Liana Araújo Lopes
Mary Kaldor. Stanford, Ca., Stanford University Press, 1999, 206 páginas (com posfácio de janeiro de 2001).
O sistema da Guerra Fria serviu como referencial para explicações sobre uma certa estabilidade na ordem política internacional resultante da combinação de dois fatores: o antagonismo estratégico-militar entre Estados Unidos e União Soviética e a dissuasão nuclear. Ademais, constituiu uma base para o entendimento sobre a contenção de conflitos armados locais e regionais, em decorrência do controle dos governos norte-americano e soviético de seus respectivos aliados e da intervenção em assuntos domésticos dos países periféricos. Seria natural, pois, que se questionasse em que medida a natureza e as características do fenômeno da guerra mudariam com o fim do período do paradigma Leste-Oeste.
Embora reconheça a pertinência das análises que apontam certas conseqüências do fim da Guerra Fria - tais como a disponibilidade de um excedente armamentístico e a suspensão do apoio soviético a certos regimes - como significativas para a compreensão da emergência e novos conflitos, Mary Kaldor propõe que estes sejam avaliados à luz da globalização. Nesse sentido, salienta a relação entre conexões transnacionais características da era global e as novas formas de organização da violência nos anos 90. O fenômeno da guerra configura-se sob uma nova forma de violência que, segundo Kaldor, corresponde a um misto de guerra praticada pelos Estados ou por grupos políticos, de crime organizado e de violações aos direitos humanos.
A linha analítica seguida pela autora diferencia-se, ainda, de outras abordagens, definindo as novas guerras como civis, étnicas ou resultantes da mera privatização da violência, uma vez que Kaldor destaca o caráter essencialmente político das novas guerras.
Após um capítulo introdutório* em que expõe seu argumento central e uma breve descrição das seções do livro, Kaldor apresenta um histórico da evolução da guerra entre o século XVII e fins do século XX. Pretende demonstrar que, não obstante tenha passado por diferentes fases, cada uma com a utilização de meios e aparatos militares distintos, o fenômeno da guerra, nesse período, deve ser compreendido no contexto da construção de uma ordem centralizada, hierárquica e racionalizada no Estado moderno territorialmente delimitado. A essa conformação de Estado se associou a legitimidade do monopólio do uso da força por esse ator, sendo a guerra entendida como uma ação legítima entre Estados soberanos perseguindo objetivos políticos, traduzidos na forma de interesse estatal.
Contudo, afirma a autora, constitui um anacronismo tratar a guerra a partir dos anos 1980 tendo como referência essa concepção de Estado, na medida em que a configuração de um espaço definido em termos territoriais e a centralização da ordem internamente vêm sofrendo alterações no processo de globalização. Kaldor concebe a globalização não como causa, mas como um contexto fundamental para se compreender a manifestação dos novos tipos de organização da violência, voltando sua atenção para o impacto da intensificação das interconexões globais sobre o futuro do Estado moderno baseado em uma soberania definida territorialmente e, em particular, para os efeitos de tal processo sobre o declínio do monopólio do uso legítimo da força pelo Estado. Concentrando-se nesse eixo de análise, a autora destaca dois movimentos que têm contribuído para a perda de autonomia estatal e para a desintegração de alguns Estados. Quanto ao primeiro, constata a erosão desse monopólio em conseqüência da transnacionalização de forças militares, iniciada na Segunda Grande Guerra, e das diversas conexões transnacionais estabelecidas entre Forças Armadas no pós-guerra, refletidas sob a forma de alianças, vendas de armas, cooperação e treinamentos na área militar. O outro movimento tem a ver com o enfraquecimento de algumas economias e a expansão da violência por meio do crime organizado e a ação de grupos paramilitares.
Ressalte-se, porém, que, em alguns trechos de sua retrospectiva histórica acerca dos antigos conflitos armados, a autora trata de longos períodos sem uma análise mais pormenorizada, limitando a compreensão do significado das guerras contemporâneas. E, ainda, quanto aos conflitos da segunda metade do século XX, importantes, como salienta Kaldor, para o entendimento sobre as novas guerras, as referências dizem respeito às técnicas e estratégias herdadas pelos novos movimentos, sem que se explique com maiores detalhes a passagem de uma fase para outra.
O terceiro capítulo é um estudo de caso sobre as singularidades do conflito na Bósnia-Herzegovina, que permitem enquadrá-lo na concepção da autora de "novas guerras". As particularidades do evento revelaram, ainda, que o pensamento estratégico dos principais atores da comunidade internacional e os arranjos e as propostas para sua resolução não condiziam com a natureza específica daquele novo tipo de guerra. Vale dizer, configurou-se um conflito relativo a um problema de organização política e social, em que as elites políticas lutavam pelo controle do Estado, não se tratando, pois, de uma disputa de fronteiras e território tal como foi concebido pela comunidade internacional. Ademais, conclui a autora, o colapso da legitimidade e do monopólio da violência organizada, levando à desintegração da Iugoslávia, deve ser entendido como um novo nacionalismo, em contraste com os modernos movimentos de formação do Estado.
Nessa parte do livro, entretanto, falta um cotejamento mais sistemático entre a guerra na ex-Iugoslávia e outros conflitos, não só para justificar sua denominação de caso paradigmático das novas guerras, mas também para deixar mais clara a distinção entre antigas e novas formas de conflitos armados, assim como para contribuir com uma apreciação comparativa de confrontos contemporâneos. A autora priva-nos também de uma análise mais fina sobre os impactos da globalização sobre o conflito analisado, uma vez que acaba por privilegiar uma abordagem voltada para a ação internacional e seus equívocos na resolução do conflito. Kaldor ressalta apenas que a Bósnia-Herzegovina foi foco da atenção global de governos, de organizações não-governamentais, da imprensa, além de terem sido direcionados para a região inúmeros esforços internacionais para se chegar a uma solução do conflito e a manifestação da prática de um novo tipo de intervencionismo humanitário.
A leitura dos dois capítulos subseqüentes é que nos permite compreender melhor o vínculo entre os novos tipos de guerra e a globalização. Nesse sentido, argumenta a autora, é preciso examinar em que medida a globalização possibilita o surgimento de novas formas de identidade política, ao romper divisões culturais e socioeconômicas características do período moderno. Nessa ordem de idéias, Kaldor observa que novas identidades políticas podem emergir ora como reação à importância cada vez maior ou à perda de legitimidade das classes políticas, ora como resultado da economia paralela, que diz respeito a formas alternativas, legais ou não, de atividades desenvolvidas pelos excluídos da sociedade. Esse é o eixo central do quarto capítulo, concernente aos movimentos identitários étnicos, raciais ou religiosos mobilizados com o fim de disputar o poder estatal. Dito de outro modo, esses movimentos constituem o meio pelo qual as elites políticas reproduzem seu poder, sendo fundamentais para se avaliar os objetivos das novas guerras. Por conseguinte, a autora chama a atenção para o fato de as recentes manifestações desse fenômeno apresentarem propósitos distintos dos conflitos anteriores, notadamente de cunho geopolítico e ideológico. Cabe ponderar, no entanto, que a autora não menciona a possibilidade de os conflitos armados contemporâneos, não obstante sua natureza política, possuírem elementos geoestratégicos e ideológicos, ainda que de forma residual.
No capítulo seguinte, o enfoque recai sobre a economia política da guerra, na qual um conjunto de novos militares - remanescentes de exércitos estatais, grupos paramilitares, unidades de autodefesa, mercenários estrangeiros e tropas internacionais - se envolve em novas formas de violência organizada que denotam estratégias de controle político mediante a exclusão de civis. Dentre estas, o assassinato sistemático dos oponentes, as expulsões forçadas de populações, o medo e a desestabilização. As técnicas de deslocamento populacional consideradas ilegítimas nas antigas guerras passam a fazer parte das práticas nas novas formas de conflito. Kaldor acrescenta que, em contraposição à centralização da administração das antigas guerras, o novo tipo de economia da guerra "globalizou-se", devendo ser visualizado sob a ótica da desintegração do Estado, da perda de sua legitimidade, da redução de recursos e da produção doméstica, da fragmentação militar do Estado. Nesse cenário, ocorre uma crescente privatização da violência, observa Kaldor. Por outras palavras, há uma descentralização do seu controle, uma vez que o Estado não mais detém exclusivamente o monopólio do uso da força.
Importante, ainda, é a constatação da autora de que essas manifestações da violência são reproduzidas através de uma versão extremada da globalização, em que ocorre uma deterioração da capacidade produtiva e redução do montante de recursos arrecadados. Nesse caso, os governos e grupos militares buscam formas alternativas para realizarem suas atividades, não só no plano doméstico, mas estabelecem-se novos fluxos econômicos, em especial por meio da assistência de governos estrangeiros e de ajuda humanitária.
Adotando uma perspectiva cosmopolita, ao longo do sexto capítulo, Kaldor descreve um conjunto de propostas para acabar com as novas formas de violência, devendo este constituir um empreendimento global, ainda que sua aplicação se dê em âmbito local ou regional. Ao defender um projeto político dessa natureza, a fim de recompor a legitimidade nas áreas em conflito e restaurar o controle da violência organizada pelas autoridades públicas, Kaldor expressa sua crítica à maneira como a prática da intervenção humanitária tem sido implementada, chegando mesmo a contribuir, em alguns casos, para a manutenção da violência, seja por meio da legitimidade conferida aos criminosos de guerra quando são chamados a participar das negociações, seja ao buscar compromissos políticos fundamentados em premissas exclusivistas. Sobretudo, diz Mary Kaldor, os insucessos das operações humanitárias decorrem de interpretações equivocadas baseadas em antigas formas de pensar a guerra e da incompreensão acerca da natureza das novas formas de violência organizada.
Por outro lado, a autora mostra-se consciente de que a proposta de um processo político cosmopolita representa um grande desafio. Trata-se, pois, de localizar, nas próprias comunidades locais, grupos defensores do cosmopolitismo capazes de mobilizar apoio e enfraquecer o poder das partes beligerantes, ou seja, encontrar as "ilhas de civilidade", onde seja possível construir políticas democráticas pluralistas como contraponto a políticas exclusivistas. Nesse sentido, Kaldor propõe que se estabeleçam alianças entre os defensores locais da civilidade e instituições internacionais que sejam fundamentadas no direito internacional, no respeito a princípios e normas internacionais. Este é um mecanismo básico por meio do qual se espera controlar a violência e restituir a legitimidade.
No sétimo capítulo, Kaldor faz referência a três cenários possíveis para se pensar sobre a governança, a legitimidadeeasegurança, baseados em distintas interpretações sobre a natureza da violência na era global. Ao apontar as falhas e os limites explicativos da análise sobre o "Choque de Civilizações" de Samuel Huntington e sobre a visão do neomedievalismo presente no livro The Ends of the Earth, de Robert D. Kaplan, sua intenção é reforçar seus argumentos anteriormente descritos. Kaldor defende a proposta de uma governança universalista, na qual se vislumbre uma concepção de pacificação global em que as entidades políticas não sejam definidas por limites territoriais. Para tanto, julga o papel das instituições internacionais fundamental para a garantia da implementação de regras aceitas pela comunidade internacional, em especial aquelas concernentes aos direitos humanos.
Em que pesem as ponderações feitas ao livro de Mary Kaldor, sua análise contribui para ampliar nosso entendimento sobre os conflitos armados contemporâneos, revelando-se igualmente útil para estudiosos de relações internacionais, na medida em que trata de temas às vezes deixados de lado por trabalhos sobre globalização e sobre resolução de conflitos e intervenções humanitárias. Ademais, registre-se que a perspectiva proposta pela autora, nem sempre comum na literatura nessa área de estudos, reflete a combinação da visão de uma acadêmica com a experiência, enquanto membro da Assembléia de Cidadãos de Helsinki, de quem participa de discussões em entidades internacionais envolvidas com políticas para regiões em conflito, como a OTAN e as Nações Unidas.
* A obra foi publicada após as operações da OTAN contra a Iugoslávia em 1999. No posfácio, a autora faz uma análise da campanha dessa Organização no Kosovo, baseando-se em sua experiência como membro da Comissão Internacional Independente sobre o Kosovo.
O sistema da Guerra Fria serviu como referencial para explicações sobre uma certa estabilidade na ordem política internacional resultante da combinação de dois fatores: o antagonismo estratégico-militar entre Estados Unidos e União Soviética e a dissuasão nuclear. Ademais, constituiu uma base para o entendimento sobre a contenção de conflitos armados locais e regionais, em decorrência do controle dos governos norte-americano e soviético de seus respectivos aliados e da intervenção em assuntos domésticos dos países periféricos. Seria natural, pois, que se questionasse em que medida a natureza e as características do fenômeno da guerra mudariam com o fim do período do paradigma Leste-Oeste.
Embora reconheça a pertinência das análises que apontam certas conseqüências do fim da Guerra Fria - tais como a disponibilidade de um excedente armamentístico e a suspensão do apoio soviético a certos regimes - como significativas para a compreensão da emergência e novos conflitos, Mary Kaldor propõe que estes sejam avaliados à luz da globalização. Nesse sentido, salienta a relação entre conexões transnacionais características da era global e as novas formas de organização da violência nos anos 90. O fenômeno da guerra configura-se sob uma nova forma de violência que, segundo Kaldor, corresponde a um misto de guerra praticada pelos Estados ou por grupos políticos, de crime organizado e de violações aos direitos humanos.
A linha analítica seguida pela autora diferencia-se, ainda, de outras abordagens, definindo as novas guerras como civis, étnicas ou resultantes da mera privatização da violência, uma vez que Kaldor destaca o caráter essencialmente político das novas guerras.
Após um capítulo introdutório* em que expõe seu argumento central e uma breve descrição das seções do livro, Kaldor apresenta um histórico da evolução da guerra entre o século XVII e fins do século XX. Pretende demonstrar que, não obstante tenha passado por diferentes fases, cada uma com a utilização de meios e aparatos militares distintos, o fenômeno da guerra, nesse período, deve ser compreendido no contexto da construção de uma ordem centralizada, hierárquica e racionalizada no Estado moderno territorialmente delimitado. A essa conformação de Estado se associou a legitimidade do monopólio do uso da força por esse ator, sendo a guerra entendida como uma ação legítima entre Estados soberanos perseguindo objetivos políticos, traduzidos na forma de interesse estatal.
Contudo, afirma a autora, constitui um anacronismo tratar a guerra a partir dos anos 1980 tendo como referência essa concepção de Estado, na medida em que a configuração de um espaço definido em termos territoriais e a centralização da ordem internamente vêm sofrendo alterações no processo de globalização. Kaldor concebe a globalização não como causa, mas como um contexto fundamental para se compreender a manifestação dos novos tipos de organização da violência, voltando sua atenção para o impacto da intensificação das interconexões globais sobre o futuro do Estado moderno baseado em uma soberania definida territorialmente e, em particular, para os efeitos de tal processo sobre o declínio do monopólio do uso legítimo da força pelo Estado. Concentrando-se nesse eixo de análise, a autora destaca dois movimentos que têm contribuído para a perda de autonomia estatal e para a desintegração de alguns Estados. Quanto ao primeiro, constata a erosão desse monopólio em conseqüência da transnacionalização de forças militares, iniciada na Segunda Grande Guerra, e das diversas conexões transnacionais estabelecidas entre Forças Armadas no pós-guerra, refletidas sob a forma de alianças, vendas de armas, cooperação e treinamentos na área militar. O outro movimento tem a ver com o enfraquecimento de algumas economias e a expansão da violência por meio do crime organizado e a ação de grupos paramilitares.
Ressalte-se, porém, que, em alguns trechos de sua retrospectiva histórica acerca dos antigos conflitos armados, a autora trata de longos períodos sem uma análise mais pormenorizada, limitando a compreensão do significado das guerras contemporâneas. E, ainda, quanto aos conflitos da segunda metade do século XX, importantes, como salienta Kaldor, para o entendimento sobre as novas guerras, as referências dizem respeito às técnicas e estratégias herdadas pelos novos movimentos, sem que se explique com maiores detalhes a passagem de uma fase para outra.
O terceiro capítulo é um estudo de caso sobre as singularidades do conflito na Bósnia-Herzegovina, que permitem enquadrá-lo na concepção da autora de "novas guerras". As particularidades do evento revelaram, ainda, que o pensamento estratégico dos principais atores da comunidade internacional e os arranjos e as propostas para sua resolução não condiziam com a natureza específica daquele novo tipo de guerra. Vale dizer, configurou-se um conflito relativo a um problema de organização política e social, em que as elites políticas lutavam pelo controle do Estado, não se tratando, pois, de uma disputa de fronteiras e território tal como foi concebido pela comunidade internacional. Ademais, conclui a autora, o colapso da legitimidade e do monopólio da violência organizada, levando à desintegração da Iugoslávia, deve ser entendido como um novo nacionalismo, em contraste com os modernos movimentos de formação do Estado.
Nessa parte do livro, entretanto, falta um cotejamento mais sistemático entre a guerra na ex-Iugoslávia e outros conflitos, não só para justificar sua denominação de caso paradigmático das novas guerras, mas também para deixar mais clara a distinção entre antigas e novas formas de conflitos armados, assim como para contribuir com uma apreciação comparativa de confrontos contemporâneos. A autora priva-nos também de uma análise mais fina sobre os impactos da globalização sobre o conflito analisado, uma vez que acaba por privilegiar uma abordagem voltada para a ação internacional e seus equívocos na resolução do conflito. Kaldor ressalta apenas que a Bósnia-Herzegovina foi foco da atenção global de governos, de organizações não-governamentais, da imprensa, além de terem sido direcionados para a região inúmeros esforços internacionais para se chegar a uma solução do conflito e a manifestação da prática de um novo tipo de intervencionismo humanitário.
A leitura dos dois capítulos subseqüentes é que nos permite compreender melhor o vínculo entre os novos tipos de guerra e a globalização. Nesse sentido, argumenta a autora, é preciso examinar em que medida a globalização possibilita o surgimento de novas formas de identidade política, ao romper divisões culturais e socioeconômicas características do período moderno. Nessa ordem de idéias, Kaldor observa que novas identidades políticas podem emergir ora como reação à importância cada vez maior ou à perda de legitimidade das classes políticas, ora como resultado da economia paralela, que diz respeito a formas alternativas, legais ou não, de atividades desenvolvidas pelos excluídos da sociedade. Esse é o eixo central do quarto capítulo, concernente aos movimentos identitários étnicos, raciais ou religiosos mobilizados com o fim de disputar o poder estatal. Dito de outro modo, esses movimentos constituem o meio pelo qual as elites políticas reproduzem seu poder, sendo fundamentais para se avaliar os objetivos das novas guerras. Por conseguinte, a autora chama a atenção para o fato de as recentes manifestações desse fenômeno apresentarem propósitos distintos dos conflitos anteriores, notadamente de cunho geopolítico e ideológico. Cabe ponderar, no entanto, que a autora não menciona a possibilidade de os conflitos armados contemporâneos, não obstante sua natureza política, possuírem elementos geoestratégicos e ideológicos, ainda que de forma residual.
No capítulo seguinte, o enfoque recai sobre a economia política da guerra, na qual um conjunto de novos militares - remanescentes de exércitos estatais, grupos paramilitares, unidades de autodefesa, mercenários estrangeiros e tropas internacionais - se envolve em novas formas de violência organizada que denotam estratégias de controle político mediante a exclusão de civis. Dentre estas, o assassinato sistemático dos oponentes, as expulsões forçadas de populações, o medo e a desestabilização. As técnicas de deslocamento populacional consideradas ilegítimas nas antigas guerras passam a fazer parte das práticas nas novas formas de conflito. Kaldor acrescenta que, em contraposição à centralização da administração das antigas guerras, o novo tipo de economia da guerra "globalizou-se", devendo ser visualizado sob a ótica da desintegração do Estado, da perda de sua legitimidade, da redução de recursos e da produção doméstica, da fragmentação militar do Estado. Nesse cenário, ocorre uma crescente privatização da violência, observa Kaldor. Por outras palavras, há uma descentralização do seu controle, uma vez que o Estado não mais detém exclusivamente o monopólio do uso da força.
Importante, ainda, é a constatação da autora de que essas manifestações da violência são reproduzidas através de uma versão extremada da globalização, em que ocorre uma deterioração da capacidade produtiva e redução do montante de recursos arrecadados. Nesse caso, os governos e grupos militares buscam formas alternativas para realizarem suas atividades, não só no plano doméstico, mas estabelecem-se novos fluxos econômicos, em especial por meio da assistência de governos estrangeiros e de ajuda humanitária.
Adotando uma perspectiva cosmopolita, ao longo do sexto capítulo, Kaldor descreve um conjunto de propostas para acabar com as novas formas de violência, devendo este constituir um empreendimento global, ainda que sua aplicação se dê em âmbito local ou regional. Ao defender um projeto político dessa natureza, a fim de recompor a legitimidade nas áreas em conflito e restaurar o controle da violência organizada pelas autoridades públicas, Kaldor expressa sua crítica à maneira como a prática da intervenção humanitária tem sido implementada, chegando mesmo a contribuir, em alguns casos, para a manutenção da violência, seja por meio da legitimidade conferida aos criminosos de guerra quando são chamados a participar das negociações, seja ao buscar compromissos políticos fundamentados em premissas exclusivistas. Sobretudo, diz Mary Kaldor, os insucessos das operações humanitárias decorrem de interpretações equivocadas baseadas em antigas formas de pensar a guerra e da incompreensão acerca da natureza das novas formas de violência organizada.
Por outro lado, a autora mostra-se consciente de que a proposta de um processo político cosmopolita representa um grande desafio. Trata-se, pois, de localizar, nas próprias comunidades locais, grupos defensores do cosmopolitismo capazes de mobilizar apoio e enfraquecer o poder das partes beligerantes, ou seja, encontrar as "ilhas de civilidade", onde seja possível construir políticas democráticas pluralistas como contraponto a políticas exclusivistas. Nesse sentido, Kaldor propõe que se estabeleçam alianças entre os defensores locais da civilidade e instituições internacionais que sejam fundamentadas no direito internacional, no respeito a princípios e normas internacionais. Este é um mecanismo básico por meio do qual se espera controlar a violência e restituir a legitimidade.
No sétimo capítulo, Kaldor faz referência a três cenários possíveis para se pensar sobre a governança, a legitimidadeeasegurança, baseados em distintas interpretações sobre a natureza da violência na era global. Ao apontar as falhas e os limites explicativos da análise sobre o "Choque de Civilizações" de Samuel Huntington e sobre a visão do neomedievalismo presente no livro The Ends of the Earth, de Robert D. Kaplan, sua intenção é reforçar seus argumentos anteriormente descritos. Kaldor defende a proposta de uma governança universalista, na qual se vislumbre uma concepção de pacificação global em que as entidades políticas não sejam definidas por limites territoriais. Para tanto, julga o papel das instituições internacionais fundamental para a garantia da implementação de regras aceitas pela comunidade internacional, em especial aquelas concernentes aos direitos humanos.
Em que pesem as ponderações feitas ao livro de Mary Kaldor, sua análise contribui para ampliar nosso entendimento sobre os conflitos armados contemporâneos, revelando-se igualmente útil para estudiosos de relações internacionais, na medida em que trata de temas às vezes deixados de lado por trabalhos sobre globalização e sobre resolução de conflitos e intervenções humanitárias. Ademais, registre-se que a perspectiva proposta pela autora, nem sempre comum na literatura nessa área de estudos, reflete a combinação da visão de uma acadêmica com a experiência, enquanto membro da Assembléia de Cidadãos de Helsinki, de quem participa de discussões em entidades internacionais envolvidas com políticas para regiões em conflito, como a OTAN e as Nações Unidas.
* A obra foi publicada após as operações da OTAN contra a Iugoslávia em 1999. No posfácio, a autora faz uma análise da campanha dessa Organização no Kosovo, baseando-se em sua experiência como membro da Comissão Internacional Independente sobre o Kosovo.
Revista Contexto Internacional
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