Peter Laslett
A liberdade e os bens de cada um
12/Dez/98
Milton Meira
Finalmente, o público brasileiro recebe uma boa tradução dos "Dois Tratados" de John Locke -baseada na edição comentada de Peter Laslett, da Cambridge University Press, com todo o aparelho crítico elaborado por ele-, que poderá ser utilizada pelos estudantes sem aquele sofrimento que as traduções anteriores provocavam, afugentando-os do trabalho de interpretação desse autor tão importante para a constituição do pensamento político moderno.Depois de refutar as teses do autor do "Patriarcha", Robert Filmer, que sustentava que, segundo a Revelação, Deus estabeleceu a desigualdade entre os homens, colocando uns acima dos outros, os pais acima dos filhos, os homens acima das mulheres, os mais velhos acima dos mais novos e os monarcas acima de todos -temas do "Primeiro Tratado"-, Locke vai desenvolver sua teoria sobre o governo no "Segundo Tratado sobre o Governo - Um Ensaio Referente à Verdadeira Origem, Extensão e Objetivo do Governo Civil".Ora, contra Filmer, Locke afirma que os homens nascem todos livres e iguais por natureza, não havendo nada que nos leve a supor o contrário, nem mesmo as Escrituras, quando bem interpretadas. Enquanto não houver nenhum poder que possa estabelecer alguma distinção entre os homens, todos são livres e iguais. Na fase que antecede o aparecimento do Estado, isto é, no estado de natureza, o único guia de todos os homens é a razão, esta faculdade que faz a diferença do homem em relação aos outros animais e que instaura a igualdade de condições entre os seres inteligentes que compõem a espécie humana.Segundo Locke, a razão é a própria lei da natureza, que comanda a vida dos homens, sem que haja a necessidade de se referirem a nenhuma outra autoridade, nem mesmo à divina, pois Deus, embora tenha sido o criador dos homens, não interfere nos seus negócios, porque, tendo-lhes dado a razão, deu-lhes o instrumento para a sua autonomia.Resta saber por que os homens não permanecem no estado de natureza, já que a razão, guia das ações, ou então a própria consciência das obrigações recíprocas, é a referência necessária quando está em causa a solução de disputas e o necessário recurso a uma autoridade. Ao que Locke responde que não basta recorrer à lei da razão para a solução dos conflitos, é necessário um juiz comum. O estado de natureza possui vários inconvenientes, tais como a ausência de uma lei estabelecida e reconhecida por todos como tal e o fato de cada homem se apresentar como o próprio intérprete da lei natural, além de ser também seu executor e juiz. É por isso que o estado de natureza não se sustenta por si mesmo, tornando necessário o aparecimento de um poder comum, enfim, de um governo que possa fazer as funções do juiz, onde a lei seja clara para todos e quem a executa também receba a autoridade da sociedade para o exercício da sua função, que deve primar pela imparcialidade. Sem a autoridade governamental, os homens mergulhariam no estado de guerra.
Segundo Locke, "o 'fim maior' e principal para os homens unirem-se em sociedades políticas e submeterem-se a um governo é, portanto, a 'conservação de sua propriedade'". Eis o que está em jogo quando se torna necessária a constituição das sociedades políticas e do governo. Mas se enganam os que pensam que Locke está se referindo apenas à propriedade de bens externos materiais. A definição da propriedade requer muita atenção, pois, "embora a Terra e todas as criaturas inferiores sejam comuns a todos os homens, cada homem tem uma 'propriedade' em sua própria 'pessoa'. A esta ninguém tem direito algum além dele mesmo. O 'trabalho' de seu corpo e a 'obra' de suas mãos, pode-se dizer, são propriamente dele. Qualquer coisa que ele então retire do estado com que a natureza a proveu e deixou mistura-a ele com o seu trabalho e junta-lhe algo que é seu, transformando-a em sua 'propriedade'. Sendo por ele retirada do estado comum em que a natureza a deixou, a ela agregou, com esse trabalho, algo que a exclui do direito comum dos demais homens. Por ser esse 'trabalho' propriedade inquestionável do trabalhador, homem nenhum pode ter direito àquilo que a esse 'trabalho' foi agregado, pelo menos enquanto houver bastante e de igual qualidade deixada em comum para os demais."Em outra passagem, Locke definirá a propriedade como a liberdade, a vida e os bens de cada membro da associação política. Podemos dizer, então, que a primeira propriedade é a da pessoa, com a sua liberdade, seus talentos, seu trabalho, que tornará possível a saída de si mesma rumo ao mundo exterior.
Pelo trabalho, a pessoa estende-se sobre as coisas, acrescentando-lhes algo que naturalmente não possuíam. Neste sentido, quando o nosso autor afirma que as sociedades políticas visam à preservação da propriedade, poderíamos acrescentar, "dos proprietários indistintamente", tanto os que possuem bens quanto os que tão-somente possuem sua pessoa.Resta ao governo, então, a tarefa de tornar possível o processo de extensão das pessoas sobre as coisas, de modo que ninguém se aproprie indevidamente de nada, nem das demais pessoas nem do seu trabalho ou dos resultados do seu trabalho. Não nos esqueçamos também de que o trabalho é a medida do valor dos bens que vierem a ser adquiridos com o próprio esforço, não sendo permitido a ninguém, que não trabalhou, apoderar-se dos resultados do trabalho alheio. Locke, no entanto, percebe a dificuldade dos estabelecimento da medida do valor dos bens, quando o processo de trocas não mais possui os meios para a medida do valor, ou seja, quando, pela produção do excedente, do que se produziu a mais, o trabalhador pode trocar o excedente por ouro ou prata, isto é, por dinheiro. Como reconhecer no dinheiro a quantidade equivalente de trabalho, de modo a se obter um preço justo? Quando o processo de apropriação se torna complexo e o dinheiro passa a comandar o mundo da troca mercantil, sem mais nenhuma referência ao mundo do trabalho, vejamos o que nos diz o nosso autor: "É certo que, no princípio, antes que o desejo de ter mais que o necessário houvesse alterado o valor intrínseco das coisas, que depende apenas da utilidade destas para a vida do homem, ou antes que os (homens) houvessem 'acordado que um pedacinho de metal amarelo' que se conserva sem se perder ou apodrecer valeria um pedaço grande de carne ou todo um monte de grãos, embora os homens tivessem o direito de apropriar-se, mediante o seu trabalho e cada um para si, de tantas coisas da natureza quantas pudessem usar, isso não poderia ser muito, nem em detrimento de outros, se restasse ainda a mesma abundância para aqueles que usassem do mesmo esforço".Há pois uma diferença enorme entre o "início" do processo de apropriação e o seu estágio mais avançado, quando se instaura o "desejo de ter mais que o necessário" e se convenciona que um "pedacinho de metal amarelo" vale alguma coisa. Aqui entra o papel do governo, do juiz, do poder comum, necessário para repor em seu lugar o mundo que escapa pelos dedos, ou seja, encontrar nele ainda um lugar para o trabalho como determinante do valor das mercadorias. Como medir a quantidade de trabalho? Marx não nos ensinava que a medida do valor das mercadorias estava na determinação da quantidade do trabalho socialmente necessário para produzi-las, confirmando, portanto, toda a complexidade da teoria do valor?Pela definição de propriedade, pela valorização do mundo do trabalho, pela percepção do mundo novo do capital, isto é, o mundo da produção do excedente e do supérfluo, simplesmente pelo "desejo de ter mais", pela insistência em definir o papel do governo para preservar a "propriedade" e até pela defesa do direito de rebelião quando o governante não cumpre a sua função principal, só por isso, alguém poderia duvidar que a leitura dos "Dois Tratados" é necessária, oportuna e indispensável?
Milton Meira do Nascimento é autor de "Opinião Pública e Revolução" (Nova Stela/Edusp).
Folha de São Paulo
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