de São Paulo
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