De herbário a dromedário
Livro resgata memória da primeira expedição científica feita por brasileiros no país e argumenta: embora lembrado principalmente por acontecimentos pitorescos, o grupo produziu coleções importantes para museus nacionais.
Por: Isabela Fraga
Publicado em 22/03/2010 | Atualizado em 22/03/2010
Desenhos e aquarelas da paisagem cearense foram um dos legados da Comissão Científica do Império. A arte é de José dos Reis Carvalho, pintor da expedição (reprodução / 'Comissão Científica do Império: 1859-1861').
Interior do Ceará, 1859. Em meio aos vilarejos e comunidades rurais, um grupo de ‘doutores’ viajava, catando amostras de pedras, plantas, insetos e outros bichos. Com equipamentos modernos para a época que pareciam “arte do demônio” aos olhos dos locais (como conta o escritor cearense Domingos Olímpio em seu romance), eles observavam o céu e fascinavam a população com máquinas fotográficas. Tratava-se dos integrantes da chamada Comissão Científica do Império, a primeira expedição exploratória feita por brasileiros no país.
Com o objetivo de acabar com os erros cometidos por naturalistas estrangeiros em suas descrições e estudos sobre o Brasil, esse grupo de “científicos” – como eram chamados pelos cearenses – produziu, após dois anos e cinco meses de viagem, coleções que integram até hoje museus brasileiros. Uma grande ambição, entretanto, não foi concretizada: a produção de uma publicação científica com os resultados da expedição.
É de certa forma para preencher essa lacuna de dois séculos que a historiadora Lorelai Kury, da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), organizou o livro Comissão Científica do Império: 1859-1861. Para comemorar os 150 anos da comitiva, completados em 2009, Kury convidou um time de estudiosos em história da ciência para debater e comentar os feitos – e desfeitos – do grupo que ajudou a sedimentar uma ciência brasileira.
Entre os nomes que assinam os artigos, estão a geóloga Silvia Figueiroa, da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), e a bióloga Magali Romero Sá, da Fiocruz, além da própria Kury. Os temas abordados vão desde os trabalhos etnográficos realizados por membros da Comissão até a formação de coleções para museus brasileiros.
O resultado, afinal, é um livro ‘de mesa’, imponente, no qual a densidade acadêmica dos textos é equilibrada pelas belas ilustrações e pinturas feitas por membros da comitiva no decorrer da viagem. “Por isso, pode interessar tanto a pesquisadores com um foco específico como a pessoas que apreciem a arte e o século 19 em geral”, comenta Kury.
Confira uma galeria com imagens do livro
Comissão Científica do Império: 1859-1861
Os museus agradecem
A Comissão era composta por pesquisadores importantes do Museu Imperial (atual Museu Nacional) e membros do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB) – como o poeta Gonçalves Dias, o botânico Francisco Freire Alemão, o engenheiro Guilherme Capanema e o ornitólogo Manuel Ferreira Lagos.
Embora estudiosos argumentem que é difícil precisar quando se deu o estabelecimento da ciência no país, a formação de uma comunidade científica brasileira teve um propulsor claro. “Uma das grandes realizações da Comissão se deu no sentido de ajudar a expandir um grupo nacional de cientistas”, explica Kury.
Ao final da viagem, o grupo trouxe uma extensa coleção zoológica, botânica e geológica, além de exemplares de artesanato cearense, desenhos e aquarelas, que ilustram as páginas do livro. Todo esse legado resultou em um aumento significativo das coleções do Museu Nacional e do Museu Imperial. O primeiro, por exemplo, ficou com o denso e até hoje consultado herbário do botânico Freire Alemão.
‘Comissão das Borboletas’ e outros apelidos
Mas por que, com tanto investimento do Império, a Comissão não conseguiu levar adiante o projeto de uma grande publicação? Para Kury, os motivos para esse relativo fracasso vieram de várias instâncias. “Além de não haver uma comunidade de cientistas brasileiros que desse continuidade à produção da Comissão, houve também imprevistos que prejudicaram os materiais da viagem”, conta a historiadora.
A sociedade, em geral, também não se mobilizou muito em relação à Comissão. Muito pelo contrário: havia total descrédito perante seus integrantes e objetivos. “Naquela época, se tinha uma visão da ciência totalmente aplicada a um objetivo concreto e econômico, como a busca por ouro”, explica Kury. “Por isso, todo o trabalho de pesquisa mais básica era visto como supérfluo.” Não à toa, um dos (muitos) nomes jocosos conferidos ao grupo foi ‘Comissão das Borboletas’, numa alusão à suposta superficialidade à qual ela se dedicava.
A própria memória da expedição ficou muito mais marcada por alguns acontecimentos pitorescos e picantes do que pelas coleções que formou e textos que produziu. Uma das histórias mais comentadas é sobre a tentativa de aclimatação de dromedários no Brasil, que trouxe 14 desses animais, acompanhados de quatro argelinos, à capital cearense. Também a fama dos membros da Comissão de namoradores lhes conferiu um apelido inusitado: ‘Comissão Defloradora’.
Lorelai Kury (org.)
Rio de Janeiro, 2009, Andrea Jakobsson Estúdio Editorial