segunda-feira, 27 de outubro de 2008

CIÊNCIA E IDEOLOGIA

ALBERTO OLIVA
O tribunal dos fatos
12/Set/98


CLAUDIO VOUGA
estranha ironia. Florestan Fernandes lutou grande parte de sua vida para estabelecer um padrão científico para os estudos sociais no Brasil e, no entanto, passaria a ser conhecido por suas posições de militante político: homem de partido em vez de analista. É necessário esclarecer o equívoco, tarefa tanto mais difícil quanto se trata de mistificação deliberada. O professor de avental branco não é o militante e deputado constituinte. Como sociólogo, Florestan foi sem par, como constituinte, um entre vários. Assim como Tocqueville, Max Weber ou Eric Williams, o sociólogo, e não o político Florestan Fernandes, passará às gerações futuras e contribuirá, talvez, para moldá-las. Não é a ciência que leva à militância, e Florestan só chega a esta porque as portas da universidade lhe são fechadas pelo regime militar. Outra tivesse sido a história, outros teriam sido os caminhos do mestre, levado pelo turbilhão.
Ao contrário dos elogios dos literatos de plantão ou de homenagens póstumas, às vezes por parte de quem sempre nutriu por ele inveja e desprezo, não há melhor tributo à memória de Florestan do que um estudo sério de suas idéias, mostrando, ao lado de seu vigor intelectual e perspicácia analítica, também suas contradições, lacunas e preconceitos. É alvissareiro o fato de começar a surgir livros como o de Alberto Oliva, no qual se estuda a sua obra em profundidade, obra, como sua biografia, cheia de oscilações que apenas a linha reta da hagiografia ideológica faz desaparecer. O livro é resultado de pesquisa sobre a formação das ciências sociais no Brasil e, como diz o autor no prefácio, "Florestan ocupa o centro de nossas atenções críticas por ter, em nosso país, encarnado de forma ímpar a preocupação com a cientificidade da sociologia".
Na obra do sociólogo, sabidamente, os textos metodológicos não são o que de melhor existe. Quando escreve sobre os tupinambás, sobre as relações entre negros e brancos ou sobre a análise sociológica do subdesenvolvimento, aí temos Florestan em sua plenitude. Mas Alberto Oliva descarta explicitamente a parte substantiva da obra de Florestan para centrar sua análise nas questões epistemológicas e, como filósofo, vai justamente procurar o fundamento que embasa a sociologia do mestre: "(...) nosso principal objetivo será o de identificar a 'filosofia da ciência' subjacente à concepção de Florestan de 'sociologia científica'". Sua análise vai centrar-se especialmente em "Fundamentos Empíricos da Explicação Sociológica, Ensaios de Sociologia Geral e Aplicada" e "A Sociologia numa Era de Revolução Social" e, socorrendo-se ao mesmo tempo de Popper e dos frankfurtianos, entre outros, mostra-nos que essa filosofia subjacente é, na verdade, nada mais nada menos que o empirismo clássico.
Duas são então as tarefas a que se dedica Alberto Oliva. Por um lado, aponta as limitações dessa orientação metodológica na análise dos assim chamados fatos sociais, por outro, mostra que não se pode pretender que autores que partem de pressupostos epistemológicos tão diferentes como Durkheim, Weber e Marx possam ser classificados como defensores do empirismo indutivo. Em sua critica ao ecletismo metodológico em que Florestan se enreda , Oliva cita a obra pioneira de Octavio Ianni, "Sociologia da Sociologia Latino-Americana", que, já nos idos de 1971, chamava a atenção para o fato.
Ao ressaltar o indutivismo por vezes ingênuo de Florestan, o autor mostra como o mesmo pode ser compreendido: "Num ambiente cultural muitas vezes dominado por uma verborragia pedante (...), foi mais que oportuno o surgimento de uma postura metodológica como a de Florestan, que conclamava os discursos com pretensões científicas a enfrentarem o tribunal dos fatos". Justamente é nesse contexto que deve ser encarada a redução da sociologia ao método empírico indutivo, contra o bacharelismo e o impressionismo nem sempre tão inocente -afinal Florestan está escrevendo no Brasil de meados dos anos 50 e primeira metade dos 60. O mais incrível é que, 40 anos depois, ainda haja quem acredite estar fazendo ciência com a manipulação primária de dados empíricos que, graças à disponibilidade dos recursos da microinformática, facilmente se transformam em tabelas e gráficos que sempre permitirão dizer como o genial Gerson, autor da lei que leva o seu nome, que "uma coisa é uma coisa, outra coisa é outra coisa".
Reparos formais são necessários. O primeiro diz respeito às notas ao fim de cada capítulo -o que já é incômodo para o leitor-, as quais nem sempre se encontram no local referido. O segundo é talvez uma idiossincrasia para facilitar a consulta dos leitores, sobretudo os estudiosos, das fontes citadas. Sempre que houver uma tradução em língua portuguesa, esta deva ser priorizada, caso contrário a citação deve ser a da obra original, a não ser excepcionalmente. Não é o caso, entre outros, do livro clássico de Dahrendorf sobre as classes na sociedade contemporânea, cujo original é em inglês, traduzido pela editora da Universidade de Brasília, e que é citado por nosso autor em uma tradução italiana.
Uma palavra de elogio para a coleção "Filosofia" da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, da qual o livro de Oliva é o numero 55 dentre títulos de autores brasileiros de filosofia antiga, medieval, moderna e contemporânea, alguns conhecidos, outros menos. É pena que a divulgação da editora, como de resto a de tantas outras editoras universitárias, seja tão deficiente.

Claudio Vouga é professor do departamento de ciência política da USP.

Folha de São Paulo

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