Conversações sobre história
14/Nov/98
Ciro Flamarion Cardoso
O lançamento quase simultâneo de três volumes acerca da teoria e da metodologia da história traduz, quero crer, uma intensificação do interesse acerca de um setor dos estudos históricos no passado visto como de importância secundária e suspeitamente próximo de algo que não seria propriamente da alçada dos historiadores (talvez, indagava-se, dos filósofos?).
Dois dos livros arrolados aqui têm em comum derivarem de entrevistas. Revelar-se-ão, porém, bem diferentes se os compararmos. Em "Reflexões sobre o Saber Histórico", a organizadora tomou a iniciativa, tão interessante quanto original, de fazer a três historiadores franceses as mesmas perguntas acerca de questões -história e representação, história e cultura, meios de comunicação de massa e história, a dimensão psicológica da história, identidade coletiva e história, o retorno da história política, a questão nacional, as formas do conhecer histórico- que achava, com razão, estarem no centro das discussões atuais acerca da disciplina histórica. As respostas dadas a tais perguntas constituem o livro, precedidas por pequena apresentação redigida pela organizadora.
Já o volume de Le Goff pertence a um gênero que, pessoalmente, não me agrada muito, já que sou hostil ao narcisismo que grassa atualmente: a ego-história, um gênero no qual é difícil escapar de todo ao cabotinismo. O livro deriva de "conversações" com Marc Heurgon, intelectual que assume a posição de interlocutor e entrevistador, em que se sente a cada momento a edição, a intervenção do próprio Le Goff para escolher os rumos que tomaria o texto e acolher ou descartar temas ou enfoques.
No caso de "Reflexões sobre o Saber Histórico", gostei do livro. Em especial, é reconfortante ler respostas inteligentes de historiadores que não estão inseridos na "Nova História", tendência na qual a insistência é muito exagerada em certos ambientes universitários de nosso país, já que a relativa falta de massa crítica em nossas ciências sociais (a despeito de enormes avanços já feitos) costuma tornar entre nós muito monolíticos os predomínios ou as modas. Vovelle seria a exceção, de fato só parcial, como se verá.
A única coisa que lamentei foi a organizadora ter escolhido ser ativa na origem, ou a montante, mas não a jusante: de fato, uma vez formuladas as suas perguntas nas entrevistas (em duas ocasiões: 1992 e 1995), ela se limita a reproduzir as respostas de seus ilustres entrevistados e se abstém de comentá-las. Ora, acho que uma comparação explícita entre tais respostas teria sido bem interessante. Por exemplo, escolhendo a questão das representações, poder-se-ia verificar que Pierre Vilar, apesar de declarar sentir-se defasado em relação às novidades publicadas devido a seus sérios problemas de visão, responde "de fora" -ou seja, como alguém que não concede grande importância e mesmo contesta que se privilegie a noção de representação sobre a de efetiva explicação ao se tratar do conhecimento histórico (alguém que pratica o realismo epistemológico)- , mas percebe perfeitamente como o problema tem sido formulado.
Quanto a Michel Vovelle, responde "de dentro" e sem dúvida dá uma resposta bem informada, embora não fechando de todo com a autoproclamada "Nova História", posto que, se não acha tratar-se de um modismo, também percebe perigos na tendência que predomina hoje em dia: não à toa, em outro momento de suas respostas, declara-se "quantitativista convicto, pois creio que a abordagem quantitativa é um dos meios de romper o silêncio das massas", afastando-se, portanto, de uma crítica por vezes de todo ilegítima, se bem que frequente na atualidade, ao emprego de métodos quantitativos em história. Já Madeleine Rebérioux responde acerca das representações como quem não está só "de fora", mas, também, pouco interessada pelo tema: com efeito, ela não demora a abandoná-lo logo depois de iniciar sua resposta, desviando com inteligência a sua fala, tangencialmente, na direção do que de fato lhe interessa mais.
Jacques Le Goff é um dos maiores medievalistas franceses vivos; alguns diriam, mesmo, um dos maiores do mundo. Não carecem de interesse sua vida, seus trajetos intelectuais e suas atividades administrativas na revista "Annales" e na École des Hautes Études en Sciences Sociales. A sua versão dos afrontamentos que teve, no contexto do mandarinato francês, com Fernand Braudel, Ruggiero Romano e Clémens Heller, entre outros, pareceu-me, entretanto, extremamente editada, expurgada; ou seja, parcial em ambos os sentidos do termo. Também acho que há muitas coisas não ditas de propósito e pessoas voluntariamente não mencionadas, tanto em relação aos "Annales" quanto à École. Em todo caso, Le Goff assume com clareza seu eventual recurso a pistolões ou, como os chama, "protetores".
Apesar do livro abundar em conexões explícitas entre sua vida e sua obra, achei bem mais interessantes as conexões não explicitadas, mas possíveis. Assim, por exemplo, a parcialidade urbana e anticamponesa expressamente manifestada por Le Goff ajuda-me a entender seu intelectualismo extremo, que o levou entre outras coisas, no tocante ao "nascimento do purgatório", a adiar tal nascimento -a meu ver claríssimo em ambientes populares já na Alta Idade Média (como se pode notar, por exemplo, em passagens de Beda, o Venerável)- até o momento relativamente tardio (segunda metade do século 12) em que o purgatório foi objeto de discussões urbanas e eruditas entre clérigos.
Outro assunto que chama a atenção é a grande insistência, tanto de Le Goff quanto do entrevistador, no sentido de apresentar o primeiro como um homem de esquerda. Embora quanto a este ponto as opiniões possam variar a partir de definições e de onde se percebam as fronteiras entre posições, acho que estamos diante de uma pessoa que se opõe sinceramente ao anti-semitismo e ao racismo, além de defender reformas sociais moderadas, mas que manifesta atitudes no mínimo muito conservadoras e etnocêntricas diante do "outro", do não-europeu humano ou natural (ver a referência a "nativos" na pág. 22 e, sobretudo, aquela aos países tropicais e equatoriais na pág. 56: "Minha angústia suprema seria viver num clima tropical ou equatorial, que provoca um insuportável torpor, povoado pelo mundo obsceno da floresta, da vegetação exuberante e sobretudo desse pesadelo dos insetos"). Outrossim, a Europa da qual, mesmo fazendo-lhe críticas, é partidário convicto, no formato que de fato tem sido aquele de sua construção, dificilmente poderia ser considerada um empreendimento de esquerda.
Héctor Pérez Brignoli e eu temos uma enorme dívida de gratidão para com Josep Fontana, historiador marxista catalão que, em 1976, recomendou para publicação pela editora Crítica, de Barcelona, o livro "Os Métodos da História", que havíamos elaborado -dois historiadores então absolutamente desconhecidos fora de nossa área de atuação à época, a América Central (onde Héctor ainda reside e trabalha). Não contente em garantir a publicação de nosso texto, encarregou-se pessoalmente de apresentá-lo. Nunca conheci pessoalmente o professor Fontana, mas fico contentíssimo com a publicação entre nós de seu excelente livro, de grande inteligência, acerca da "história da história", numa visão marxista desprovida de dogmatismos e extremamente erudita e informada.
Em castelhano o livro é de 1982: nessa língua, desde então, o venho usando em meus cursos de metodologia e teoria da história. Mas a edição brasileira contém algo novo: um epílogo redigido especialmente para nós, intitulado "Reflexões sobre a História, do Além do Fim da História". Trata-se de um texto denso, embora curto, em que se conhecem as reações do autor diante das reviravoltas trazidas para nossa disciplina por posições muito fortes neste fim de século. Reações, estas, que são sensatas e nada sectárias.
Em resumo, o que propõe Fontana aos historiadores é uma saída da crise teórico-epistemológica mediante uma reconstrução que, sem ceder à substituição dos paradigmas explicativos anteriormente de grande aceitação pelo que o pós-modernismo (ou pós-estruturalismo) oferece, segundo ele "achados pontuais", atendesse a três pontos fundamentais: uma superação do "modelo único da evolução humana" e da noção mecanicista de progresso; a busca da relação entre "o fato concreto" (como Vilar, que aliás, como eu, admira muito, Fontana continua sustentando o realismo epistemológico) e "o contexto teórico em que o situamos"; e novos meios de explicar os atos humanos, posto que as explicações outrora habituais "pecaram por uma sobrevalorização da sua racionalidade".
Os três lançamentos recentes aqui comentados serão, em minha opinião, de grande interesse para os historiadores, os professores de história e, mais em geral, todos aqueles que se interrogam neste fim de século acerca do devir das sociedades humanas e da eventual possibilidade de pessoas comuns nele poderem ter alguma influência.
Ciro Flamarion Cardoso é professor de história na Universidade Federal Fluminense (UFF)
Folha de São Paulo
14/Nov/98
Ciro Flamarion Cardoso
O lançamento quase simultâneo de três volumes acerca da teoria e da metodologia da história traduz, quero crer, uma intensificação do interesse acerca de um setor dos estudos históricos no passado visto como de importância secundária e suspeitamente próximo de algo que não seria propriamente da alçada dos historiadores (talvez, indagava-se, dos filósofos?).
Dois dos livros arrolados aqui têm em comum derivarem de entrevistas. Revelar-se-ão, porém, bem diferentes se os compararmos. Em "Reflexões sobre o Saber Histórico", a organizadora tomou a iniciativa, tão interessante quanto original, de fazer a três historiadores franceses as mesmas perguntas acerca de questões -história e representação, história e cultura, meios de comunicação de massa e história, a dimensão psicológica da história, identidade coletiva e história, o retorno da história política, a questão nacional, as formas do conhecer histórico- que achava, com razão, estarem no centro das discussões atuais acerca da disciplina histórica. As respostas dadas a tais perguntas constituem o livro, precedidas por pequena apresentação redigida pela organizadora.
Já o volume de Le Goff pertence a um gênero que, pessoalmente, não me agrada muito, já que sou hostil ao narcisismo que grassa atualmente: a ego-história, um gênero no qual é difícil escapar de todo ao cabotinismo. O livro deriva de "conversações" com Marc Heurgon, intelectual que assume a posição de interlocutor e entrevistador, em que se sente a cada momento a edição, a intervenção do próprio Le Goff para escolher os rumos que tomaria o texto e acolher ou descartar temas ou enfoques.
No caso de "Reflexões sobre o Saber Histórico", gostei do livro. Em especial, é reconfortante ler respostas inteligentes de historiadores que não estão inseridos na "Nova História", tendência na qual a insistência é muito exagerada em certos ambientes universitários de nosso país, já que a relativa falta de massa crítica em nossas ciências sociais (a despeito de enormes avanços já feitos) costuma tornar entre nós muito monolíticos os predomínios ou as modas. Vovelle seria a exceção, de fato só parcial, como se verá.
A única coisa que lamentei foi a organizadora ter escolhido ser ativa na origem, ou a montante, mas não a jusante: de fato, uma vez formuladas as suas perguntas nas entrevistas (em duas ocasiões: 1992 e 1995), ela se limita a reproduzir as respostas de seus ilustres entrevistados e se abstém de comentá-las. Ora, acho que uma comparação explícita entre tais respostas teria sido bem interessante. Por exemplo, escolhendo a questão das representações, poder-se-ia verificar que Pierre Vilar, apesar de declarar sentir-se defasado em relação às novidades publicadas devido a seus sérios problemas de visão, responde "de fora" -ou seja, como alguém que não concede grande importância e mesmo contesta que se privilegie a noção de representação sobre a de efetiva explicação ao se tratar do conhecimento histórico (alguém que pratica o realismo epistemológico)- , mas percebe perfeitamente como o problema tem sido formulado.
Quanto a Michel Vovelle, responde "de dentro" e sem dúvida dá uma resposta bem informada, embora não fechando de todo com a autoproclamada "Nova História", posto que, se não acha tratar-se de um modismo, também percebe perigos na tendência que predomina hoje em dia: não à toa, em outro momento de suas respostas, declara-se "quantitativista convicto, pois creio que a abordagem quantitativa é um dos meios de romper o silêncio das massas", afastando-se, portanto, de uma crítica por vezes de todo ilegítima, se bem que frequente na atualidade, ao emprego de métodos quantitativos em história. Já Madeleine Rebérioux responde acerca das representações como quem não está só "de fora", mas, também, pouco interessada pelo tema: com efeito, ela não demora a abandoná-lo logo depois de iniciar sua resposta, desviando com inteligência a sua fala, tangencialmente, na direção do que de fato lhe interessa mais.
Jacques Le Goff é um dos maiores medievalistas franceses vivos; alguns diriam, mesmo, um dos maiores do mundo. Não carecem de interesse sua vida, seus trajetos intelectuais e suas atividades administrativas na revista "Annales" e na École des Hautes Études en Sciences Sociales. A sua versão dos afrontamentos que teve, no contexto do mandarinato francês, com Fernand Braudel, Ruggiero Romano e Clémens Heller, entre outros, pareceu-me, entretanto, extremamente editada, expurgada; ou seja, parcial em ambos os sentidos do termo. Também acho que há muitas coisas não ditas de propósito e pessoas voluntariamente não mencionadas, tanto em relação aos "Annales" quanto à École. Em todo caso, Le Goff assume com clareza seu eventual recurso a pistolões ou, como os chama, "protetores".
Apesar do livro abundar em conexões explícitas entre sua vida e sua obra, achei bem mais interessantes as conexões não explicitadas, mas possíveis. Assim, por exemplo, a parcialidade urbana e anticamponesa expressamente manifestada por Le Goff ajuda-me a entender seu intelectualismo extremo, que o levou entre outras coisas, no tocante ao "nascimento do purgatório", a adiar tal nascimento -a meu ver claríssimo em ambientes populares já na Alta Idade Média (como se pode notar, por exemplo, em passagens de Beda, o Venerável)- até o momento relativamente tardio (segunda metade do século 12) em que o purgatório foi objeto de discussões urbanas e eruditas entre clérigos.
Outro assunto que chama a atenção é a grande insistência, tanto de Le Goff quanto do entrevistador, no sentido de apresentar o primeiro como um homem de esquerda. Embora quanto a este ponto as opiniões possam variar a partir de definições e de onde se percebam as fronteiras entre posições, acho que estamos diante de uma pessoa que se opõe sinceramente ao anti-semitismo e ao racismo, além de defender reformas sociais moderadas, mas que manifesta atitudes no mínimo muito conservadoras e etnocêntricas diante do "outro", do não-europeu humano ou natural (ver a referência a "nativos" na pág. 22 e, sobretudo, aquela aos países tropicais e equatoriais na pág. 56: "Minha angústia suprema seria viver num clima tropical ou equatorial, que provoca um insuportável torpor, povoado pelo mundo obsceno da floresta, da vegetação exuberante e sobretudo desse pesadelo dos insetos"). Outrossim, a Europa da qual, mesmo fazendo-lhe críticas, é partidário convicto, no formato que de fato tem sido aquele de sua construção, dificilmente poderia ser considerada um empreendimento de esquerda.
Héctor Pérez Brignoli e eu temos uma enorme dívida de gratidão para com Josep Fontana, historiador marxista catalão que, em 1976, recomendou para publicação pela editora Crítica, de Barcelona, o livro "Os Métodos da História", que havíamos elaborado -dois historiadores então absolutamente desconhecidos fora de nossa área de atuação à época, a América Central (onde Héctor ainda reside e trabalha). Não contente em garantir a publicação de nosso texto, encarregou-se pessoalmente de apresentá-lo. Nunca conheci pessoalmente o professor Fontana, mas fico contentíssimo com a publicação entre nós de seu excelente livro, de grande inteligência, acerca da "história da história", numa visão marxista desprovida de dogmatismos e extremamente erudita e informada.
Em castelhano o livro é de 1982: nessa língua, desde então, o venho usando em meus cursos de metodologia e teoria da história. Mas a edição brasileira contém algo novo: um epílogo redigido especialmente para nós, intitulado "Reflexões sobre a História, do Além do Fim da História". Trata-se de um texto denso, embora curto, em que se conhecem as reações do autor diante das reviravoltas trazidas para nossa disciplina por posições muito fortes neste fim de século. Reações, estas, que são sensatas e nada sectárias.
Em resumo, o que propõe Fontana aos historiadores é uma saída da crise teórico-epistemológica mediante uma reconstrução que, sem ceder à substituição dos paradigmas explicativos anteriormente de grande aceitação pelo que o pós-modernismo (ou pós-estruturalismo) oferece, segundo ele "achados pontuais", atendesse a três pontos fundamentais: uma superação do "modelo único da evolução humana" e da noção mecanicista de progresso; a busca da relação entre "o fato concreto" (como Vilar, que aliás, como eu, admira muito, Fontana continua sustentando o realismo epistemológico) e "o contexto teórico em que o situamos"; e novos meios de explicar os atos humanos, posto que as explicações outrora habituais "pecaram por uma sobrevalorização da sua racionalidade".
Os três lançamentos recentes aqui comentados serão, em minha opinião, de grande interesse para os historiadores, os professores de história e, mais em geral, todos aqueles que se interrogam neste fim de século acerca do devir das sociedades humanas e da eventual possibilidade de pessoas comuns nele poderem ter alguma influência.
Ciro Flamarion Cardoso é professor de história na Universidade Federal Fluminense (UFF)
Folha de São Paulo
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