quinta-feira, 23 de outubro de 2008

Linhas de nossa arte

Mario Pedrosa
12/Dez/98
Lorenzo Mammì
ARTES PLÁSTICAS

Na década de 50, Mário Pedrosa publicou vários artigos nos quais lamentava a incompreensão da crítica internacional diante da produção construtiva brasileira. Os críticos estrangeiros, segundo Pedrosa, costumavam enxergar a arte concreta do Brasil apenas como um retardo histórico -um "Bauhausexercise", segundo a definição um tanto desdenhosa do prestigioso ex-diretor do Moma, Alfred Barr. Mário Pedrosa, ao contrário, afirmava que havia muito de novo e de original naquelas tendências.A queixa contra a preguiça ou a incompreensão dos estrangeiros tornou-se mais tarde um lugar-comum, em larga parte injustificado. Mas nesse caso Pedrosa tinha razão: na década de 50, o debate artístico internacional estava voltado para tendências informais e "new-dada" ou, mais em geral, para poéticas focalizadas na expressão subjetiva, mais do que na sintaxe objetiva. Ainda na década posterior, movimentos como a minimal e a pop art surgiriam por reação a questões postas pelo expressionismo abstrato (a platitude da tela, a influência do formato), e não da retomada direta do abstracionismo clássico.A integração de procedimentos artísticos e industriais, que fora o grande ideal artístico do racionalismo liberal da década de 30, tinha sido abalada pelo desastre da guerra e definitivamente derrotada pelos novos sistemas de produção e de consumo. Os princípios do concretismo pré-guerra continuavam sendo transmitidos por dignos professores, como Josef Albers e Max Bill. Mas eram, justamente, "Bauhausexercises", com pouca influência na discussão mais avançada. O Brasil, ao contrário, além de sair do conflito fortalecido e em plena expansão, ainda mantinha uma estrutura econômica centralizada e planificada. Longe das ruínas européias e já dono dos recursos técnicos e econômicos para uma rápida industrialização, sonhava uma modernidade doce, em que os artistas, transformados em técnicos da imagem, poderiam desempenhar um papel de formadores do gosto coletivo. Nesse quadro, as teses de Bill e Albers ainda eram as mais atuais, as mais úteis.Contudo, se o concretismo brasileiro significasse apenas a generosa adesão dos artistas a um ideal logo frustrado de desenvolvimento, seu interesse seria limitado: não passaria de um fruto tardio das utopias européias de 20 ou 30 anos antes, uma última flor do compasso; e os críticos internacionais que tanto irritavam Pedrosa teriam substancialmente razão. Aliás, essa é a maneira com que essas tendências costumaram ser julgadas também no Brasil, a partir da década de 60: como um conjunto de experiências importantes, louváveis nas intenções, mas artisticamente pobres, à espera da secessão neoconcreta que as recolocasse nos eixos, restabelecendo a primazia da intuição estética sobre as deduções geométricas.O livro "Arte Construtiva no Brasil - Coleção Adolpho Leirner" sugere um panorama mais matizado. Foi lançado por ocasião da abertura da exposição com o mesmo título, mas não é apenas um catálogo, e tampouco se limita a descrever uma coleção. Reúne o esforço de vários pesquisadores para reconstruir de maneira exaustiva (a partir das obras do acervo, mas não apenas delas) os percursos do abstracionismo no Brasil. Contém ainda os textos de quatro manifestos (do 3º Salão de Maio, em 1939; do Grupo Ruptura, em 1952; do Atelier Abstração, em 1956; do Movimento Neoconcreto, em 1959), uma cronologia muito bem feita e uma ampla bibliografia, além de dados biográficos dos artistas ligados ao movimento.Folheando as páginas do livro, torna-se evidente que as críticas neoconcretas aos construtivos, até hoje continuamente repetidas, foram em muitos casos pouco generosas: as linguagens concretistas, transplantadas num ambiente onde o sistema industrial ainda era indefinido e já se infiltravam novos hábitos de consumo, perderam rapidamente a compostura matemática, abrindo espaço ao gesto subjetivo e à impressão fugidia. Muitos dos artistas do movimento parecem reconhecer, ou pelo menos intuir desde cedo uma defasagem intransponível entre o rigor alcançado pela pesquisa formal e a organização apenas incipiente do mundo artístico e da sociedade brasileira; reagem, então, compensando a falta de articulações reais entre arte e produção industrial com a busca de uma experiência sensível imediata das formas construtivas. Linhas e cores se tornam sempre menos paradigmas produtivos e sempre mais objetos de uma fruição sensual. No final desse processo, encontraremos os penetráveis de Hélio Oiticica e os objetos terapêuticos de Lígia Clark. Mas não há ruptura, e sim evolução gradual: na revoada de novas vanguardas que caracterizou a década de 60 no mundo inteiro, Oiticica e Clark talvez sejam os únicos artistas importantes a descender diretamente de poéticas concretistas.Sem dúvida, nem tudo é ouro: as primeiras tentativas abstratas das décadas de 20 e 30 permanecem no campo da decoração, do esboço e da maquete, como observa Aracy Amaral no primeiro ensaio do livro. E Paulo Sérgio Duarte tem razão em salientar que as telas não-figurativas de Cícero Dias, o primeiro abstracionista brasileiro, nunca conseguiram alcançar a qualidade das aquarelas surrealistas de sua primeira fase. A própria produção do Atelier Abstração, por importante que tenha sido seu papel formador, permaneceu atrelada a equívocos graves, o principal deles expresso numa frase do manifesto de 1956: "O domínio próprio (da pintura abstrata) será a invenção de seres especificamente pictóricos". De fato, em muitas telas de Flexor, as formas geométricas são seres, entidades apoiadas sobre um fundo neutro que tem a dupla função de isolá-las das margens do quadro e destacá-las do plano, impedindo a integração com a superfície da tela. Dotadas de estrutura, volume e até movimentos próprios, as formas geométricas dessas telas permanecem independentes da estrutura do fundo, que é amorfo.O ponto de volta está, a meu ver, nas primeiras exposições do Grupo Ruptura. "Arte Construtiva no Brasil" documenta com uma foto a montagem da primeira delas, no MAM de São Paulo, em 1952. A imagem é eloquente: na parede de fundo, telas emolduradas de forma tradicional; no meio da sala, paralelepípedos delgados que sustentam esculturas, mas que também carregam o título da mostra, traçado em grandes caracteres sobre uma tábua que se projeta horizontalmente no espaço, numa evidente tentativa de integrar arte e design. Mas a novidade maior está na parede à direita, onde são pendurados quadros pintados sobre uma superfície rígida e fina, provavelmente eucatex. Essas pequenas pinturas se apóiam sobre um suporte menor, que os afasta levemente da parede, fazendo-as boiar no ar. Apresentados dessa forma, se revestem de um caráter fortemente plástico. Mais ainda: se oferecem como objetos de manipulação, quase pedem para serem agarrados; muitos deles carregam imagens sem direção privilegiada, que poderiam ser invertidas ou apoiadas horizontalmente sobre uma mesa sem mudar substancialmente de significado. Esses quadros já renunciaram à identificação com o campo visual completo de um observador em posição ereta, identificação que provinha da tradição renascentista (a pintura como janela) e que ainda era mantida tanto pelo abstracionismo clássico quanto pelas correntes informais.A crise da orientação vertical da imagem na pintura contemporânea foi apontada mais tarde pelo norte-americano Leo Steinberg, baseada na produção de Robert Rauschenberg do fim da década de 50. Mas, na época do Grupo Ruptura, ainda não havia categorias críticas que permitissem salientar esse aspecto. Da mesma forma, já que a optical art de Vasarely ainda não tinha surgido, passou despercebida a transição de uma composição por estruturas para uma composição por efeitos óticos, muito evidente nas obras de Nogueira Lima, Alexander Wollner, Geraldo de Barros e Luís Sacilotto. As imagens tornam-se instáveis e ambíguas: não se propõem ser paradigmas para a produção, mas objetos de consumo sensual imediato -uma abordagem comum na década de 60, mas na época bastante precoce. O concretismo brasileiro, em suma, foi resultado de um ambiente cultural particular, cujas coordenadas os críticos estrangeiros em grande parte desconheciam; não espanta, portanto, que enxergassem nessas obras apenas as raízes metodológicas, que eram, de fato, "Bauhaus", e não os frutos visuais, que já continham elementos importantes de novidade.Ressaltar esses aspectos não significa sugerir uma influência, que não houve, do concretismo brasileiro sobre os movimentos internacionais que seguiram; tampouco serve para oferecer o consolo vazio de uma primazia meramente cronológica. Ajuda, porém, a reconstruir as linhas de evolução da nossa arte, e aponta para uma carência crônica de nosso ambiente cultural: o desequilíbrio entre uma produção artística rica e original e as categorias críticas que deveriam proporcionar sua análise, amiúde vagas, ou importadas sem adequação do exterior.Lorenzo Mammì é professor da Escola de Comunicações e Artes da USP.
Folha de São Paulo

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