Uma visão polêmica da escravidão
12/Set/98
Hebe Maria Mattos
A série "Teses" do programa de história social da USP finalmente transforma em livro um dos textos pioneiros para a renovação da história social da escravidão no Brasil. "Sonhos Africanos, Vivências Ladinas" foi originalmente dissertação de mestrado defendida na USP, em 1989, desenvolvida ao lado de outras tantas pesquisas que, no interior dos programas de pós-graduação em história do país, começavam a virar de cabeça para baixo as abordagens históricas sobre a sociedade escravista no Brasil e, em especial, sobre o papel ali desempenhado por escravos e forros. Influenciados por E.P. Thompson, Eugene Genevose e Herbert Gutman, esses trabalhos propunham pensar os homens e mulheres que viveram a terrível experiência da escravidão, não apenas como vítimas de uma sociedade injusta, mas como agentes ativos na produção e transformação da sociedade em que viviam.
Naquele momento, muito dessa produção se fez polemizando com a chamada Escola Sociológica Paulista, que, do ponto de vista teórico, percebia a violência do sistema, bem como a coisificação legal do escravo, como geradoras de uma condição de patologia social para o conjunto dos escravizados, que os tornava social e culturalmente desestruturados. Diferenciando-se dessa orientação geral, a abordagem de Maria Cristina recusa a polarização teórica, desenvolvendo um diálogo, antes empírico e interpretativo do que conceitual, sobre o papel de escravos e forros na São Paulo oitocentista, com os vários representantes da escola paulista, especialmente com o trabalho pioneiro de Florestan Fernandes e Roger Bastide sobre as relações raciais na cidade.
Na segunda metade do século passado, São Paulo ainda era uma cidade pequena e acanhada, onde os limites entre o rural e o urbano se misturavam. Os escravos escasseavam, levados pelo tráfico interno para as zonas cafeeiras do interior. Às vésperas da abolição, em 1886, eram apenas 493 escravos, numa população de pardos e negros de 10.275 habitantes, que formavam cerca de 1/5 da população urbana total. Em meados do século, entretanto, as freguesias centrais e mais urbanizadas do município tinham suas ruas tomadas por ganhadores e ambulantes, preferencialmente escravos e forros, que faziam todo tipo de serviço. Ao longo das décadas subsequentes, enquanto escasseavam os escravos e cresciam as alforrias, escravos e livres pobres cada vez mais se confundiam nas ruas da cidade. Em torno desse núcleo urbano, uma região de transição, tomada por chácaras e casebres, levava a freguesias ainda amplamente rurais, formadas por sítios e roças de mantimentos.
Em cada um desses espaços da São Paulo oitocentista, Maria Cristina vai reconstituir as vivências de escravos e forros nas últimas décadas da escravidão, a partir da documentação judicial envolvendo escravos no município, especialmente os processos criminais. Nessa época, a criminalidade em São Paulo seguia um padrão típico de antigo regime, com predomínio dos crimes contra a pessoa (homicídios, lesões corporais) e de pequenos roubos e furtos diretamente ligados à complementação da sobrevivência. Desse modo, a leitura dos processos e dos depoimentos neles contidos possibilitou à autora a reconstituição de flagrantes do cotidiano das populações envolvidas em cada caso, permitindo deslindar as teias de relações sociais, verticais e horizontais, nas quais escravos e forros estiveram envolvidos.
Acompanhando a diferenciação social do espaço no município, Maria Cristina nos brinda com quatro capítulos primorosos sobre a especificidade das vivências de escravos e forros em cada uma das sub-regiões. O primeiro deles, capítulo três na ordem do livro, surpreende os africanos escravizados e seus descendentes imersos na cultura caipira típica das zonas rurais paulistas tradicionais. Roceiros e pequenos sitiantes que produziam para o abastecimento da cidade eram também pequenos senhores de escravos, a quem buscavam sujeitar, sem o recurso de feitores e de outros intermediários. De origem étnica incerta, sobre a qual se silencia via de regra, esses pequenos senhores repartiam seu teto com seus poucos escravos, muitas vezes trabalhando com eles lado a lado, numa convivência hierarquicamente íntima e perigosa. Seus escravos cultivavam roças próprias, participavam de mutirões aos domingos e mantinham estreitos laços familiares com escravos de outros senhores do mesmo bairro rural. Nesse cenário, os códigos culturais e os espaços de sociabilidade de livres e de escravos frequentemente se misturavam, permitindo perceber uma cultura caipira muito mais influenciada pela presença africana do que tradicionalmente se imagina, ao mesmo tempo em que diluía, neste compartilhar de espaços sociais, as manifestações mais típicas de uma cultura especificamente escrava.
No capítulo seguinte, a autora caminha para a periferia semi-urbanizada da cidade, onde o espaço sem maiores registros de identificação étnica do mundo caipira é substituído por espaços sociais etnizados, isto é, fortemente marcados por uma identidade negra ou africana. No bairro rural, mais que a cor da pele, eram as relações pessoais que determinavam quem era livre ou escravo. Na periferia semi-urbanizada, lugar de passagem e de entrada na cidade, a cor tornava-se novamente marca de suspeição. Como resposta a esse movimento, negros e africanos livres construíram ali espaços sociais próprios, em que uma cultura especificamente africana ou negra pôde se desenvolver. Esconderijo para escravos fugidos durante o longo desmanchar da sociedade escravista, os espaços negros da periferia da São Paulo oitocentista acentuavam a crescente e cada vez mais difícil diferenciação entre negros livres e escravos no espaço urbano.
Por fim, os dois últimos capítulos mergulham no dia-a-dia das ruas da São Paulo urbana, onde a visibilidade da "rapaziada" negra era desproporcionalmente maior do que sua participação efetiva na população da cidade.
Não há como terminar a leitura deste livro, sem concluir que tais sonhos e vivências foram essenciais na construção da dinâmica social da cidade de São Paulo, no século passado. Se essa conclusão hoje causa menos impacto do que já causou, o livro mantém contribuições de peso para polêmicas ainda hoje candentes nos estudos históricos sobre a escravidão. Destaco, especialmente, a proposição de que a etnização da experiência cultural da população livre formada por libertos e seus descendentes foi um processo histórico que se fez de forma diferenciada nas zonas urbanas e rurais da cidade de São Paulo, bem como os elementos novos que o livro oferece para pensar a herança africana no contexto das relações familiares e de gênero, ao analisar as comunidades de africanos livres da periferia da cidade.
O livro ainda contém um encarte iconográfico com fotos comentadas de negros escravos, forros e livres em São Paulo pela lente de Militão Augusto de Azevedo. Registros da diversidade das vivências negras na São Paulo oitocentista, desde os fotografados por Militão, para identificação criminal, àqueles que voluntária e onerosamente procuraram o fotógrafo em seu estúdio em busca da marca de respeitabilidade e de eternização trazida pelo retrato, diversidade registrada também na paisagem urbana capturada nas fotos de exteriores. Também merecedora de destaque é a reprodução, num anexo, das cartas da escrava Teodora a seu marido, a seu filho e a seu senhor, registros de seus esforços para se reencontrar com o marido de quem havia sido separada por força do tráfico interno, conseguir comprar sua alforria e voltar para a África. Em cada uma das faces fotografadas por Militão, nas cartas de Teodora, a cada novo caso narrado por Maria Cristina, os sonhos a as vivências analisados reapresentaram a busca da alforria como aspiração maior dos escravos paulistas do século passado, aspiração que perigosamente se tornava reivindicação no contexto do desmanchar da ordem escravista que caracterizou as décadas analisadas.
Hebe Maria Mattos é professora do departamento de história da Universidade Federal Fluminense (UFF).
Folha de São Paulo
12/Set/98
Hebe Maria Mattos
A série "Teses" do programa de história social da USP finalmente transforma em livro um dos textos pioneiros para a renovação da história social da escravidão no Brasil. "Sonhos Africanos, Vivências Ladinas" foi originalmente dissertação de mestrado defendida na USP, em 1989, desenvolvida ao lado de outras tantas pesquisas que, no interior dos programas de pós-graduação em história do país, começavam a virar de cabeça para baixo as abordagens históricas sobre a sociedade escravista no Brasil e, em especial, sobre o papel ali desempenhado por escravos e forros. Influenciados por E.P. Thompson, Eugene Genevose e Herbert Gutman, esses trabalhos propunham pensar os homens e mulheres que viveram a terrível experiência da escravidão, não apenas como vítimas de uma sociedade injusta, mas como agentes ativos na produção e transformação da sociedade em que viviam.
Naquele momento, muito dessa produção se fez polemizando com a chamada Escola Sociológica Paulista, que, do ponto de vista teórico, percebia a violência do sistema, bem como a coisificação legal do escravo, como geradoras de uma condição de patologia social para o conjunto dos escravizados, que os tornava social e culturalmente desestruturados. Diferenciando-se dessa orientação geral, a abordagem de Maria Cristina recusa a polarização teórica, desenvolvendo um diálogo, antes empírico e interpretativo do que conceitual, sobre o papel de escravos e forros na São Paulo oitocentista, com os vários representantes da escola paulista, especialmente com o trabalho pioneiro de Florestan Fernandes e Roger Bastide sobre as relações raciais na cidade.
Na segunda metade do século passado, São Paulo ainda era uma cidade pequena e acanhada, onde os limites entre o rural e o urbano se misturavam. Os escravos escasseavam, levados pelo tráfico interno para as zonas cafeeiras do interior. Às vésperas da abolição, em 1886, eram apenas 493 escravos, numa população de pardos e negros de 10.275 habitantes, que formavam cerca de 1/5 da população urbana total. Em meados do século, entretanto, as freguesias centrais e mais urbanizadas do município tinham suas ruas tomadas por ganhadores e ambulantes, preferencialmente escravos e forros, que faziam todo tipo de serviço. Ao longo das décadas subsequentes, enquanto escasseavam os escravos e cresciam as alforrias, escravos e livres pobres cada vez mais se confundiam nas ruas da cidade. Em torno desse núcleo urbano, uma região de transição, tomada por chácaras e casebres, levava a freguesias ainda amplamente rurais, formadas por sítios e roças de mantimentos.
Em cada um desses espaços da São Paulo oitocentista, Maria Cristina vai reconstituir as vivências de escravos e forros nas últimas décadas da escravidão, a partir da documentação judicial envolvendo escravos no município, especialmente os processos criminais. Nessa época, a criminalidade em São Paulo seguia um padrão típico de antigo regime, com predomínio dos crimes contra a pessoa (homicídios, lesões corporais) e de pequenos roubos e furtos diretamente ligados à complementação da sobrevivência. Desse modo, a leitura dos processos e dos depoimentos neles contidos possibilitou à autora a reconstituição de flagrantes do cotidiano das populações envolvidas em cada caso, permitindo deslindar as teias de relações sociais, verticais e horizontais, nas quais escravos e forros estiveram envolvidos.
Acompanhando a diferenciação social do espaço no município, Maria Cristina nos brinda com quatro capítulos primorosos sobre a especificidade das vivências de escravos e forros em cada uma das sub-regiões. O primeiro deles, capítulo três na ordem do livro, surpreende os africanos escravizados e seus descendentes imersos na cultura caipira típica das zonas rurais paulistas tradicionais. Roceiros e pequenos sitiantes que produziam para o abastecimento da cidade eram também pequenos senhores de escravos, a quem buscavam sujeitar, sem o recurso de feitores e de outros intermediários. De origem étnica incerta, sobre a qual se silencia via de regra, esses pequenos senhores repartiam seu teto com seus poucos escravos, muitas vezes trabalhando com eles lado a lado, numa convivência hierarquicamente íntima e perigosa. Seus escravos cultivavam roças próprias, participavam de mutirões aos domingos e mantinham estreitos laços familiares com escravos de outros senhores do mesmo bairro rural. Nesse cenário, os códigos culturais e os espaços de sociabilidade de livres e de escravos frequentemente se misturavam, permitindo perceber uma cultura caipira muito mais influenciada pela presença africana do que tradicionalmente se imagina, ao mesmo tempo em que diluía, neste compartilhar de espaços sociais, as manifestações mais típicas de uma cultura especificamente escrava.
No capítulo seguinte, a autora caminha para a periferia semi-urbanizada da cidade, onde o espaço sem maiores registros de identificação étnica do mundo caipira é substituído por espaços sociais etnizados, isto é, fortemente marcados por uma identidade negra ou africana. No bairro rural, mais que a cor da pele, eram as relações pessoais que determinavam quem era livre ou escravo. Na periferia semi-urbanizada, lugar de passagem e de entrada na cidade, a cor tornava-se novamente marca de suspeição. Como resposta a esse movimento, negros e africanos livres construíram ali espaços sociais próprios, em que uma cultura especificamente africana ou negra pôde se desenvolver. Esconderijo para escravos fugidos durante o longo desmanchar da sociedade escravista, os espaços negros da periferia da São Paulo oitocentista acentuavam a crescente e cada vez mais difícil diferenciação entre negros livres e escravos no espaço urbano.
Por fim, os dois últimos capítulos mergulham no dia-a-dia das ruas da São Paulo urbana, onde a visibilidade da "rapaziada" negra era desproporcionalmente maior do que sua participação efetiva na população da cidade.
Não há como terminar a leitura deste livro, sem concluir que tais sonhos e vivências foram essenciais na construção da dinâmica social da cidade de São Paulo, no século passado. Se essa conclusão hoje causa menos impacto do que já causou, o livro mantém contribuições de peso para polêmicas ainda hoje candentes nos estudos históricos sobre a escravidão. Destaco, especialmente, a proposição de que a etnização da experiência cultural da população livre formada por libertos e seus descendentes foi um processo histórico que se fez de forma diferenciada nas zonas urbanas e rurais da cidade de São Paulo, bem como os elementos novos que o livro oferece para pensar a herança africana no contexto das relações familiares e de gênero, ao analisar as comunidades de africanos livres da periferia da cidade.
O livro ainda contém um encarte iconográfico com fotos comentadas de negros escravos, forros e livres em São Paulo pela lente de Militão Augusto de Azevedo. Registros da diversidade das vivências negras na São Paulo oitocentista, desde os fotografados por Militão, para identificação criminal, àqueles que voluntária e onerosamente procuraram o fotógrafo em seu estúdio em busca da marca de respeitabilidade e de eternização trazida pelo retrato, diversidade registrada também na paisagem urbana capturada nas fotos de exteriores. Também merecedora de destaque é a reprodução, num anexo, das cartas da escrava Teodora a seu marido, a seu filho e a seu senhor, registros de seus esforços para se reencontrar com o marido de quem havia sido separada por força do tráfico interno, conseguir comprar sua alforria e voltar para a África. Em cada uma das faces fotografadas por Militão, nas cartas de Teodora, a cada novo caso narrado por Maria Cristina, os sonhos a as vivências analisados reapresentaram a busca da alforria como aspiração maior dos escravos paulistas do século passado, aspiração que perigosamente se tornava reivindicação no contexto do desmanchar da ordem escravista que caracterizou as décadas analisadas.
Hebe Maria Mattos é professora do departamento de história da Universidade Federal Fluminense (UFF).
Folha de São Paulo
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