Sociologia dos chato-boys
Angela De Castro Gomes
Sociologia, antropologia, história, literatura. Destinos mistos os dessas disciplinas, cada vez com fronteiras mais fluidas nas modernas análises das ciências sociais. É o que nos demonstra o livro de Heloísa Pontes, trabalhando com o grupo da revista "Clima", formado em inícios de 1939 por um conjunto de estudantes da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da USP.
Escrito originalmente como tese de doutoramento, o texto deseja realizar uma "sociologia da vida intelectual" nas décadas de 1940 e 1950, tendo como móvel e suporte de análise o acompanhamento da trajetória de vida de um grupo de amigos, cujos projetos intelectuais se materializaram e deslancharam a partir do lançamento de um novo periódico na cena cultural paulista. A prática de organizar revistas, como estratégia para defesa e divulgação de projetos estético-políticos, é clássica nos meios intelectuais de todo mundo e era muito comum no Brasil da primeira metade do século. Portanto, trabalhar com revistas, como núcleo de reflexão para um mapeamento do ambiente intelectual de um certo período e espaço, é certamente um caminho tão exemplar quanto frutífero, se bem realizado.
Este é o caso de "Destinos Mistos", por várias razões, a começar pela escolha do periódico. "Clima" era, como muitas revistas de sua época, uma iniciativa de um grupo de amigos, ligados por laços de afetividade pessoal e cumplicidade intelectual, voltada para o debate da cultura nacional: literatura, artes plásticas, teatro, cinema, com destaque. Mas, diferentemente de suas antecessoras, estava sendo criada por estudantes de uma faculdade de filosofia (e não de direito), cuja formação na área das ciências sociais credenciava-os para um tipo de trabalho e para um padrão de carreira intelectual específicos. Por isso, o grupo de "Clima" procuraria demarcar, ao mesmo tempo, seu lugar e sua legitimidade no disputado campo intelectual da década de 1940 com argumentos fundados no exercício de uma crítica "acadêmica", isto é, científica e disciplinadamente construída pelo conhecimento de novas disciplinas que os municiavam para o exercício de avaliações "não improvisadas".
Eram assim críticos da cultura, professores universitários e produtores de iniciativas artísticas experimentais. Tudo bastante inusitado para o momento, o que se coadunava com a juventude de seus integrantes, rapazes e moças basicamente oriundos de famílias com boa situação financeira e com tradição de educar com esmero os seus filhos. Entre eles estavam Décio de Almeida Prado, Paulo Emílio Salles Gomes, Lourival Gomes Machado, Ruy Galvão de Andrade Coelho, Antonio Candido de Mello e Souza e sua futura mulher, Gilda de Mello e Souza. Como se vê, e esta é mais uma razão do acerto da escolha, um elenco de nomes que não apenas fará, a partir de "Clima", uma longa e brilhante carreira intelectual, como será responsável, mediante a crítica que elabora, pela construção de interpretações sobre a história da cultura brasileira que ganhariam largo trânsito e duração.
A perspectiva analítica da autora, rápida e precisamente exposta na "Introdução", para não cansar o leitor, combina o estudo da trajetória dos principais membros do grupo -suas origens familiares, seu mundo universitário e seus espaços de sociabilidade- com sua forma de atuação na revista: o momento de fundação, as idéias e valores compartilhados, a divisão de trabalho e o percurso e características do próprio periódico. Dessa interseção emerge um panorama que permite uma interessante aproximação do grupo, quer a partir de uma visão de como seus integrantes se representavam para si e para os outros, quer do ponto de vista de suas relações com o campo intelectual de seu tempo, demarcado por figuras como as dos modernistas Mário e Oswald de Andrade e a do sociólogo Florestan Fernandes.
Neste aspecto, é importante chamar a atenção para a natureza e propriedade das fontes utilizadas, centradas obviamente na própria revista, editada irregularmente de 1941 a 1944, e num grande conjunto de textos biográficos, sejam memórias, depoimentos ou entrevistas, concedidas a pesquisadores, entre os quais também a autora. É do trabalho com este tipo de fonte, inclusive, que nascem algumas das melhores passagens do livro, que aproxima o leitor do clima afetivo do grupo de amigos e também do tipo de sensibilidade intelectual que é produzida pela revista.
Os autores aparecem como atores de suas próprias vidas, recriando-se com a perspectiva do passar do tempo, analisando seus próprios vícios e virtudes, recolocando-se em cena, comparando-se por meio de uma periodização e, então, concluindo e duvidando. Mediante a memória, eles traçam seu perfil e o de seus amigos; o clima da universidade e da cidade de São Paulo, com seus professores, confeitarias, passeios e temas de debate. Afinal, eram críticos que recusavam o improviso e o álcool, preferindo um outro padrão de trabalho e de bebida: muita reflexão e refrigerantes. Um verdadeiro escândalo e desgosto para vários contemporâneos integrantes de uma geração marcada pela boemia. Daí a designação inspirada de Oswald de Andrade, atribuindo ao grupo um certo espírito: "os chato-boys".
Heloísa possuía, dessa forma, uma grande massa de dados e soube dela tirar um bom proveito, em especial quando a combinou com a análise da revista ou de outros textos que eram capitais para o estudo do grupo. Contudo, não creio que tenha sido tão feliz ao optar por concentrar, no último capítulo, um tão grande volume de informações biográficas sobre o destino dos membros de "Clima" e ainda tratar da trajetória de Florestan Fernandes, uma espécie de "outro" a emoldurar o grupo. Nesse momento do texto, torna-se difícil seguir a trilha cheia de atalhos, interessante e visível para os mais iniciados.
Mas não é o que acontece na maior parte do livro, que contribui com alguns achados sobre a cultura brasileira, a partir da ação de um grupo de homens que acabou por ser responsável por uma das versões mais consolidadas de sua história. Ao exercerem a crítica -a "crítica criteriosa" aplicada ao teatro, cinema, literatura e artes-; ao ganharem os espaços de jornais de grande circulação, profissionalizando o modelo de escrita que propunham; ao defenderem teses, escreverem livros e afirmarem-se como professores e criadores culturais, os amigos de "Clima" construíram, ao lado de suas carreiras bem-sucedidas, uma história-memória de um dos momentos mais ricos de nossa cultura.
Herdeiros e críticos dos modernistas, convivendo com as grandes figuras paulistas do movimento, agora inseridas em um contexto cultural muito mais politizado, puderam a elas se contrapor e, ao mesmo tempo, edificar suas conquistas e grandeza para sua própria geração e para as que lhe seguiriam. Paradigmáticas são as relações tecidas tanto com Mário de Andrade, primo de Gilda, quanto com Oswald, o amigo de Paulo Emílio e inventor dos "chato-boys". Ambos, cada um a sua maneira, foram influências decisivas para os jovens de "Clima". Mário, pela verdadeira soberania intelectual que exercia nos anos 1940, concentrando em si as glórias e angústias de um movimento que era, cada vez mais, alvo de balanços críticos, incluindo os realizados por ele mesmo. Mário que, neste período, consolida-se, por sua própria ação e pelos trabalhos de muitos e também de "Clima", como a melhor imagem do próprio modernismo, desde então radicado hegemonicamente em São Paulo.
Oswald, embora mais próximo, é bem mais criticado e menos valorizado, o que de resto não era uma especificidade desses estudantes da USP. Por isso mesmo, é muito significativo registrar como o livro destaca o processo de "reabilitação" de sua obra, que começa a ser retomada por Antonio Candido e, logo a seguir e com muita força, pelos concretistas dos anos 1950. Ela a partir de então vai ganhar vigor e importância, sobretudo no teatro e na conjuntura de resistência político-cultural ao regime militar, já na década de 1960.
A memória não é fixa e é sempre seletiva. A história também, embora tenha escrita e compromissos distintos da primeira. Mas ambas são construídas segundo a ótica do presente, razão pela qual o elenco de autores e obras consagrados de uma cultura pode oscilar, mostrando variações, inclusões e exclusões, nada arbitrárias ou ingênuas. O livro de Heloísa ilumina bastante a historicidade do que com frequência consideramos "natural" e/ou "casual" em processos sociais dessa natureza. O grupo de "Clima" -nem de literatos e artistas, como os modernistas que partiam, nem de cientistas sociais, como Florestan Fernandes, que chegava- fincou seus pés nos dois espaços e procurou com eles trabalhar.
"Destinos Mistos", a que a autora se lançou resguardada por pesquisa histórico-sociológica bem cuidada, e a que eu me lancei sem a necessária imposição de apontar insuficiências, sempre existentes. Afinal, o convite era para escrever uma resenha e não para participar de uma banca. Por dever de ofício, não era o caso de se privilegiar os espinhos. Eu me permiti então mais prazeres, pois, como as discretas e inteligentes mulheres do livro e certamente a autora, também gosto de cores, perfumes e flores.
Angela de Castro Gomes é professora de história do Brasil na Universidade Federal Fluminense (UFF).
Folha de São Paulo
Sociologia, antropologia, história, literatura. Destinos mistos os dessas disciplinas, cada vez com fronteiras mais fluidas nas modernas análises das ciências sociais. É o que nos demonstra o livro de Heloísa Pontes, trabalhando com o grupo da revista "Clima", formado em inícios de 1939 por um conjunto de estudantes da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da USP.
Escrito originalmente como tese de doutoramento, o texto deseja realizar uma "sociologia da vida intelectual" nas décadas de 1940 e 1950, tendo como móvel e suporte de análise o acompanhamento da trajetória de vida de um grupo de amigos, cujos projetos intelectuais se materializaram e deslancharam a partir do lançamento de um novo periódico na cena cultural paulista. A prática de organizar revistas, como estratégia para defesa e divulgação de projetos estético-políticos, é clássica nos meios intelectuais de todo mundo e era muito comum no Brasil da primeira metade do século. Portanto, trabalhar com revistas, como núcleo de reflexão para um mapeamento do ambiente intelectual de um certo período e espaço, é certamente um caminho tão exemplar quanto frutífero, se bem realizado.
Este é o caso de "Destinos Mistos", por várias razões, a começar pela escolha do periódico. "Clima" era, como muitas revistas de sua época, uma iniciativa de um grupo de amigos, ligados por laços de afetividade pessoal e cumplicidade intelectual, voltada para o debate da cultura nacional: literatura, artes plásticas, teatro, cinema, com destaque. Mas, diferentemente de suas antecessoras, estava sendo criada por estudantes de uma faculdade de filosofia (e não de direito), cuja formação na área das ciências sociais credenciava-os para um tipo de trabalho e para um padrão de carreira intelectual específicos. Por isso, o grupo de "Clima" procuraria demarcar, ao mesmo tempo, seu lugar e sua legitimidade no disputado campo intelectual da década de 1940 com argumentos fundados no exercício de uma crítica "acadêmica", isto é, científica e disciplinadamente construída pelo conhecimento de novas disciplinas que os municiavam para o exercício de avaliações "não improvisadas".
Eram assim críticos da cultura, professores universitários e produtores de iniciativas artísticas experimentais. Tudo bastante inusitado para o momento, o que se coadunava com a juventude de seus integrantes, rapazes e moças basicamente oriundos de famílias com boa situação financeira e com tradição de educar com esmero os seus filhos. Entre eles estavam Décio de Almeida Prado, Paulo Emílio Salles Gomes, Lourival Gomes Machado, Ruy Galvão de Andrade Coelho, Antonio Candido de Mello e Souza e sua futura mulher, Gilda de Mello e Souza. Como se vê, e esta é mais uma razão do acerto da escolha, um elenco de nomes que não apenas fará, a partir de "Clima", uma longa e brilhante carreira intelectual, como será responsável, mediante a crítica que elabora, pela construção de interpretações sobre a história da cultura brasileira que ganhariam largo trânsito e duração.
A perspectiva analítica da autora, rápida e precisamente exposta na "Introdução", para não cansar o leitor, combina o estudo da trajetória dos principais membros do grupo -suas origens familiares, seu mundo universitário e seus espaços de sociabilidade- com sua forma de atuação na revista: o momento de fundação, as idéias e valores compartilhados, a divisão de trabalho e o percurso e características do próprio periódico. Dessa interseção emerge um panorama que permite uma interessante aproximação do grupo, quer a partir de uma visão de como seus integrantes se representavam para si e para os outros, quer do ponto de vista de suas relações com o campo intelectual de seu tempo, demarcado por figuras como as dos modernistas Mário e Oswald de Andrade e a do sociólogo Florestan Fernandes.
Neste aspecto, é importante chamar a atenção para a natureza e propriedade das fontes utilizadas, centradas obviamente na própria revista, editada irregularmente de 1941 a 1944, e num grande conjunto de textos biográficos, sejam memórias, depoimentos ou entrevistas, concedidas a pesquisadores, entre os quais também a autora. É do trabalho com este tipo de fonte, inclusive, que nascem algumas das melhores passagens do livro, que aproxima o leitor do clima afetivo do grupo de amigos e também do tipo de sensibilidade intelectual que é produzida pela revista.
Os autores aparecem como atores de suas próprias vidas, recriando-se com a perspectiva do passar do tempo, analisando seus próprios vícios e virtudes, recolocando-se em cena, comparando-se por meio de uma periodização e, então, concluindo e duvidando. Mediante a memória, eles traçam seu perfil e o de seus amigos; o clima da universidade e da cidade de São Paulo, com seus professores, confeitarias, passeios e temas de debate. Afinal, eram críticos que recusavam o improviso e o álcool, preferindo um outro padrão de trabalho e de bebida: muita reflexão e refrigerantes. Um verdadeiro escândalo e desgosto para vários contemporâneos integrantes de uma geração marcada pela boemia. Daí a designação inspirada de Oswald de Andrade, atribuindo ao grupo um certo espírito: "os chato-boys".
Heloísa possuía, dessa forma, uma grande massa de dados e soube dela tirar um bom proveito, em especial quando a combinou com a análise da revista ou de outros textos que eram capitais para o estudo do grupo. Contudo, não creio que tenha sido tão feliz ao optar por concentrar, no último capítulo, um tão grande volume de informações biográficas sobre o destino dos membros de "Clima" e ainda tratar da trajetória de Florestan Fernandes, uma espécie de "outro" a emoldurar o grupo. Nesse momento do texto, torna-se difícil seguir a trilha cheia de atalhos, interessante e visível para os mais iniciados.
Mas não é o que acontece na maior parte do livro, que contribui com alguns achados sobre a cultura brasileira, a partir da ação de um grupo de homens que acabou por ser responsável por uma das versões mais consolidadas de sua história. Ao exercerem a crítica -a "crítica criteriosa" aplicada ao teatro, cinema, literatura e artes-; ao ganharem os espaços de jornais de grande circulação, profissionalizando o modelo de escrita que propunham; ao defenderem teses, escreverem livros e afirmarem-se como professores e criadores culturais, os amigos de "Clima" construíram, ao lado de suas carreiras bem-sucedidas, uma história-memória de um dos momentos mais ricos de nossa cultura.
Herdeiros e críticos dos modernistas, convivendo com as grandes figuras paulistas do movimento, agora inseridas em um contexto cultural muito mais politizado, puderam a elas se contrapor e, ao mesmo tempo, edificar suas conquistas e grandeza para sua própria geração e para as que lhe seguiriam. Paradigmáticas são as relações tecidas tanto com Mário de Andrade, primo de Gilda, quanto com Oswald, o amigo de Paulo Emílio e inventor dos "chato-boys". Ambos, cada um a sua maneira, foram influências decisivas para os jovens de "Clima". Mário, pela verdadeira soberania intelectual que exercia nos anos 1940, concentrando em si as glórias e angústias de um movimento que era, cada vez mais, alvo de balanços críticos, incluindo os realizados por ele mesmo. Mário que, neste período, consolida-se, por sua própria ação e pelos trabalhos de muitos e também de "Clima", como a melhor imagem do próprio modernismo, desde então radicado hegemonicamente em São Paulo.
Oswald, embora mais próximo, é bem mais criticado e menos valorizado, o que de resto não era uma especificidade desses estudantes da USP. Por isso mesmo, é muito significativo registrar como o livro destaca o processo de "reabilitação" de sua obra, que começa a ser retomada por Antonio Candido e, logo a seguir e com muita força, pelos concretistas dos anos 1950. Ela a partir de então vai ganhar vigor e importância, sobretudo no teatro e na conjuntura de resistência político-cultural ao regime militar, já na década de 1960.
A memória não é fixa e é sempre seletiva. A história também, embora tenha escrita e compromissos distintos da primeira. Mas ambas são construídas segundo a ótica do presente, razão pela qual o elenco de autores e obras consagrados de uma cultura pode oscilar, mostrando variações, inclusões e exclusões, nada arbitrárias ou ingênuas. O livro de Heloísa ilumina bastante a historicidade do que com frequência consideramos "natural" e/ou "casual" em processos sociais dessa natureza. O grupo de "Clima" -nem de literatos e artistas, como os modernistas que partiam, nem de cientistas sociais, como Florestan Fernandes, que chegava- fincou seus pés nos dois espaços e procurou com eles trabalhar.
"Destinos Mistos", a que a autora se lançou resguardada por pesquisa histórico-sociológica bem cuidada, e a que eu me lancei sem a necessária imposição de apontar insuficiências, sempre existentes. Afinal, o convite era para escrever uma resenha e não para participar de uma banca. Por dever de ofício, não era o caso de se privilegiar os espinhos. Eu me permiti então mais prazeres, pois, como as discretas e inteligentes mulheres do livro e certamente a autora, também gosto de cores, perfumes e flores.
Angela de Castro Gomes é professora de história do Brasil na Universidade Federal Fluminense (UFF).
Folha de São Paulo
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