Juana Elbein dos Santos
A construção do cetro
14/Nov/98
Autor: Nelson Aguilar
O subtítulo, "Mestre Didi 80 Anos", poderia ser o título dessa obra pelo menos por dois motivos: o artista é suficientemente forte para revelar algo de suas origens e por resgatar um dos canais de inserção da cultura africana no país.
O livro ilustra o percurso do homem religioso, sua formação e consagração, com abundante iconografia reunida pela antropóloga Juana Elbein dos Santos, esposa de Deoscóredes Maximiliano dos Santos, Mestre Didi.
Há depoimentos, em geral curtos, como o do psicanalista Emílio Rodrigué, "bon vivant"; o do cineasta Orlando Senna, que relata a influência do homenageado em sua educação sentimental; o do próprio Didi, que encontra casualmente sua ascendência em pleno reinado de Ketú, na Nigéria, ao recitar seu brasão oral. Ensaios abordam a teodicéia de Maximiliano, mas, atingido por sua arte, contento-me com os dois artigos que dizem respeito à sua atividade estética. Ambos respondem a inquietações correspondentes às áreas de cada pesquisador.
George Nelson Preston, professor de história da arte da Universidade de Nova York, preocupa-se em distinguir a produção de Mestre Didi da arte folclórica. Aborda a questão dos materiais empregados para a realização das obras. Frágeis, efêmeros, em relação ao bronze ou ao mármore, não significam por isso confinamento num regionalismo de curto alcance. A evolução da arte nos últimos decênios milita pela legitimidade de couro, conchas, terras e fibras vegetais. Embora portador de visão conservadora acerca da arte contemporânea, Preston abre-se a casos como o de Nancy Graves, artista que aponta por meio de suas instalações o acesso paradoxal do mundo primitivo ao que se faz de mais arrojado nas ciências de hoje. Didi não precisa executar os malabarismos de um T.S. Eliot para conjugar passado, presente e futuro. Sua formação sacerdotal potencializa os mitos não como achado, mas como fonte perpétua de seu povo que atinge a pureza maior no desterro. A partir de uma visão culturalista, Preston reconstitui a trajetória estética do artista, enfatizando seu enraizamento no mundo nagô.
Jaime Sodré propõe-se demonstrar como as peças do ilustre "assogba", aquele que dá forma aos objetos do culto, distinguem-se das produzidas para museus e galerias. Há objetos artísticos dirigidos ao sagrado e ao profano. Nos últimos, Didi opera variações nos emblemas dos "•rsá" pertencentes ao panteão nagô, tendo como elemento a terra: Nàná, Obàlúayié e ãs—màrè. Sodré ainda fornece subsídios importantes para a compreensão do artista mediante reportagens colhidas no "Diário de Notícias" que cobriu a Primeira (e única) Bienal Nacional de Artes Plásticas realizada em Salvador entre dezembro de 1966 e fevereiro de 1967.
Pela leitura atenta do livro, percebe-se que o tempo que Maximiliano passou no exterior foi de radical transição para ele: então ocorreram a premiação na bienal baiana, a morte da genitora, a celebrada iyalorixá Mãe Menina, o casamento com Juana e a lua-de-mel a um só tempo iniciática e etnográfica à Nigéria, Daomé e Tunísia. Religião, arte, conhecimento a partir daí tornam-se indissolúveis para Mestre Didi.
As informações biográficas ou religiosas não elucidam o fenômeno estético. As peças de Didi têm proeminência porque colocam em questão a gênese da obra de arte, a saber, sua formatividade. Nesse sentido, o feixe das nervuras de palmas de palmeira que constitui o núcleo dos cetros, árvores e serpentes, verdadeiros gêneros por onde se reparte sua produção escultórica, está entre a terra e o ar, à maneira de um salto, da preparação para o vôo. Descortina o horizonte ou avizinha-se do firmamento. Nessa propulsão, aparenta-se a outro escultor, Brancusi. Não o marcado pela arte africana, mas o anterior, o das Maiastras, ou o posterior, que compreende com maior abrangência o legado dos artífices negros.
Os cauris, moluscos de teor opalino que capturam iridescências aquáticas, têm o papel de aliviar a base, as partes intermédias, a fim de oferecer condições para a arrancada de cada um dos projéteis. Nada muito diferente do emprego de azulejos aconselhado por Le Corbusier à equipe de arquitetos que construiria o Palácio Capanema, antigo Ministério de Educação e Saúde Pública do anterior distrito federal, com a finalidade de tirar peso das vedações térreas. Ou para fazer valer a sublimidade estrutural de João Villanovas Artigas: "É preciso fazer cantar o ponto de apoio".
Os cauris formam estrelas, constelações, ao início de cada peça, instaurando uma relação inversa entre as posições superior e inferior por meio da chuva de luminosidade, centelhas de luz, fogos de artifício a cruzarem o ponto de partida da produção. A maneira como Didi resolve o problema da base de suas peças, integrando-a ao todo, sem nenhuma solução extemporânea, dá a cada uma algo da conduta gráfica de uma linha que não se interrompe, do gesto contínuo de uma pincelada.
Tiras de couro ou de pano colorido pontuam os cetros, transmitindo à pura visualidade uma característica háptica mais que táctil, formando uma ponte entre os objetos consagrados. As tiras trabalham como um círculo a ser empunhado, dão dignidade de cetro às peças, ainda que sendo sinalizadores.
A serpente, signo de ãs—màrè, lida com a forma do infinito, por recorrer a uma fita de Moebius, passagem de uma dimensão a outra sem perder a continuidade. Alguns cetros de Didi compreendem círculos, sugerem a espiral concêntrica ou excêntrica, origem do labirinto, ida para as zonas subterrâneas e saída. O mitólogo Károly Kerényi explica que os primeiros labirintos foram dançados. A dança desempenha papel central no culto dos •risà. A dança é um gerúndio, o momento onde símbolos tornam-se formas, adquirem motricidade. Nesses momentos moebiusianos, a arte conquista autonomia, incorporando outras possibilidades. Didi vive e assinala essa abertura.
Nelson Aguilar é professor de história da arte na Universidade Estadual de Campinas e curador-geral da exposição "Brasil 500 Anos Artes Visuais".
Folha de São Paulo
A construção do cetro
14/Nov/98
Autor: Nelson Aguilar
O subtítulo, "Mestre Didi 80 Anos", poderia ser o título dessa obra pelo menos por dois motivos: o artista é suficientemente forte para revelar algo de suas origens e por resgatar um dos canais de inserção da cultura africana no país.
O livro ilustra o percurso do homem religioso, sua formação e consagração, com abundante iconografia reunida pela antropóloga Juana Elbein dos Santos, esposa de Deoscóredes Maximiliano dos Santos, Mestre Didi.
Há depoimentos, em geral curtos, como o do psicanalista Emílio Rodrigué, "bon vivant"; o do cineasta Orlando Senna, que relata a influência do homenageado em sua educação sentimental; o do próprio Didi, que encontra casualmente sua ascendência em pleno reinado de Ketú, na Nigéria, ao recitar seu brasão oral. Ensaios abordam a teodicéia de Maximiliano, mas, atingido por sua arte, contento-me com os dois artigos que dizem respeito à sua atividade estética. Ambos respondem a inquietações correspondentes às áreas de cada pesquisador.
George Nelson Preston, professor de história da arte da Universidade de Nova York, preocupa-se em distinguir a produção de Mestre Didi da arte folclórica. Aborda a questão dos materiais empregados para a realização das obras. Frágeis, efêmeros, em relação ao bronze ou ao mármore, não significam por isso confinamento num regionalismo de curto alcance. A evolução da arte nos últimos decênios milita pela legitimidade de couro, conchas, terras e fibras vegetais. Embora portador de visão conservadora acerca da arte contemporânea, Preston abre-se a casos como o de Nancy Graves, artista que aponta por meio de suas instalações o acesso paradoxal do mundo primitivo ao que se faz de mais arrojado nas ciências de hoje. Didi não precisa executar os malabarismos de um T.S. Eliot para conjugar passado, presente e futuro. Sua formação sacerdotal potencializa os mitos não como achado, mas como fonte perpétua de seu povo que atinge a pureza maior no desterro. A partir de uma visão culturalista, Preston reconstitui a trajetória estética do artista, enfatizando seu enraizamento no mundo nagô.
Jaime Sodré propõe-se demonstrar como as peças do ilustre "assogba", aquele que dá forma aos objetos do culto, distinguem-se das produzidas para museus e galerias. Há objetos artísticos dirigidos ao sagrado e ao profano. Nos últimos, Didi opera variações nos emblemas dos "•rsá" pertencentes ao panteão nagô, tendo como elemento a terra: Nàná, Obàlúayié e ãs—màrè. Sodré ainda fornece subsídios importantes para a compreensão do artista mediante reportagens colhidas no "Diário de Notícias" que cobriu a Primeira (e única) Bienal Nacional de Artes Plásticas realizada em Salvador entre dezembro de 1966 e fevereiro de 1967.
Pela leitura atenta do livro, percebe-se que o tempo que Maximiliano passou no exterior foi de radical transição para ele: então ocorreram a premiação na bienal baiana, a morte da genitora, a celebrada iyalorixá Mãe Menina, o casamento com Juana e a lua-de-mel a um só tempo iniciática e etnográfica à Nigéria, Daomé e Tunísia. Religião, arte, conhecimento a partir daí tornam-se indissolúveis para Mestre Didi.
As informações biográficas ou religiosas não elucidam o fenômeno estético. As peças de Didi têm proeminência porque colocam em questão a gênese da obra de arte, a saber, sua formatividade. Nesse sentido, o feixe das nervuras de palmas de palmeira que constitui o núcleo dos cetros, árvores e serpentes, verdadeiros gêneros por onde se reparte sua produção escultórica, está entre a terra e o ar, à maneira de um salto, da preparação para o vôo. Descortina o horizonte ou avizinha-se do firmamento. Nessa propulsão, aparenta-se a outro escultor, Brancusi. Não o marcado pela arte africana, mas o anterior, o das Maiastras, ou o posterior, que compreende com maior abrangência o legado dos artífices negros.
Os cauris, moluscos de teor opalino que capturam iridescências aquáticas, têm o papel de aliviar a base, as partes intermédias, a fim de oferecer condições para a arrancada de cada um dos projéteis. Nada muito diferente do emprego de azulejos aconselhado por Le Corbusier à equipe de arquitetos que construiria o Palácio Capanema, antigo Ministério de Educação e Saúde Pública do anterior distrito federal, com a finalidade de tirar peso das vedações térreas. Ou para fazer valer a sublimidade estrutural de João Villanovas Artigas: "É preciso fazer cantar o ponto de apoio".
Os cauris formam estrelas, constelações, ao início de cada peça, instaurando uma relação inversa entre as posições superior e inferior por meio da chuva de luminosidade, centelhas de luz, fogos de artifício a cruzarem o ponto de partida da produção. A maneira como Didi resolve o problema da base de suas peças, integrando-a ao todo, sem nenhuma solução extemporânea, dá a cada uma algo da conduta gráfica de uma linha que não se interrompe, do gesto contínuo de uma pincelada.
Tiras de couro ou de pano colorido pontuam os cetros, transmitindo à pura visualidade uma característica háptica mais que táctil, formando uma ponte entre os objetos consagrados. As tiras trabalham como um círculo a ser empunhado, dão dignidade de cetro às peças, ainda que sendo sinalizadores.
A serpente, signo de ãs—màrè, lida com a forma do infinito, por recorrer a uma fita de Moebius, passagem de uma dimensão a outra sem perder a continuidade. Alguns cetros de Didi compreendem círculos, sugerem a espiral concêntrica ou excêntrica, origem do labirinto, ida para as zonas subterrâneas e saída. O mitólogo Károly Kerényi explica que os primeiros labirintos foram dançados. A dança desempenha papel central no culto dos •risà. A dança é um gerúndio, o momento onde símbolos tornam-se formas, adquirem motricidade. Nesses momentos moebiusianos, a arte conquista autonomia, incorporando outras possibilidades. Didi vive e assinala essa abertura.
Nelson Aguilar é professor de história da arte na Universidade Estadual de Campinas e curador-geral da exposição "Brasil 500 Anos Artes Visuais".
Folha de São Paulo
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