PAULO PASTA
O rumor das coisas
10/Out/98
Cecilia Cotrim
O volume da coleção "Artistas da USP" dedicado à pintura de Paulo Pasta (1959) traz -além dos excelentes ensaios sobre a obra do artista assinados por Rodrigo Naves, Lorenzo Mammi, Alberto Tassinari e Nuno Ramos e de uma entrevista com o pintor- um conjunto de reproduções que cobre o percurso de seu trabalho desde 1987 até meados dos anos 90.
O grande mérito do livro é propor o convívio com as obras. A leitura dos escritos desperta, de fato, o desejo de experimentar mais uma vez a densidade dessas superfícies, seu tempo dilatado. Em seu ensaio "A Espessura do Oresente", que abre o volume, Rodrigo Naves ressalta o modo reflexivo do trabalho de Paulo Pasta. São pinturas que parecem sustentar apenas um "pedido sutil de atenção". Sem nostalgia alguma, há uma certa recusa do imediato, uma demanda de paciência com o presente. "Aquilo que vemos parece ter uma intensidade maior, que a superfície dos quadros abranda e retarda", escreve o crítico. Também os gestos do artista recusam toda efusão, "já não podem ser justificados por resultados vistosos e efetivos. Devem antes experimentar a resistência das coisas, incorporar à sua decisão o caráter dubitativo daquilo que ainda não ganhou sentido, e que por isso oscila entre ser tudo ou nada".
Mas a lentidão reflexiva demandada pelas telas de Paulo Pasta não supõe, logo aponta Nuno Ramos no artigo "Um Mundo Perfeito", a idéia da pintura como a "planta frágil" da arte contemporânea: trata-se de "quadros em que o gênero pintura está inteiro, potencializado, como um fruto incendiado por dentro até o limite físico do sabor, da cor e da beleza". Explorar a tensão desse limite, exauri-lo aos poucos, parece ser o motivo da arte de Paulo Pasta.
Se essas superfícies porosas pedem uma espécie de "ralentando" no fluxo contemporâneo, elas o fazem de modo atual. As telas desdobram-se intensamente na superfície do mundo, embora contidas. A matéria guarda uma certa densidade; mantém o que o próprio artista nomeia o "rumor das coisas". Nuno Ramos descreve o movimento das pinturas mais recentes de Pasta: "Esses são quadros literalmente difíceis de ver. Uma luminosidade excessiva aproxima as diferenças de tom e de cor (...). A cor não reflete, mas guarda a luz, o que torna os quadros iluminados a partir do interior. Com isto, aquela característica tão marcante nos grandes coloristas, a expansão aparentemente ilimitada da superfície do quadro, ganha a desaceleração de uma matéria que a difunde e refrata".
Na entrevista concedida a Rodrigo Naves e Nuno Ramos, o artista fala da resistência de sua pintura ao extravasamento, ao ilimitado. Permanecer no limite corresponderia a manter em tensão algo como a poética contida de Manuel Bandeira (1886-1968) e Volpi (1896-1988) e a abertura de um Jasper Johns (1930). Tudo o que esses trabalhos põem em jogo, até o que ainda seja "pintar algo", parece dirigir-se antes à espessura do mundo do que se perder em evocações, ou em relações internas à própria pintura. Retraídos e expansivos, entrelaçam matéria e espaço. Voltando à reflexão de Nuno Ramos, "o projeto é substantivar o espaço pelo valor de intensidade do visível (pela cor). (...) Deve estar, de certa forma, sobreposto e desabado em si mesmo, ele mesmo coisa, ele mesmo pedra, ele mesmo ar, como se aquilo que está entre as garrafas de Morandi pudesse agora coincidir por inteiro com elas".
Nesses trabalhos surge a pergunta pela tradição -talvez a do próprio moderno- posta por um pintor contemporâneo brasileiro. Tradição "tanto mais profunda quanto mais sentida como impossível", assinala Lorenzo Mammi no artigo "A Memória da Matéria". Não se trata de uma pintura de citações, mas as referências estão lá, pulsando discretas. "Revelar as camadas históricas do próprio gesto não pode ser, hoje, consolador -aliás, não pode mais separar-se de uma certa sensação de culpa", escreve o crítico. É verdade que deslizar pelos limites da tradição não é algo que a pintura de Paulo Pasta possa conceder. A suspensão na poética de Morandi (1890-1964), o movimento ambíguo do espaço na escultura de Amílcar de Castro (1920) pairam em torno das telas como interditos, manifestando a gravidade da situação contemporânea. Se o tema é retido pela ênfase atual da pintura, também a referência à história da arte permanece não-dita.
Em telas do final dos anos 80, o passado surge por gestos que quase lembram Iberê Camargo (1914-1994), embora mais ligeiros: são traços que arranham a pele da pintura. Esse conteúdo da memória -entre passado íntimo e histórico- pode ainda surgir lentamente, da opacidade do óleo misturado à cera. Em seu texto "As Pinturas de 90", Alberto Tassinari aborda um momento de passagem na obra de Paulo Pasta, em que duas séries se distinguem, unidas por "dois tratamentos opostos de interioridade". Na primeira delas, o autor observa que "o passado, ou, mais propriamente, o antigo, vinha à tona, deste modo, por operações quase privadas (rabiscos) e intransferíveis", buscando ressonância "na interioridade e no mundo de lembranças de quem olha".
Na segunda série, a pintura instaura um certo distanciamento. A interioridade "se apaga no tempo e nas profundidades do quadro". O dilema aqui seria interligar as dimensões de tempo e espaço, interior e exterior. "Mas", pergunta o autor, "se a pintura contemporânea não dá mais acesso pleno a interiores, como continuar a pintar?" No entanto, as telas mais recentes do artista, em sua instabilidade declarada, ao abrir-se à reversibilidade do mundo, talvez possam ampliar as palavras do filósofo Merleau-Ponty (1908-1961), lembradas por Tassinari: um quadro seria "o interior de um exterior e o exterior de um interior".
10/Out/98
Cecilia Cotrim
O volume da coleção "Artistas da USP" dedicado à pintura de Paulo Pasta (1959) traz -além dos excelentes ensaios sobre a obra do artista assinados por Rodrigo Naves, Lorenzo Mammi, Alberto Tassinari e Nuno Ramos e de uma entrevista com o pintor- um conjunto de reproduções que cobre o percurso de seu trabalho desde 1987 até meados dos anos 90.
O grande mérito do livro é propor o convívio com as obras. A leitura dos escritos desperta, de fato, o desejo de experimentar mais uma vez a densidade dessas superfícies, seu tempo dilatado. Em seu ensaio "A Espessura do Oresente", que abre o volume, Rodrigo Naves ressalta o modo reflexivo do trabalho de Paulo Pasta. São pinturas que parecem sustentar apenas um "pedido sutil de atenção". Sem nostalgia alguma, há uma certa recusa do imediato, uma demanda de paciência com o presente. "Aquilo que vemos parece ter uma intensidade maior, que a superfície dos quadros abranda e retarda", escreve o crítico. Também os gestos do artista recusam toda efusão, "já não podem ser justificados por resultados vistosos e efetivos. Devem antes experimentar a resistência das coisas, incorporar à sua decisão o caráter dubitativo daquilo que ainda não ganhou sentido, e que por isso oscila entre ser tudo ou nada".
Mas a lentidão reflexiva demandada pelas telas de Paulo Pasta não supõe, logo aponta Nuno Ramos no artigo "Um Mundo Perfeito", a idéia da pintura como a "planta frágil" da arte contemporânea: trata-se de "quadros em que o gênero pintura está inteiro, potencializado, como um fruto incendiado por dentro até o limite físico do sabor, da cor e da beleza". Explorar a tensão desse limite, exauri-lo aos poucos, parece ser o motivo da arte de Paulo Pasta.
Se essas superfícies porosas pedem uma espécie de "ralentando" no fluxo contemporâneo, elas o fazem de modo atual. As telas desdobram-se intensamente na superfície do mundo, embora contidas. A matéria guarda uma certa densidade; mantém o que o próprio artista nomeia o "rumor das coisas". Nuno Ramos descreve o movimento das pinturas mais recentes de Pasta: "Esses são quadros literalmente difíceis de ver. Uma luminosidade excessiva aproxima as diferenças de tom e de cor (...). A cor não reflete, mas guarda a luz, o que torna os quadros iluminados a partir do interior. Com isto, aquela característica tão marcante nos grandes coloristas, a expansão aparentemente ilimitada da superfície do quadro, ganha a desaceleração de uma matéria que a difunde e refrata".
Na entrevista concedida a Rodrigo Naves e Nuno Ramos, o artista fala da resistência de sua pintura ao extravasamento, ao ilimitado. Permanecer no limite corresponderia a manter em tensão algo como a poética contida de Manuel Bandeira (1886-1968) e Volpi (1896-1988) e a abertura de um Jasper Johns (1930). Tudo o que esses trabalhos põem em jogo, até o que ainda seja "pintar algo", parece dirigir-se antes à espessura do mundo do que se perder em evocações, ou em relações internas à própria pintura. Retraídos e expansivos, entrelaçam matéria e espaço. Voltando à reflexão de Nuno Ramos, "o projeto é substantivar o espaço pelo valor de intensidade do visível (pela cor). (...) Deve estar, de certa forma, sobreposto e desabado em si mesmo, ele mesmo coisa, ele mesmo pedra, ele mesmo ar, como se aquilo que está entre as garrafas de Morandi pudesse agora coincidir por inteiro com elas".
Nesses trabalhos surge a pergunta pela tradição -talvez a do próprio moderno- posta por um pintor contemporâneo brasileiro. Tradição "tanto mais profunda quanto mais sentida como impossível", assinala Lorenzo Mammi no artigo "A Memória da Matéria". Não se trata de uma pintura de citações, mas as referências estão lá, pulsando discretas. "Revelar as camadas históricas do próprio gesto não pode ser, hoje, consolador -aliás, não pode mais separar-se de uma certa sensação de culpa", escreve o crítico. É verdade que deslizar pelos limites da tradição não é algo que a pintura de Paulo Pasta possa conceder. A suspensão na poética de Morandi (1890-1964), o movimento ambíguo do espaço na escultura de Amílcar de Castro (1920) pairam em torno das telas como interditos, manifestando a gravidade da situação contemporânea. Se o tema é retido pela ênfase atual da pintura, também a referência à história da arte permanece não-dita.
Em telas do final dos anos 80, o passado surge por gestos que quase lembram Iberê Camargo (1914-1994), embora mais ligeiros: são traços que arranham a pele da pintura. Esse conteúdo da memória -entre passado íntimo e histórico- pode ainda surgir lentamente, da opacidade do óleo misturado à cera. Em seu texto "As Pinturas de 90", Alberto Tassinari aborda um momento de passagem na obra de Paulo Pasta, em que duas séries se distinguem, unidas por "dois tratamentos opostos de interioridade". Na primeira delas, o autor observa que "o passado, ou, mais propriamente, o antigo, vinha à tona, deste modo, por operações quase privadas (rabiscos) e intransferíveis", buscando ressonância "na interioridade e no mundo de lembranças de quem olha".
Na segunda série, a pintura instaura um certo distanciamento. A interioridade "se apaga no tempo e nas profundidades do quadro". O dilema aqui seria interligar as dimensões de tempo e espaço, interior e exterior. "Mas", pergunta o autor, "se a pintura contemporânea não dá mais acesso pleno a interiores, como continuar a pintar?" No entanto, as telas mais recentes do artista, em sua instabilidade declarada, ao abrir-se à reversibilidade do mundo, talvez possam ampliar as palavras do filósofo Merleau-Ponty (1908-1961), lembradas por Tassinari: um quadro seria "o interior de um exterior e o exterior de um interior".
Cecília Cotrim é professora de história da arte na Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro.
Folha de São Paulo
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