A dinâmica da ciência
14/Nov/98
Antonio A. P. Videira
As relações entre filosofia da ciência e história da ciência constituem, e não é de hoje, um importante tema de reflexão para os profissionais dessas áreas. Até o início da década de 60, predominou uma corrente que defendia a tese de que a atividade em filosofia da ciência não requeria uma investigação acerca do desenvolvimento histórico da ciência. Por exemplo, para os defensores do positivismo lógico, os filósofos da ciência deveriam preocupar-se tão somente com a análise de teorias científicas prontas, aquelas já devidamente chanceladas pela comunidade científica. No jargão dos positivistas lógicos, os contextos da descoberta e da justificação são independentes. Essa distinção, apesar de muito importante para o positivismo lógico, e mesmo para a sua inserção em países como os EUA ou a Áustria, não chegou a ser predominante no cenário filosófico-científico francês.
A partir da publicação de "A Estrutura das Revoluções Científicas" (1962), de Thomas Kuhn (1922-1996), a situação sofreu, no mundo anglo-saxão, uma profunda modificação. Desde então, começou a grassar um movimento que afirmava que não mais seria possível conferir credibilidade às análises epistemológicas que não fossem fundamentadas em (sólidas) investigações históricas. A obra de Kuhn, no entanto, não provocou modificações apenas na filosofia da ciência. A história da ciência ganhou um enorme impulso, passando a ser um domínio muito trabalhado. No caso particular da história da ciência, essa transformação foi tão notável que, na opinião de Ian Hacking, ela se transformou em uma verdadeira indústria, dado o grande número de pessoas e artigos envolvidos.
Contudo, além deste número realmente impressionante, a aproximação entre a filosofia da ciência e a história da ciência teve uma outra consequência muito mais séria e profunda: os historiadores da ciência não mais poderiam continuar a ser epistemologicamente ingênuos. Contar a história do desenvolvimento histórico das teorias científicas pressupõe, por exemplo, uma concepção de teoria científica. Desse modo, filosofia da ciência e história da ciência passaram a constituir um par praticamente indissolúvel, o que inegavelmente confere a ambas um vigor extraordinário.
Afirmar a existência desse vigor não é nenhuma novidade. A bem da verdade, essa constatação é uma trivialidade. Mais difícil, porém, é explicar suas razões de ser.
Embora não seja um livro que tenha como preocupação principal a análise dessas razões, "Imagens de Natureza, Imagens de Ciência", de Paulo Abrantes, professor de filosofia da Universidade de Brasília, fornece esclarecedoras reflexões sobre esse tema.
Este livro compõe-se de uma introdução, sete capítulos e um apêndice. É na introdução que se apresenta a perspectiva histórico-filosófica do autor, na qual se reafirma a importância do fato de que as análises e discussões filosóficas e históricas se esclarecem reciprocamente. Nela se encontra a chave para a compreensão deste livro. O ponto de partida é que as expressões "imagem de natureza" e "imagem de ciência" são mais adequadas do que outras, como "paradigma" e mesmo "programa de pesquisa científica", para caracterizar a prática científica.
Em geral, sugere Abrantes, as análises filosóficas e históricas (pouco importando se elaboradas por cientistas profissionais, historiadores ou filósofos) sobre a ciência são equivocadas porque, entre outros problemas, pretendem obter resultados com graus de sistematicidade e coerência rara e dificilmente encontrados nos trabalhos dos próprios cientistas. Em suas próprias palavras: "Frequentemente, notam-se inconsistências entre a imagem explicitada por um cientista e a que efetivamente opera em sua prática".
Abrantes retoma, portanto, um antigo, recorrente e sério problema vivido pela filosofia da ciência e que a leva a receber críticas que podem, inclusive, provocar sua rejeição pelos cientistas. Estes últimos não se reconhecem nas análises apresentadas por filósofos e historiadores. Não é, contudo, objetivo de Abrantes resolver tal problema. A rigor, parece-nos que a sua intenção é provar, mediante uma discussão precisa e cuidadosa de casos históricos (o que é feito em cada um dos capítulos do livro), que as análises parciais (isto é, aquelas que privilegiam apenas elementos epistemológicos, metafísicos, históricos ou sociológicos) estão necessariamente condenadas ao fracasso. E não apenas na opinião dos cientistas. Atualmente, não são poucos os filósofos e historiadores da ciência que reconhecem a importância do uso de múltiplos pontos de vista. O emprego das expressões "imagem de natureza" (1) e "imagem de ciência" (2), obrigatoriamente imprecisas, deve mostrar que a prática científica atua no nível ontológico e também no nível metodológico. Uma imagem de natureza conduz a uma imagem de ciência e vice-versa.
Todavia, Abrantes não procura apenas apresentar a sua visão das relações que devem existir entre as diferentes perspectivas (filosófica, histórica e, em menor grau, sociológica) para que a discussão sobre a ciência ocorra de forma rica e instrutiva. Grande parte de seu livro é dedicado ao exame minucioso de questões relativas à história da ciência. Trata-se, pois, de investigar como se dá o "condicionamento recíproco entre imagens de natureza e imagens de ciência. O emprego do mesmo termo, 'imagem', no que se refere tanto aos pressupostos ontológicos de um programa de pesquisas (uma imagem de natureza) quanto aos pressupostos epistemológicos e metodológicos dessa atividade (uma imagem de ciência), tem o propósito de sugerir um tratamento global para essas diferentes categorias de imagens que permita evidenciar sua interdependência".
Nesse exame de casos históricos bem circunscritos, Abrantes discute, por exemplo, problemas de interpretação relativos à transmissão da ação física, às diferenças existentes entre as cosmologias platônica, aristotélica e estóica, ao surgimento do método experimental, à influência do pensamento estóico em Newton e à influência deste sobre a física francesa, entre outros muitos assuntos.
Em nossa opinião, a obra em questão não possui uma estrutura linear. Embora possa ser visto como uma coletânea de ensaios (com um fio condutor, que se encontra desenvolvido na introdução), este livro não deve ser lido por "partes", pois seus capítulos não são, a rigor, completamente independentes entre si. Essa característica, ao mesmo tempo que o torna mais interessante, faz com que a ausência de uma conclusão, como que para realizar um balanço dos resultados obtidos em cada um dos capítulos, constitua uma pequena deficiência desta obra, impedindo, por exemplo, que o leitor compreenda o último parágrafo do livro em que se afirma, resumidamente, que a atitude de Poincaré com relação à ciência foi mais acertada do que a de Duhem. Isso certamente não retira o brilho deste livro, que é bem escrito, claro e muito interessante, tornando-se assim uma referência obrigatória para todo aquele se dedica à história e filosofia da ciência.
Notas:
1. "As imagens de natureza -essas ontologias assistemáticas que orientam a atividade criadora" (pág. 13).
2. "Uma imagem de ciência pode incluir, por exemplo, concepções a respeito dos 'métodos' adequados para a aquisição do conhecimento científico ou, ainda, um conjunto de critérios para a validação de teorias (ou de qualquer outro produto de atividade científica), por exemplo. Tais critérios estão, normalmente, vinculados à adoção de determinados 'valores cognitivos', como os de adequação empírica, simplicidade, consistência, poder preditivo etc., que também constituem componentes centrais de imagens de ciência" (págs. 16-17).
Antonio Augusto Passos Videira é professor do departamento de filosofia da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) e pesquisador visitante do Observatório Nacional-CNPQ.
Folha de São Paulo
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