sexta-feira, 24 de outubro de 2008

DIVIDIR PARA DOMINAR: A PARTILHA DA ÁFRICA - 1880-1990

Thomas Pakenham
Um mapa para a África
12/Dez/98
Omar Ribeiro Thomaz

Sintetizando o espírito de uma época, Cecil Rhodes afirmou: "A expansão é tudo (...). Se eu pudesse, anexaria os planetas". Entre 1880 e 1914, o mundo foi literalmente dividido entre as grandes potências ocidentais. Colônias, protetorados, zonas de influência passaram a definir um universo de relações econômicas, políticas, sociais e simbólicas entre um seleto clube de Estados ocidentais e grandes parcelas do planeta. Muito provavelmente poucos espaços sofreram transformações tão drásticas num período tão curto de tempo como o continente africano; poucos eventos são, contudo, tão ignorados como a famosa "partilha da África".
Estamos acostumados aos mapas escolares que apresentam dois momentos do continente: "a África em 1880", com algumas manchas no litoral que denunciavam a presença européia, e "a África em 1914", quando o continente aparece com fronteiras claramente demarcadas e totalmente dividido pelas potências ocidentais. Junto aos mapas, um pequeno texto costuma fazer referência à Conferência de Berlim, evento que, entre novembro de 1884 e fevereiro de 1885, teria aglutinado monarcas, estadistas e diplomatas europeus e definido os termos que presidiriam a partilha de um continente temido, em grande medida desconhecido e entregue a práticas bárbaras que cabia ao homem branco erradicar. Pouco ou quase nada se sabe da verdadeira batalha travada nos bastidores da diplomacia européia, dos verdadeiros propósitos ou resultados do encontro de Berlim ou dos recursos mobilizados para dar início a um dos períodos mais violentos da história recente da humanidade. E é contra esse silêncio que se insurge o historiador holandês H.L. Wesseling.
De início, é importante lembrar, Wesseling não se propõe a realizar uma história das barbaridades perpetradas pelas forças européias no continente africano nem a recuperar a "visão dos vencidos". O autor salienta que violências mais graves foram cometidas no interior das fronteiras européias. O que chama a sua atenção é a relativa indiferença que parece ensombrecer os acontecimentos africanos, indiferença que, arriscamos afirmar, chega até os nossos dias. É como se um "mal de origem" -refiro-me à entrada da África no mapa social, econômico e político do mundo moderno- alcançasse os nossos dias, confirmando um estranho consenso que faz com que os ultrajes cometidos no continente africano não sejam levados tão a sério como aqueles que assombram outras latitudes.
A compreensão dos termos da partilha, da mediocridade que imperou no jogo diplomático europeu do período e mesmo da maneira casual como teve início são fundamentais num momento em que uma historiografia africana se afirma e procura elucidar a complexa dinâmica da África pré-colonial e os diferentes agentes que definiram os rumos dos novos Estados africanos. A despeito da força da atual corrente afrocêntrica, repor o protagonismo europeu no momento da definição das modernas fronteiras do continente não corresponde a mais uma tentativa de tirar os africanos do palco da história: trata-se antes de reconhecer o lugar do Ocidente num processo cujas consequências se fazem sentir até os dias atuais.
"Dividir para Dominar" se propõe a fazer uma história da partilha da África, das motivações que levaram determinados personagens a se lançar numa expansão mundial sem precedentes. A África havia muito fazia parte de um sistema de trocas que envolvia a Europa e outras partes do globo. O norte do continente encontrava-se integrado à economia mediterrânea e em grande medida sob o domínio da Sublime Porta -o assentamento europeu na Argélia, intensificado a partir de 1830, era uma exceção. Quanto à África subsaariana, e com exceção da antiga colônia do Cabo no extremo sul do continente, a presença européia restringia-se a enclaves no litoral ou seguia o curso de alguns estuários. O interior do continente, praticamente desconhecido, não estava, contudo, alheio ao sistema que inter-relacionava a África ao Novo Mundo por meio do tráfico negreiro que alcança a segunda metade do século 19. E foi justamente a crise quase que estrutural do Império Otomano, associada ao fim iminente do trato, bases de antigos sistemas, que precipitou as discussões em torno da partilha.
Diplomatas e aventureiros, políticos e monarcas trataram de forçar assim as estruturas estatais, adaptadas para lidar com os respectivos espaços e problemas nacionais, a reformular-se no sentido de promover a expansão colonial. Entre o estabelecimento de um protetorado francês na Tunísia (1881), a ocupação britânica do Egito (1882) e a sujeição do Marrocos (1912), o continente foi quase que completamente dividido. O historiador holandês ressalta um elemento fundamental para a compreensão do processo: em grande medida, este estava relacionado a problemas internos da Europa. Assim, a guerra franco-prussiana e a perda para o novo império alemão dos territórios da Alsácia e da Lorena foram centrais no sentido de definir as opções imperialistas francesas para recuperar o seu devido lugar de destaque no mapa europeu.
Wesseling percorre cada uma das parcelas do continente africano ao longo da corrida européia. Da África ocidental à oriental, do Magreb ao sul do continente, personagens como Juies Ferry e Léon Gambetta, Gladstone, Salisbury e Disraeli, Bismarck e o rei dos Belgas, entre muitos outros, ganham corpo e alma. Do lado africano, Muhammad Ali, no Egito, o rei Glegle do Daomé, Menelik 2º da Etiópia... Motivações internas da diplomacia européia, paixões pessoais, mal-entendidos, tratados ambíguos com o claro propósito de burlar as lideranças africanas...Esclarecedora é a tentativa de, por uma deturpação de tradução, a Itália procurar atrelar politicamente a Etiópia de Menelik 2º e assim criar uma colônia italiana na região (jogo que foi prontamente percebido e rechaçado pela contraparte africana). O historiador é, ainda, brilhante ao destacar a importância das guerras anglo-bôeres no interior do processo, e sua descrição minuciosa de um personagem como Kruger é um dos trechos mais interessantes da obra.Mas, se a descrição dos personagens é rica no que diz respeito ao cenário dominado pela Grã-Bretanha, França, Alemanha, Bélgica ou mesmo Itália, quando se trata do caso especificamente português os personagens desaparecem da cena e nos defrontamos com descrições de caráter mais genérico. Assim, Wesseling fica devendo a incorporação de personalidades como Luciano Cordeiro ou Paiva de Andrade, entre muitos outros, decisivos nos rumos da África oriental portuguesa e de suas relações com os vizinhos britânicos ou com a Tanganica alemã. Também fica praticamente ausente do processo a importância das sociedades de geografia européias, centros de discussão que reuniam políticos, intelectuais e aventureiros, responsáveis por parte do debate público em torno da questão colonial. Missionários católicos e protestantes, um dos principais grupos de pressão no sentido de promover a expansão, pouco se fazem sentir ao longo do livro.A caracterização da partilha como "casual" e de seus principais personagens como "medíocres" carece de um debate mais detalhado. Seriam medíocres com relação a uma "nobre política" que ocuparia outros fóruns? Se é evidente que muito do que explica a partilha num primeiro momento diz respeito a uma dinâmica política interna às fronteiras da Europa, e que a expansão foi seguida com desconfiança pela população européia, não podemos ignorar que a expansão ganha rumo próprio e que as personalidades envolvidas no processo estão também inseridas num jogo de interesses que envolve grandes grupos de industriais e comerciantes europeus que se viram extremamente favorecidos pela corrida africana e seus desdobramentos. Individualidades como Cecil Rhodes, Lyautey ou Mousinho de Albuquerque foram menos medíocres nos seus propósitos e na definição de políticas que afetavam diretamente as populações dos espaços incorporados aos nascentes impérios coloniais.Enfim, caberia discutir a pouca relevância da partilha e do fenômeno colonial para a Europa, afirmada por Wesseling nas últimas páginas do seu livro. O lugar dos impérios nos rumos da política internacional, na reafirmação da centralidade européia ou no interior de uma determinada produção cultural obrigaria reavaliar sua importância. Estamos, assim, diante de um debate. A tradução do recente livro de Thomas Pakenham ("The Scramble for Africa") seria bem-vinda no sentido de aproximar o leitor brasileiro de diferentes correntes na interpretação do fenômeno colonial contemporâneo.
"Dividir para Dominar" se confirma, contudo, como uma referência obrigatória num momento em que a história e as ciências sociais retomam, agora com a força e a legitimidade conferidas por gerações de intelectuais africanos, este período central para a compreensão do devir do continente.

Omar Ribeiro Thomaz é doutor em antropologia social pela USP.

Folha de São Paulo

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