segunda-feira, 27 de outubro de 2008

A OPÇÃO BRASILEIRA

O Brasil tem sentido?
10/Out/98
Daniel Aarão Reis

Os autores entendem que sim.
Do fundo do passado, em transições quase sempre prolongadas, às vezes tortuosas, é possível descobrir (inventar?) um processo -da não-nação à nação. Da dispersão à unidade -linguística e cultural; da dependência externa à constituição, embora problemática, de um mercado interno; da apartação drástica da escravidão à formulação de uma cidadania, apesar de seu caráter ainda formal, pelo menos para as grandes maiorias; de um arquipélago de unidades de produção, marcadas pelo localismo e pela extroversão, à unidade geográfica, dinamizada internamente; de uma economia agrário-exportadora ao processo da industrialização; de uma população rural a uma outra, urbanizada; do governo colonial ao Estado Nacional.
Em vagas sucessivas, a demarcação do território, a formação da população, a estruturação da economia, a construção do Estado. Esta história teria culminado entre 1930 e 1980, o último ciclo de grande desenvolvimento, quando o país multiplicou por 27 vezes a produção industrial, o maior índice de crescimento mundial no período. Grandes espaços, riquezas abundantes, massa populacional considerável, mercado interno relativamente integrado, infinitas potencialidades. Entretanto, neste esplêndido organismo, bem na medula, há problemas, algo de podre, roendo, carcomendo.
É no diagnóstico destes problemas que o livro tem seu ponto forte. Num amplo painel, secamente traçado, com auxílio de quadros e estatísticas oficiais, emerge um quadro lastimável, resumindo a degradação e o sofrimento de um povo. Entre outras, duas séries de indicadores atestam as patologias do sistema. De um lado, a concentração da propriedade da terra, onde mais de 3 milhões de propriedades (52,9% do total) ocupam pouco mais de 10 milhões de hectares, apenas 2,7% da terra. Enquanto isto, os latifúndios de mais de mil hectares, 0,9% do total, detêm quase 165 milhões de hectares de terra, grande parte delas improdutivas. A terra inculta, objeto de especulação, defendida, com jagunços e matadores. E os posseiros expulsos, a população dos bóias-frias, desgraçada nas periferias dos interiores, e o inchaço das grandes cidades poluídas e violentas, ingovernáveis.
De outro lado, a concentração da renda, em que os 40% mais pobres se viram como podem (frequentemente não podem), com 7% do total, enquanto os 10% mais ricos locupletam-se com quase 30% (exatos 28,9%). Apenas 1% da população possui 62,7% das terras, 46,5% do total de ativos físicos, 60,2% do total de ativos financeiros, 85,1% do patrimônio líquido das empresas privadas, 53,1% do total da riqueza nacional.
A contrapartida política deste tipo de economia são instituições fechadas, impotentes para diagnosticar e resolver os problemas, uma "democracia restrita", e ainda sendo golpeada pelas reformas constitucionais em curso. Mas, afinal, dizem as xuxas e os poderosos, de que serve falar desta situação deprimente, e cultivar esta maldita "fracassomania"? O que importa é que o país melhora a olhos vistos, basta ver as mudanças radicais operadas depois do Plano Real.
Não é o que mostram os autores de "A Opção Brasileira".
Certo, o consumo das populações pobres melhorou, o que tem notável impacto político a curto prazo. Mas a tendência à concentração da renda continua. Com efeito, lucros, juros e aluguéis, que detinham, em 1994, 38% da renda nacional, dois anos depois, já abocanhavam 41%. Como poderia ser de outra forma, numa conjuntura em que o desemprego se eleva, a produção cresce pouco ou se estagna e os juros disparam? Sem falar no tique-taque incômodo das bombas-relógios com as quais será preciso, um dia, lidar -as dívidas impagáveis: a externa -pública e privada- e a dívida mobiliária federal, que pulou de R$ 59,5 bilhões, em julho de 1994, para R$ 254,5 bilhões em dezembro de 1997, o que mantém as elites dirigentes em permanente sobressalto, curvadas diante do capital especulativo, atraído por juros cada vez mais altos, e das instituições internacionais, de cujo aval dependem cada vez mais.
Ou seja, o Plano Real atacou os efeitos, não as causas. Para enfrentá-las é preciso construir alternativas. O texto ousa propô-las.
Mudar a concepção de desenvolvimento, retomando os conceitos de planejamento estratégico e regulação das forças cegas do mercado. Formular um programa de reconstrução nacional. Refundar o Estado. Nacionalizar os bancos. Estabelecer o controle público dos meios de comunicação. Mobilizar as amplas maiorias, em especial os trabalhadores. Ampliar a democracia, combinando representação e participação. Como os Estados Unidos no século 19 e a China no século 20, recusar o lugar que está sendo atribuído ao país pelas ordens e pela lógica do sistema internacional. Integrar a América Latina, autonomamente em relação ao grande irmão do Norte. Articular as potências chamadas intermediárias na cena internacional, construindo um contrapeso à hegemonia dos centros capitalistas avançados.
Um toque épico, sem dúvida. No universo do Mesmo em que vivemos, onde se entrelaçam o cinismo e o conformismo, (re)aparece uma gente estranha, oferecendo diagnósticos contundentes e propostas de rupturas. Que futuro os aguardará? A estes que, lembrando a arte da guerra do velho Sun-Tzu, recusam o desespero e o medo?
Se perderem, o que é provável, serão escarnecidos como utópicos, é este o destino dos que lutam na contracorrente. Se ganharem, não faltarão sisudos cientistas sociais que provarão por A + B a existência de condições maduras e favoráveis a suas propostas.
Enquanto a Sorte não se decide, estarão lutando. Porque este é um livro de luta. Que só aos interessados na luta interessará.
Daniel Aarão Reis é professor de história contemporânea na Universidade Federal Fluminense (UFF).

Folha de São Paulo

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