12/Dez/98
Ricardo Mussse Editoria
LIBERALISMO
Esse livro, à primeira vista, consiste apenas em uma reedição, fora da ordem original, de três importantes ensaios de Wanderley Guilherme dos Santos. Os dois primeiros -"A Práxis Liberal no Brasil" e "A Práxis Liberal e a Cidadania Regulada", escritos nos anos 70-, afora mínimos acréscimos, mantêm a redação da época, enquanto o último, "Da Oligarquia e suas Máscaras Institucionais", consiste, nas palavras do autor, "em uma versão concisa, revista e atualizada das reflexões" publicadas em "Regresso - Máscaras Institucionais do Liberalismo Oligárquico" (Ed. Opera Nostra, 1994). Como se vê, Wanderley Guilherme dos Santos não resistiu à tentação -cada vez mais forte à medida que se generaliza, entre nós, o hábito de reunir ensaios ou artigos diversos em livro- de reordenar a sua obra já publicada. Mas não se trata, aqui, somente de uma imposição subjetiva. Uma vez agrupados, esses três ensaios configuram um objeto distinto, uma constelação que surge com o frescor de um livro novo e, quase diria, inédito.A composição de "Décadas de Espanto e uma Apologia Democrática" assume assim um papel de destaque. A junção desses três textos instaura uma relação de proximidade e estranhamento entre eles, tornando o livro mais do que um mero reagrupamento de artigos que tratam de um mesmo tema, o liberalismo. A decisão, bem-pensada, de manter a versão original dos ensaios mais antigos, por sua vez, desencadeia uma outra associação: assumidos em sua dimensão histórica, os textos interessam tanto por sua atualidade e pertinência quanto pelo seu valor documental.O ensaio "A Práxis Liberal no Brasil", um dos mais conhecidos e discutidos textos do autor, originalmente publicado em "Ordem Burguesa e Liberalismo Político" (Duas Cidades, 1978), apresenta uma espécie de balanço da doutrina e da ação política liberal no Brasil desde 1822. Uma de suas teses centrais sustenta que, entre nós, pouco se percebeu o caráter histórico (e, portanto, a seu ver, em certa medida, acidental) da associação entre os conceitos relativos aos direitos civis e políticos e a instauração das sociedades de mercado. Pensando que se tratava de faces de uma mesma moeda, os nossos liberais moveram-se sempre no espaço restrito de um falso dilema, de uma ambiguidade recorrente, trazidos à luz pela primeira vez por Oliveira Vianna na década de 20 -"como construir um sistema político liberal sem uma sociedade liberal"?Uma vez balizados os marcos do nosso liberalismo, a partir dos seus paradoxos, Wanderley Guilherme não se exime de um mapeamento, no qual sobressaem duas correntes aparentemente destoantes, o "liberalismo doutrinário" e o "autoritarismo instrumental". Confiantes na indissolubilidade entre as liberdades básicas -de associação, de pensamentos, de palavras e de organização política- e na "organização social e econômica que iguala a maximização dos lucros individuais à maximização do bem-estar geral", ambos visam o mesmo fim, a implantação da sociedade de mercado no Brasil, por caminhos, ou melhor, por meio de ênfases diversas.Enquanto os liberais doutrinários crêem idealisticamente que a liberalização política por si só é suficiente para implementar o liberalismo econômico, os "autoritários" acreditam que somente um sistema político autoritário permitiria demolir as barreiras e transitar para um sistema social autenticamente liberal. A tenuidade entre essas duas posições, sua convergência "no limite", foi demonstrada ao longo da história brasileira tanto pela ação autoritária dos "doutrinários" que ascenderam ao poder quanto pela atuação do partido mais caracteristicamente liberal da história brasileira: a UDN.O segundo ensaio, publicado apenas um ano depois (em "Cidadania e Justiça", ed. Campus), retoma, no bojo de uma bem documentada pesquisa histórica da legislação sindical e previdenciária brasileira, alguns tópicos, em parte, já desenvolvidos no artigo anterior, particularmente, o papel do Estado. Se na Europa o Estado liberal nunca descuidou, no mínimo, de garantir a operação do mercado como um mecanismo eficiente de alocação de bens e de valores, por que, entre nós, sempre se recorre à utopia de um Estado não-intervencionista? A resposta de Wanderley Guilherme, adiantada no primeiro texto, é que o ator principal dessa peça, a classe capaz de moldar simultaneamente o aparelho de Estado e a sociedade de acordo com a lógica do mercado, a burguesia nacional, não compareceu. No Brasil, a burguesia não surgiu como classe organizada porque, ao invés de se integrar pela mediação de um mercado nacional (e de um Estado capaz de regulamentá-lo), forjou-se pela mediação de um mercado internacional cuja operação sempre esteve a cargo de outros Estados nacionais (Inglaterra e depois EUA).Mesmo assim, surge, a partir de 1840, "uma ideologia protecionista que relacionava a verdadeira autonomia política à autonomia econômica, a autonomia econômica à industrialização, a industrialização ao nacionalismo e, finalmente, o nacionalismo à intervenção ou protecionismo econômico do Estado". O balanço social dessas duas estratégias políticas, entretanto, não deixa de ser complementar. Na República Velha como no Estado pós-1930, o esforço de regulamentação social -seja via Congresso ou reivindicações dos trabalhadores organizados- voltou-se sobretudo para a regulação do processo acumulativo e quase nunca para a implantação de políticas sociais compensatórias (próprias do Estado de Bem-Estar Social).A principal consequência dessa concentração das demandas no processo acumulativo foi a criação, a partir de 1930, daquilo que o autor chama de "cidadania regulada". O Estado, ao mesmo tempo em que incentivava (e regulava) a diferenciação da estrutura produtiva, a acumulação industrial, estabeleceu um sistema de "regulamentação social" que lhe era coextensivo. O direito à cidadania vige apenas dentro de um sistema de estratificação ocupacional definido por norma legal, ou seja, depende da regulamentação da profissão, da existência da carteira profissional e do sindicato público.No último artigo, o autor muda de tom, mas não de convicções. Segundo ele próprio, "substitui o estilo asséptico da reconstrução histórica pela retórica argumentativa ajustada aos conflitos contemporâneos". Aqui, a apologia democrática assume a forma de um libelo contra a tão propalada reforma política que empresários, jornalistas, políticos e cientistas sociais vêm defendendo e que o atual governo promete levar a cabo: introdução do voto distrital misto, redução do número de partidos, extinção do voto obrigatório e alterações nos quoruns eletivos e nas decisões parlamentares. Nesse "ímpeto para fabricar arquiteturas sociais", Wanderley Guilherme pressente a ameaça de um "regresso institucional", ou melhor, a intenção de "interromper o processo de democratização do país e fazê-lo retroagir a maquiado regime oligárquico".É possível desentranhar em cada artigo, além das convicções e da militância do autor, fragmentos do debate político da época. O primeiro ensaio, por exemplo, não deixa de se posicionar sobre a matriz ideológica do regime militar, uma questão que na época não só dizia respeito às linhas de continuidade do pensamento conservador entre nós, como também à questão da sua duração do tipo de sociedade que emergiria então. O segundo ensaio, por sua vez, remete à discussão sobre corporativismo, nacional-desenvolvimentismo ("populismo", na terminologia da sociologia uspiana). O interesse desses artigos, no entanto, não repousa apenas no fato de que tais questões continuam em aberto e importam cada vez mais na escolha dos rumos futuros do país ou na reconstrução histórica abrangente que vale como uma súmula da história política brasileira. Tais artigos encerram lições e prognósticos que vale conferir, seja pelos acertos ou pelos desacertos.Talvez a tese mais fundamental de "Décadas de Espanto e uma Apologia Democrática" resida na convicção de que economia e política seguem, ou pelo menos, deveriam seguir caminhos distintos, expressa no mote "por que, no Brasil, a política arcaica não inviabilizou a economia moderna e, por que esta, quando robusta, não se livrou logo daquela?". Wanderley Guilherme retoma a tese de Robert Brenner segundo a qual a emergência do capitalismo, ou melhor, a adoção de inovadores comportamentos econômicos deu-se à revelia de qualquer cálculo sobre suas consequências políticas. Entretanto a persistência, por tanto tempo de um mal-entendido não seria ela própria reveladora? Até que ponto as limitações da nossa vida política não dependem, por exemplo, da concentração econômica (e do perfil da distribuição de renda)? Embora não se justifique, essa tentativa de regresso oligárquico não seria própria, lá e cá, de uma nova ordem econômica cada vez mais dependente dos movimentos de um mercado mundial?Na sua análise do processo europeu de democratização, o autor destaca o papel dos conflitos sociais, mas subestima, a meu ver, o papel da social-democracia. Avaliando-a pelos objetivos expressos nos panfletos de Kautsky, ignora que a sua prática, como já alertara Korsch nos anos 1920, estava muito mais afinada com a teoria de Bernstein. Aliás, tendo em vista as similitudes entre suas concepções de democracia e de controle social, não seria de todo injusto inserir Wanderley Guilherme na vertente socialista inaugurada por Bernstein.
Ricardo Musse é professor de filosofia política na Universidade Estadual Paulista (Unesp).
Folha de São paulo
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