JOSÉ ANTONIO MARAVALL
O mundo de cabeça para baixo
14/Nov/98
Benedito Nunes
Depois da morfologia de Wölflin, já se poderia afirmar a existência de um estilo barroco, oposto ao clássico, ambos correspondendo a distintos modos de visualidade plástica. Com Werner Weisbach, o barroco se estendeu como estilo artístico ao movimento de Contra-Reforma, preponderantemente jesuítico, que lhe foi correlato do ponto de vista cultural. Extrapolada, então, do espaço das igrejas ao espaço circundante, dos templos à corte, da paisagem ao vestuário, dos palácios aos jardins e parques, das festas aos préstitos triunfais, mediante o viés da cultura, a mesma arte do Setecentos passou a ser concebida como estilo de vida, a serviço de Deus ou da Igreja, em benefício do fortalecimento do dogma, da autoridade eclesiástica e do poder real. Tornava-se patente, na passagem do conceito morfológico ao conceito estilístico do barroco, a função ideológica dessa arte, ou seja, a sua instrumentalidade político-social durante o período de sua vigência.
"A Cultura do Barroco" reúne, num estudo abrangente, talvez o mais completo até essa data, em torno de tal instrumentalidade político-social, os aspectos todos, artísticos e culturais, as formas da arte e as expressões sociais ou coletivas, característicos do período. Com isso, a noção anterior de estilo de vida é transposta à pauta histórica e periodológica de um estilo de época. Que diferença faz? Talvez seja a primeira mais orgânica e o segundo mais integrativo daqueles aspectos antes mencionados, dentro de um marco cronológico definido -entre 1600 a 1670 ou 1680-, à história e à sociedade européia em sobressalto no século 17. É só a partir da segunda metade deste que a difusão da idéia copernicana, pondo-nos diante do infinito, de "uma região etérea imensa", da qual Giordano Bruno já falara, produziria o primeiro grande trauma do homem ocidental, mistura de um sentimento de desamparo e de abandono com a exaltação da subjetividade.
Mas Maravall não começa por esse trauma; começa pelo abalo terreno da ordem econômica, que desloca pequenos proprietários empobrecidos, sob o azorrague de preços altíssimos, do campo para a cidade. A ameaça de ruína se conjuga à inquietante mudança de atitudes e valores, pondo em risco a estabilidade da monarquia e da autoridade da Igreja, na Espanha como na França. Essa conjunção é tanto mais ameaçadora quanto se faz acompanhar da consciência da ruína e da capacidade que o homem tem para interferir no estado do mundo. Não fosse assim, a palavra "crise", egressa dos estudos médicos para assinalar o momento agudo das disfunções orgânicas, não teria subido à cena verbal da época, na qual, também, o termo "revolução" ingressava no rol dos proeminentes "idola fori". Haveria, então, forças liberadoras individuais prontas a sapar a pirâmide monárquico-senhorial- eclesiástica. Pois, se a crise está na boca de todos, a agitação não demora a surgir. A pirâmide exerce o poder repressor. Punir é razão de Estado. Não foi Quevedo preso? Não eram os atores e homossexuais policiados e reprimidos, as primeiras vozes femininas exprobadas, os bandoleiros caçados, a Inquisição sempre alerta? Mas os repressores se sentiriam inseguros: a população aumentava, cresciam a delinquência e o teatro, havia gente demais nas cidades, as pessoas já tinham deixado de se conhecer entre si, o mercado oferecia produtos novos, até roupas manufaturadas.
Portanto não bastaria somente reprimir. Os poderosos, monarcas com suas coroas, senhores com seus privilégios, que não eram mais guerreiros, e a Igreja, com a sua solidariedade prestada a ambos, também precisariam de enlear, seduzir, conquistar, persuadir os subversivos potenciais a lhe permanecerem fiéis, submissos, dóceis ao regime consagrado. Sem o mecanismo de contenção, de desvio e também -por que não dizê-lo?- de sublimação da latente, explosiva rebeldia, que resultava do emprego de todo um aparato de convencimento, o barroco seria ininteligível como estilo de uma época de crise. Se a crise indica o seu despontar, o interesse do Estado em aplacá-la moveria os recursos culturais disponíveis em proveito da integração social ameaçada para manter, sob controle, os transbordamentos prejudicais da ação humana, jamais de todo esconjurados. Já que não é possível extirpá-los, convém dirigi-los numa outra direção pela técnica do desvio ou proporcionar-lhes objetivos elevados, sublimados, à altura da empinada onda sediciosa. O barroco cumpriria essa função direcional.
Cultura sublimada é cultura dirigida por regras táticas de conduta, que permitem manobrá-la; havendo regras, a primeira das quais a prudência, existiria uma regulação técnica do agir que atua desde o pensar. O barroco é pragmático; importam-lhe os efeitos a produzir. Quer dizer que os poderosos se empenham em formar uma mentalidade da qual também participam. Mas o que vai à frente, a capciosa artimanha do poder ou a mentalidade que nela já tomara forma? As ideologias não precisam ser conscientes; as instituições lhes fornecem os meios de atuar. Escreve-se poesia sob encomenda; as Academias acabam de abrir suas portas. E não só as Academias; também os escritos já são obras de impacto, que não convocam mais do que o gosto, afecção da sensibilidade, destinando-se, além de ensinar, a comover e a deleitar ou, mais precisamente, a comover e deleitar para ensinar. Decerto que a produção aqui aumentou como nos demais setores; manufaturam-se roupas e poemas para um maior consumo, que rebaixa a qualidade do produto aumentando-lhe a quantidade para um maior número de pessoas. No "vulgo" se ergue a enorme, massiva, cabeça do "público", agente ativo e passivo das festas que complementam a produção literária e artística.
Embora em estreita conexão com o campo, a cultura, assim dimensionada, cresce nas e com as grandes cidades, puxada, sobretudo, pelo teatro, que ganha a máxima liberdade de invenção. Todos os caprichos são admitidos, todas as novidades toleradas, contanto que não passem do palco à sociedade. Os bufões têm a palavra livre, a toda hora, diante dos reis. E o mundo mesmo é uma bufoneria que, "de cabeça para baixo", se assemelha a um teatro, se não a um labirinto, de difícil saída, onde, com as guerras de religião e depois delas, imperam a crueldade e a violência. Só poderia ser pessimista, com a tônica da melancolia, sintoma de desencanto e atestação da fugacidade de tudo, dos azares da fortuna, irmã gêmea do jogo, o ânimo desse mundo revirado, que passara a conhecer as leis galileanas do movimento, penhor tanto de eterna mudança quanto da caducidade e do declínio.
Dentro desse quadro histórico, social e psicológico, caberiam os recursos constitutivos da arte barroca -a exuberância e o inacabamento, o antitetismo e a suspensão, a procura do obscuro e do difícil, que condizem com o efeito máximo buscado e requerem o exercício dos "heróicos furores". De qualquer modo, essas técnicas superlativas facilitam o arrebatamento do leitor e do espectador, posto fora de si, e assim despossuído de sua alma pela onda emocional provocada que o envolve. Os recursos artísticos desatam as molas psicológicas mais íntimas, vulnerando o indivíduo, à mercê de forças externas que o controlam. A cultura barroca que os canaliza é uma cultura alienante. "A base para que a cultura barroca possa ser uma cultura dirigida se encontra no fato de ser fundamentalmente uma cultura de alienação". Confirma-o a institucionalização da festa, que mais diretamente a ligava ao sistema social e "aos meios de integração nos quais se apoiava a monarquia barroca". Até na discussão, peculiar ao período, sobre se era ao desenho ou à cor que caberia o primado na pintura, invocava-se, como superioridade da última, sua aptidão para revelar os movimentos da alma e, portanto, para exteriorizar-lhe as motivações internas, psicológicas. Barroco é igual a dirigismo eficaz, solerte, que mantém o desejo do novo sob a rédea curta de uma ideologia, não apenas conservadora, mas também reacionária. A reação se empenha em cercear, se não em estiolar, as sementes do mundo moderno, em pleno processo de germinação.
Afinal, para usarmos uma antiga terminologia da lógica, no conceito de barroco, elaborado por Maravall, a "extensão" mínima, relativa a um período determinado, contrasta com a "compreensão" máxima, que excede essa delimitação. Como estilo de época, aplica-se à totalidade do que aparece nessa fase, entre 1600 e 1670 ou 80. Sua abrangência é tão traiçoeira como a de quaisquer outros conceitos meta-históricos, a exemplo das "almas" de Spengler ou das "sociedades" de Toynbee, que estão em alguns casos aquém e, em outros, além dos grandes e complexos conjuntos a que se aplicam. Se tudo é barroco nesse período, o estilo, em vez de preponderante, é dominante; e se é dominante, avulta como "mens", como "espírito" de época, muito acima da atuação dos móveis ideológicos que o teriam impulsionado. Por outro lado, a noção de ideologia utilizada é dúbia. Às vezes parece que se trata de uma ideologia "primária" que as classes dominantes secretam de si mesmas; outras vezes, parece que estamos lidando com uma ideologia secundária, voluntária, forjada por um acordo entre a monarquia, a nobreza e as altas hierarquias eclesiásticas.
Sendo mínima a extensão e máxima a compreensão do conceito, o barroco teria que ser onímodo e, por isso, abrangendo o não-barroco em seu âmbito e antecipando-se, sob tantos aspectos, ao moderno. Um desses aspectos é o gosto, e seu correlato, o estético. Outro é o impacto sensível e a repercussão afetiva das obras. Pode-se, também, perguntar: como ficaria a posição de Descartes? Por ser um pensador do período, ele é barroco? E conviria atribuir a esse estilo o epíteto de pragmático? Afirma Maravall, ainda, que o dirigismo, já tantas vezes mencionado, foi uma espécie de "behaviour in nuce". E também designa, como massa ou como pré-massa, o "público" que levantou, na época, a sua cabeça multitudinária, quando o movimento do mercado antecipava a forma da livre-concorrência.
Essas antecipações advêm da inevitável projeção do moderno sobre o barroco. É difícil, por isso, estabelecer limites precisos entre os dois. Caindo na armadilha do próprio tempo a que se expõe, o historiador se debruça na janela do presente, e é da perspectiva já moderna dos conceitos morfológico e estilístico do barroco, seus insinuantes e tácitos pressupostos, que pode divisá-lo como estilo de uma época passada.
Benedito Nunes é professor da Universidade Federal do Pará e autor de "Crivo de Papel" (Ática).
Folha de São Paulo
O mundo de cabeça para baixo
14/Nov/98
Benedito Nunes
Depois da morfologia de Wölflin, já se poderia afirmar a existência de um estilo barroco, oposto ao clássico, ambos correspondendo a distintos modos de visualidade plástica. Com Werner Weisbach, o barroco se estendeu como estilo artístico ao movimento de Contra-Reforma, preponderantemente jesuítico, que lhe foi correlato do ponto de vista cultural. Extrapolada, então, do espaço das igrejas ao espaço circundante, dos templos à corte, da paisagem ao vestuário, dos palácios aos jardins e parques, das festas aos préstitos triunfais, mediante o viés da cultura, a mesma arte do Setecentos passou a ser concebida como estilo de vida, a serviço de Deus ou da Igreja, em benefício do fortalecimento do dogma, da autoridade eclesiástica e do poder real. Tornava-se patente, na passagem do conceito morfológico ao conceito estilístico do barroco, a função ideológica dessa arte, ou seja, a sua instrumentalidade político-social durante o período de sua vigência.
"A Cultura do Barroco" reúne, num estudo abrangente, talvez o mais completo até essa data, em torno de tal instrumentalidade político-social, os aspectos todos, artísticos e culturais, as formas da arte e as expressões sociais ou coletivas, característicos do período. Com isso, a noção anterior de estilo de vida é transposta à pauta histórica e periodológica de um estilo de época. Que diferença faz? Talvez seja a primeira mais orgânica e o segundo mais integrativo daqueles aspectos antes mencionados, dentro de um marco cronológico definido -entre 1600 a 1670 ou 1680-, à história e à sociedade européia em sobressalto no século 17. É só a partir da segunda metade deste que a difusão da idéia copernicana, pondo-nos diante do infinito, de "uma região etérea imensa", da qual Giordano Bruno já falara, produziria o primeiro grande trauma do homem ocidental, mistura de um sentimento de desamparo e de abandono com a exaltação da subjetividade.
Mas Maravall não começa por esse trauma; começa pelo abalo terreno da ordem econômica, que desloca pequenos proprietários empobrecidos, sob o azorrague de preços altíssimos, do campo para a cidade. A ameaça de ruína se conjuga à inquietante mudança de atitudes e valores, pondo em risco a estabilidade da monarquia e da autoridade da Igreja, na Espanha como na França. Essa conjunção é tanto mais ameaçadora quanto se faz acompanhar da consciência da ruína e da capacidade que o homem tem para interferir no estado do mundo. Não fosse assim, a palavra "crise", egressa dos estudos médicos para assinalar o momento agudo das disfunções orgânicas, não teria subido à cena verbal da época, na qual, também, o termo "revolução" ingressava no rol dos proeminentes "idola fori". Haveria, então, forças liberadoras individuais prontas a sapar a pirâmide monárquico-senhorial- eclesiástica. Pois, se a crise está na boca de todos, a agitação não demora a surgir. A pirâmide exerce o poder repressor. Punir é razão de Estado. Não foi Quevedo preso? Não eram os atores e homossexuais policiados e reprimidos, as primeiras vozes femininas exprobadas, os bandoleiros caçados, a Inquisição sempre alerta? Mas os repressores se sentiriam inseguros: a população aumentava, cresciam a delinquência e o teatro, havia gente demais nas cidades, as pessoas já tinham deixado de se conhecer entre si, o mercado oferecia produtos novos, até roupas manufaturadas.
Portanto não bastaria somente reprimir. Os poderosos, monarcas com suas coroas, senhores com seus privilégios, que não eram mais guerreiros, e a Igreja, com a sua solidariedade prestada a ambos, também precisariam de enlear, seduzir, conquistar, persuadir os subversivos potenciais a lhe permanecerem fiéis, submissos, dóceis ao regime consagrado. Sem o mecanismo de contenção, de desvio e também -por que não dizê-lo?- de sublimação da latente, explosiva rebeldia, que resultava do emprego de todo um aparato de convencimento, o barroco seria ininteligível como estilo de uma época de crise. Se a crise indica o seu despontar, o interesse do Estado em aplacá-la moveria os recursos culturais disponíveis em proveito da integração social ameaçada para manter, sob controle, os transbordamentos prejudicais da ação humana, jamais de todo esconjurados. Já que não é possível extirpá-los, convém dirigi-los numa outra direção pela técnica do desvio ou proporcionar-lhes objetivos elevados, sublimados, à altura da empinada onda sediciosa. O barroco cumpriria essa função direcional.
Cultura sublimada é cultura dirigida por regras táticas de conduta, que permitem manobrá-la; havendo regras, a primeira das quais a prudência, existiria uma regulação técnica do agir que atua desde o pensar. O barroco é pragmático; importam-lhe os efeitos a produzir. Quer dizer que os poderosos se empenham em formar uma mentalidade da qual também participam. Mas o que vai à frente, a capciosa artimanha do poder ou a mentalidade que nela já tomara forma? As ideologias não precisam ser conscientes; as instituições lhes fornecem os meios de atuar. Escreve-se poesia sob encomenda; as Academias acabam de abrir suas portas. E não só as Academias; também os escritos já são obras de impacto, que não convocam mais do que o gosto, afecção da sensibilidade, destinando-se, além de ensinar, a comover e a deleitar ou, mais precisamente, a comover e deleitar para ensinar. Decerto que a produção aqui aumentou como nos demais setores; manufaturam-se roupas e poemas para um maior consumo, que rebaixa a qualidade do produto aumentando-lhe a quantidade para um maior número de pessoas. No "vulgo" se ergue a enorme, massiva, cabeça do "público", agente ativo e passivo das festas que complementam a produção literária e artística.
Embora em estreita conexão com o campo, a cultura, assim dimensionada, cresce nas e com as grandes cidades, puxada, sobretudo, pelo teatro, que ganha a máxima liberdade de invenção. Todos os caprichos são admitidos, todas as novidades toleradas, contanto que não passem do palco à sociedade. Os bufões têm a palavra livre, a toda hora, diante dos reis. E o mundo mesmo é uma bufoneria que, "de cabeça para baixo", se assemelha a um teatro, se não a um labirinto, de difícil saída, onde, com as guerras de religião e depois delas, imperam a crueldade e a violência. Só poderia ser pessimista, com a tônica da melancolia, sintoma de desencanto e atestação da fugacidade de tudo, dos azares da fortuna, irmã gêmea do jogo, o ânimo desse mundo revirado, que passara a conhecer as leis galileanas do movimento, penhor tanto de eterna mudança quanto da caducidade e do declínio.
Dentro desse quadro histórico, social e psicológico, caberiam os recursos constitutivos da arte barroca -a exuberância e o inacabamento, o antitetismo e a suspensão, a procura do obscuro e do difícil, que condizem com o efeito máximo buscado e requerem o exercício dos "heróicos furores". De qualquer modo, essas técnicas superlativas facilitam o arrebatamento do leitor e do espectador, posto fora de si, e assim despossuído de sua alma pela onda emocional provocada que o envolve. Os recursos artísticos desatam as molas psicológicas mais íntimas, vulnerando o indivíduo, à mercê de forças externas que o controlam. A cultura barroca que os canaliza é uma cultura alienante. "A base para que a cultura barroca possa ser uma cultura dirigida se encontra no fato de ser fundamentalmente uma cultura de alienação". Confirma-o a institucionalização da festa, que mais diretamente a ligava ao sistema social e "aos meios de integração nos quais se apoiava a monarquia barroca". Até na discussão, peculiar ao período, sobre se era ao desenho ou à cor que caberia o primado na pintura, invocava-se, como superioridade da última, sua aptidão para revelar os movimentos da alma e, portanto, para exteriorizar-lhe as motivações internas, psicológicas. Barroco é igual a dirigismo eficaz, solerte, que mantém o desejo do novo sob a rédea curta de uma ideologia, não apenas conservadora, mas também reacionária. A reação se empenha em cercear, se não em estiolar, as sementes do mundo moderno, em pleno processo de germinação.
Afinal, para usarmos uma antiga terminologia da lógica, no conceito de barroco, elaborado por Maravall, a "extensão" mínima, relativa a um período determinado, contrasta com a "compreensão" máxima, que excede essa delimitação. Como estilo de época, aplica-se à totalidade do que aparece nessa fase, entre 1600 e 1670 ou 80. Sua abrangência é tão traiçoeira como a de quaisquer outros conceitos meta-históricos, a exemplo das "almas" de Spengler ou das "sociedades" de Toynbee, que estão em alguns casos aquém e, em outros, além dos grandes e complexos conjuntos a que se aplicam. Se tudo é barroco nesse período, o estilo, em vez de preponderante, é dominante; e se é dominante, avulta como "mens", como "espírito" de época, muito acima da atuação dos móveis ideológicos que o teriam impulsionado. Por outro lado, a noção de ideologia utilizada é dúbia. Às vezes parece que se trata de uma ideologia "primária" que as classes dominantes secretam de si mesmas; outras vezes, parece que estamos lidando com uma ideologia secundária, voluntária, forjada por um acordo entre a monarquia, a nobreza e as altas hierarquias eclesiásticas.
Sendo mínima a extensão e máxima a compreensão do conceito, o barroco teria que ser onímodo e, por isso, abrangendo o não-barroco em seu âmbito e antecipando-se, sob tantos aspectos, ao moderno. Um desses aspectos é o gosto, e seu correlato, o estético. Outro é o impacto sensível e a repercussão afetiva das obras. Pode-se, também, perguntar: como ficaria a posição de Descartes? Por ser um pensador do período, ele é barroco? E conviria atribuir a esse estilo o epíteto de pragmático? Afirma Maravall, ainda, que o dirigismo, já tantas vezes mencionado, foi uma espécie de "behaviour in nuce". E também designa, como massa ou como pré-massa, o "público" que levantou, na época, a sua cabeça multitudinária, quando o movimento do mercado antecipava a forma da livre-concorrência.
Essas antecipações advêm da inevitável projeção do moderno sobre o barroco. É difícil, por isso, estabelecer limites precisos entre os dois. Caindo na armadilha do próprio tempo a que se expõe, o historiador se debruça na janela do presente, e é da perspectiva já moderna dos conceitos morfológico e estilístico do barroco, seus insinuantes e tácitos pressupostos, que pode divisá-lo como estilo de uma época passada.
Benedito Nunes é professor da Universidade Federal do Pará e autor de "Crivo de Papel" (Ática).
Folha de São Paulo
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